Quem na vida conheceu um contador de histórias como tive a felicidade de conhecer o amigo Bodó, pode dizer que ouviu causos que até o Cão duvida. Ao passar de fronte a casa dele, numa sexta-feira, há alguns anos atrás, assim que o cumprimentei ele veio ao portão. Enquanto puxava o trinco para que entrasse para a área da casa da irmã, com quem morava, foi logo dizendo.
- Oi, Gerardinho, por hoje ser sexta-feira, e ainda com esse luar descarado, me veio agora na cabeça uma história que o finado pai João me contava e que é de dar até arrepio. O pai até evitava contar esse causo, acontecido quando nós morávamos lá na Fazenda Santa Rosa, , que se deu justo numa sexta-feira de uma noite de lua cheia como você está vendo aí. Vamos chegar pra cá que eu já vou puxar a memória e contar do jeitinho que o pai me contou.
- Puxa vida, Bodó! Deve ser mesmo um caso do Arco da Velha – disse eu curioso por mais esta pérola que ele, grande contador de histórias, sabia contar como poucos.
- Isso já faz muito tempo, mas você deve ter ouvido falar de um tal Júlio Damasceno. Ele era carroceiro da Fazenda Santa Rosa, em Timburi, onde você também morou quando criança, mas acho que isso aconteceu antes de você nascer.
- Ouvi falar dele, sim. Até havia uma lenda que ele virava lobisomem e passeava pela colônia fazendo grande alvoroço – confirmei.
- Aí que está o nó da questão. Que lenda, que nada! Até era engraçado que ele só andava de camisa de manga comprida pra esconder o esfolado dos cotovelos, sempre calejados da peleja de lobisomação.
- Não brinca, Bodó. Isso é coisa séria. Mas como foi ? O seu pai chegou a ver ele virando lobisomem?
- Não. O pai não chegou a ver essa transformação, mas teve prova de que ele virava lobisomem e saía assustando meio mundo, uivando no meio da cachorrada que o perseguia. Às vezes invadia o galinheiro, e era aquela gritaria que assustava a colônia inteira. Mas aconteceu de uma vez a carroça passar por cima do pé dele. E não é que gangrenou? Aquilo arruinou de tal modo que ele teve que ir para um hospital de Ourinhos e, como não havia outro jeito, cortaram uma perna dele.
- Nossa! Parece-me ter ouvido meu avô contar esse fato – assenti.
- Foi isso mesmo. Foi seu avô, o seu Manuel, que era administrador do Sylvestre Egreja, que encaminhou ele para mais recurso. Ele até resolveu o problema, mas aí não pode trabalhar mais. Só ficava em casa. Em casa é modo de dizer, conforme vou lhe contar, tim-tim por tim-tim.
- Isso mesmo. Pode contar que sou todo ouvidos, Bodó.
- Pois passado um tempinho que ele havia chegado, já com uma perna cortada,o pai escutou um banzé no terreiro: cachorrada latindo, galinhada num escarcéu danado e um uivo que rasgava no compasso do vento toda a colônia. O pai, como você conheceu, era homem de coragem. Passou a mão num pedaço de pau e foi para botar ordem no terreiro. Quando menos o meu pai deu fé, viu um cachorrão com três patas fazendo o maior fuá no meio da cachorrada. Aí o pai perdeu a paciência. Foi lá dentro de casa, passou a mão no laço e laçou o bitelo de três patas. Digo, o lobisomem Júlio Damasceno e trouxe ele para a lamparina para uma conversa de homem pra homem. Ou melhor, de homem para lobisomem. Mesmo naquela situação, o pai tinha dó desse infeliz, que era um pai de família e até compadre de um tio meu, o Tio Marcos. Aquele cão enorme, de olho amarelo, só podia ser o seu Júlio Damasceno. E o pai não teve dúvida nenhuma e se pôs a dar conselho pra ele: “Júlio, eu sei que cada um traz uma sina, mas agora você já está exagerando. Mesmo tendo perdido uma perna você insiste nessa lida de lobisomem, assustando todo mundo. Sofrendo agora nessa chuva fria de agosto. Eu não sou homem de julgar ninguém, porque Nosso Senhor recomendou nunca julgar o próximo. Mas eu tenho um quartinho de arreio aqui do lado da área (e o cachorrão, com o laço no pescoço, parecia ouvir atentamente ) – e vou deixar você pernoitar aqui, porque desde que me conheço por gente, meu pai falava para nunca negar pouso a quem estivesse precisado de um abrigo. Júlio, procure o padre amanhã e peça conselho pra ele. O Padre é um homem santo, que vai saber resolver essa questão. Talvez seja algum pecado que você deve. O Padre pode perdoar e você fica livre. Porque agora, Júlio, com três pernas só, seu castigo ficou maior do que qualquer pecado que você possa ter feito, ao cumprir essa penitência de viver vagando a estas horas da noite. “
- Puxa vida, quanta coragem do seu João, seu pai – elogiei.
- Ah, você conheceu o pai e não me deixa mentir que o pai não tinha medo de nada. Nem de vivos, nem de mortos e nem do Cão. Pois aconteceu que o pai prendeu o lobisomem no quartinho e, na madrugada, ele arranhava a porta e uivava num som que espantava meio mundo. O pai enfezou, abriu a porta e ele saiu que saiu louco, gritando na noite até sumir no grotão do Bastião Batista.
- Puxa vida. Essa história até que acabou bem, mas dizem que se o lobisomem mordesse alguém passava a sina de lobisomem para quem ele mordesse. É verdade isso, Bodó?
-inquiri.
- Isso é verdade, sim, mas não era qualquer lobisomem que se atreveria a morder meu velho pai. Mas para encerrar a história, confirmando que era mesmo o Júlio, no outro dia, logo cedinho, apareceu lá o seu Júlio, de muleta, pedindo emprestado um pires de sal. Tudo confirmado, esse era o sinal que dava o lobisomem quando ia numa casa.
O pai foi curto e grosso:
- Olha aqui, Júlio – disse meu pai – eu já lhe aconselhei a sair dessa vida. Lembra o que eu falei para você, ontem, aqui em casa. Acho que pouco adiantou, porque você podia esperar raiar o dia e evitar a chuva que estava forte e depois ir pra sua casa.
- Não sei do que o senhor está falando, seu João – disse Júlio Damasceno chorando.
O pai – que quando ficava bravo virava uma fera – sapecou:
- Saia daqui seu lobisomem duma figa. Nunca mais passe aqui na minha porta, que eu tenho criança pequena. Se aparecer aqui de novo, vou dobrar o laço e dar uma surra tão grande em você para nunca mais atormentar nenhum cristão.
Depois disso, nunca mais o lobisomem beirou o quintal de nossa casa, mas o seu Júlio acho que ficou magoado com o meu pai. Nunca mais foi visitar a gente, mesmo em estado normal, e até a família dele se afastou de nós.
Geraldo Generoso
Um comentário:
O croniconto DOMADOR DE LOBISOMEM tem embutidas várias avaliações no contexto. Ressalta, sem explicitar, a grande veneração de um filho (Bodó) pelo pai (João) falecido. Espelha o meio rural, de outros tempos, onde pipocam lendas e mitos. Expressa a ânsia de fugir da rotina, mesmo apelando ao inexplicável como muleta para sair da mesmice. Vivi nesse mundo recheado de histórias de assombração. E hoje, mais realista me fez a vida, mas sinto muita falta desses alicerces onde depus os meus primeiros passos: a infância na Fazenda Santa Rosa.
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