sábado, 29 de outubro de 2011

Artigo: O Silêncio - A/1035

A VOZ DO SILÊNCIO


O conceito de pecado é demasiado equívoco. Da sua condenação fazem as igrejas instituídas e acreditadas uma eficiente e poderosa arma indutora de medo e de remorso, e por aqui se conforma o sossego dos seus rebanhos. Pecar escondidamente livra o pecador de públicas condenações, não o livra do medo nem do remorso, porque acreditar nos pecados que as igrejas esgrimem e condenam é mortificar-se o crente pelo medo e envenenar-se pelo remorso, sem qualquer vislumbre de santidade.

Ambígua era a frase dum pastor amigo, mas eu penso que a entendi, que dizia: pecar, sim, desde que não seja pouco e arrepender-se, desde que não seja muito.

Do nosso ponto de vista, que acreditamos na prevalência do Bem, verdadeiramente só existe um pecado, o qual é fonte de toda a sombra e de todo o erro. Chama-se ignorância. Não exactamente no sentido de poucos conhecimentos, mas no de desprezo pela Sabedoria, a qual não deve confundir-se com exercícios de erudição, nem muito menos com a degenerescência desta, que é o intelectualismo. No primeiro caso, temos o primado do amor, do entendimento e da dádiva; nos outros dois, o do orgulho, da exclusão e do egoísmo.

Aqui, desembocamos em algo de paradoxal: quanto mais um homem é culto e rico de conhecimentos mais apto fica para que o espírito se lhe ilumine e crie asas, mas, por outro lado, mais susceptível ficará também a que o conhecimento lhe seja um lastro de chumbo que lhe impede o voo e um nevoeiro que lhe esconde a luz.

O conhecimento como um acumular de informação não só nos rouba a inocência de nos maravilharmos como nos tolda a receptividade. Torna ruidoso o que deveria ser um santuário de silêncio: o nosso silêncio interior, que nos exige serenidade expectante e ruptura com o aturdimento exterior.

«Conhece-te a ti mesmo», lia-se em Delfos como um convite à viagem interior, que é, pelo acesso à Inteligência Pura, um caminho de libertação das teias do pecado que referimos como único. É a redenção de Lúcifer, ou seja, a nossa própria redenção. Por outro lado, o velho gnoma de tirar o pecado do mundo não pode nem deve significar esperar como as árvores e as pedras que o Cósmico nos cuide e eleve, mas sim produzir a alquimia da Sombra. Não é esperar um qualquer prémio de fim de jornada, mas sim tirar do nosso carvão toda a chama e todo o calor que sirva a Luz. Tudo isto e a nossa específica forma de o conseguir podemos nós saber de viva voz quando em silêncio dermos a devida atenção ao nosso mestre interior. É escutando a Voz do Silêncio. É por ela que saberemos sem lugar para dúvidas que não há sacerdotes nem mestres que dêem por nós os passos que tememos, ou simplesmente adiamos.

E não nos iludamos com ensinamentos mirabolantes nem falas mansas de mestres de ocasião que prometem fazer de nós o que não somos. Os verdadeiros mestres que andam pelos caminhos do mundo não ensinam nem prometem, estimulam-nos e inquietam-nos.

A nossa inquietude só se apazigua no nosso santuário interior onde pelo silêncio nos entendemos, conhecemos o mundo e os deuses. Ruidosa como é, a sociedade moderna rouba-nos a alma e endurece-nos o ouvido. Sobretudo, endurece-nos o ouvido interior que deveria escutar com frequência a Voz do Silêncio.

(Abdul Cadre - Lisboa)

* Este artigo resultou da reformulação duma crônica que publiquei em 1998, no extinto semanário Voz do Barreiro, Portugal, e de um texto com este mesmo título, publicado no Boletim da Sociedade Brasileira de Eubiose, também em 1998.

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