OS VIVOS E OS MORTOS
O HOMEM medievo, que tinha uma curta esperança de vida – a esperança média de vida não ia além dos 38 anos – compensava-se com a convicção de uma vida eterna após a morte, num além distante e à mesa do Senhor. Mesa farta, já se vê.
Esta ideia de banquete vir-lhe-ia certamente como compensação da muita fome passada aqui por baixo e a de Paraíso do muito sofrimento e infelicidade a que mundo concreto o sujeitava, bastas vezes, porém, com a sua própria participação ou apatia, fosse por medo ou por desleixo.
O medo da morte era nesse tempo talvez maior do que na Idade Média actual, creio que devido ao facto de antigamente não haver luz eléctrica nem raios lazer. De qualquer modo, o medo da morte e o seu oposto complementar, o desejo de eternidade, ficaram-nos gravados profundamente lá nessa coisa que ninguém sabe onde fica que é o subconsciente – ou será no inconsciente? – que por si sós, desejo e medo, poderiam constituir perfeitamente duas religiões que mutuamente se digladiassem em excomunhão para cá, excomunhão para lá.
Nos dias que correm, andando nós tão anestesiados, isto não é tão vivamente sentido como o foi no passado. Constituímos sociedades de fuga e corre-corre que não nos deixam tempo tampouco para acarinhar os vivos, quanto mais para cultuar os mortos e temer a morte. A morte vem e apanha-nos de surpresa. Nem sequer nos sobra o tempo para mesas fartas onde se coma devagar. A cidade impõe-nos o pronto a comer, o pronto a vestir e – porque não? – o pronto a «chorar» os mortos e inumá-los.
Quem sabe se com uma boa campanha publicitária não viria a moda de ter de volta as carpideiras. Com o desemprego que por aí grassa, seria bom para o PIB. É pá, qual é a tua profissão? Eu não tenho profissão, choro nos enterros.
Mas por mais que se embrulhe a memória em véus de disfarce, sempre lá no fundo do nevoeiro de nós uma ave se agita. É a simorgh dos persas, a kerkes dos turcos, a Onech dos hebreus, a Fénix da tradição helenística. Quem der valor à mitologia poderá sempre dizer que da cinza dos nossos dias para novos dias nos podemos levantar, mesmo que não haja banquete. E os dias que se inventam pelo voo são uma forma de recordar em novas formas o apelo que nos vem da noite dos tempos; a saudade de uma idade de oiro, quer ela tenha existido quer não. Saudade, afinal, do futuro. Isso é que é. Que do presente, conformado como está por esta coisa chamada de crise – etimologicamente crise significa ruptura – ninguém irá ter saudades. Nem sequer os seus fautores, que são também os seus beneficiários, porque não consta que os mortos tenham saudades.
O HOMEM medievo, que tinha uma curta esperança de vida – a esperança média de vida não ia além dos 38 anos – compensava-se com a convicção de uma vida eterna após a morte, num além distante e à mesa do Senhor. Mesa farta, já se vê.
Esta ideia de banquete vir-lhe-ia certamente como compensação da muita fome passada aqui por baixo e a de Paraíso do muito sofrimento e infelicidade a que mundo concreto o sujeitava, bastas vezes, porém, com a sua própria participação ou apatia, fosse por medo ou por desleixo.
O medo da morte era nesse tempo talvez maior do que na Idade Média actual, creio que devido ao facto de antigamente não haver luz eléctrica nem raios lazer. De qualquer modo, o medo da morte e o seu oposto complementar, o desejo de eternidade, ficaram-nos gravados profundamente lá nessa coisa que ninguém sabe onde fica que é o subconsciente – ou será no inconsciente? – que por si sós, desejo e medo, poderiam constituir perfeitamente duas religiões que mutuamente se digladiassem em excomunhão para cá, excomunhão para lá.
Nos dias que correm, andando nós tão anestesiados, isto não é tão vivamente sentido como o foi no passado. Constituímos sociedades de fuga e corre-corre que não nos deixam tempo tampouco para acarinhar os vivos, quanto mais para cultuar os mortos e temer a morte. A morte vem e apanha-nos de surpresa. Nem sequer nos sobra o tempo para mesas fartas onde se coma devagar. A cidade impõe-nos o pronto a comer, o pronto a vestir e – porque não? – o pronto a «chorar» os mortos e inumá-los.
Quem sabe se com uma boa campanha publicitária não viria a moda de ter de volta as carpideiras. Com o desemprego que por aí grassa, seria bom para o PIB. É pá, qual é a tua profissão? Eu não tenho profissão, choro nos enterros.
Mas por mais que se embrulhe a memória em véus de disfarce, sempre lá no fundo do nevoeiro de nós uma ave se agita. É a simorgh dos persas, a kerkes dos turcos, a Onech dos hebreus, a Fénix da tradição helenística. Quem der valor à mitologia poderá sempre dizer que da cinza dos nossos dias para novos dias nos podemos levantar, mesmo que não haja banquete. E os dias que se inventam pelo voo são uma forma de recordar em novas formas o apelo que nos vem da noite dos tempos; a saudade de uma idade de oiro, quer ela tenha existido quer não. Saudade, afinal, do futuro. Isso é que é. Que do presente, conformado como está por esta coisa chamada de crise – etimologicamente crise significa ruptura – ninguém irá ter saudades. Nem sequer os seus fautores, que são também os seus beneficiários, porque não consta que os mortos tenham saudades.
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