domingo, 31 de janeiro de 2010

Artigo: A Espiritualidade no Século XXI - A/0677

A ESPIRITUALIDADE NO SÉCULO XXI
(Mensagem recebida no Grupo de Discussão Maçônica MESTRE)

Prancha lida na ARLS Iberia Fraternitas. Esta R.·.L.·. pertence à Grande Loja Nacional Portuguesa e é constituída por Irmãos portugueses, franceses, espanhóis e marroquinos. Este ano o V.·.M.·. é francês, o 1º V.·. é espanhol, o 2º V.·. é marroquino e o M.·.C.·. é português. Cada um deles segue o ritual na sua língua natal do R.·.E.·.A.·.A.·..A ESPIRITUALIDADE NO SÉCULO XXISe bem que a palavra espiritualidade figure inominada, eu devo dizer-vos que eu não defenderia aqui uma teoria espiritual que, como outras escolas filosóficas, nos proporia eventualmente um caminho em direção a um nirvana qualquer. Eu falar-vos-ia somente duma ética do homem. Porque a Maçonaria, talvez diversamente de uma igreja, não se submete aos dogmas. Ela tem valores, mas ela está em movimento - ela está percorrendo um caminho.É o encontro entre cada indivíduo consigo próprio, é o encontro com a vida, é o movimento do pensamento, do sentimento, e da razão. E é isto que faz com que a Maçonaria se perpetue no tempo, mas ela não é certamente a mesma que era antes. Porque ela tem uma vocação de resposta a um determinado número de necessidades dos homens, sendo que estas também mudam, porque nós não somos os mesmos homens que viviam há alguns séculos.O termo espiritualidadeUma precaução que eu tomaria no que concerne à palavra espiritualidade. A respeito de certas palavras, é preciso ser bem preciso. Malraux (escritor francês 1901 - 1976) dizia que o século XXI seria espiritual ou não seria. É necessário que nos entendamos acerca desta palavra ambígua, do mesmo modo que o seu uso é também ambíguo. Eu gostaria de relembrar que de um ponto de vista etimológico, a espiritualidade [1] reenvia para uma identificação da alma. Quer dizer que ela tem de fato uma acepção religiosa.Por mim, aquilo que acredito é que o século XXI será espiritual. Creio que o que está em jogo -e é uma das novidades deste século que está no seu começo- é justamente que as duas questões, da religião por um lado, no sentido ocidental do termo "a crença em Deus", e a espiritualidade por outro, isto é, uma determinada maneira "de habitar o mundo, a própria vida, a idéia de confrontar a própria morte", são questões distintas. Acreditou-se durante muito tempo no Ocidente -porque a espiritualidade foi cristã durante vinte séculos- que estas duas palavras, espiritualidade e religião, eram sinônimas e daí que quem não tivesse religião, devia renunciar a toda e qualquer vida espiritual. Eu acredito que aquilo que este século vai viver é a refutação desta idéia falsa. Bem entendido, aqueles que têm uma fé religiosa viverão a sua espiritualidade na fé, mas aqueles que não acreditam em Deus, viverão uma outra espiritualidade sem Deus, uma espiritualidade laica, aderindo neste aspecto à espiritualidade maçônica, do homem em busca de si próprio, que sabe que é imortal, ao contrário de um animal. Isto é uma busca do homem que procura ser mestre de si próprio, mestre do seu destino.Um século XX dramático e inquietanteO século XX decorreu num inquietante balanço. Depois do século XVIII que foi o século das Luzes, aquele da Razão, depois do século XIX, que foi aquele das grandes conquistas sociais, o século XX anunciava-se como aquele do triunfo da paz, como aquele da justiça social, da razão, das Luzes, da sociedade sem classes, da fraternidade universal, como aquele do reino da liberdade.Eu não sei o que escreverão da nossa época os historiadores dentro de trinta ou quarenta anos, mas o balanço do último século conheceu os dois conflitos mundiais mais mortíferos da história da humanidade, e depois conflitos parciais totalizando dois a três vezes o número de mortos da segunda guerra mundial. O século XX devia ser a vitória das Luzes e das liberdades - mas tornou-se, de todos os lados, o regresso em força dos obscurantismos, do clericalismo, da xenofobia, ilustrado quotidianamente pela atualidade.Tanto o nazismo como o comunismo tinham em comum a edificação do homem, dum certo tipo de homem, de onde a dimensão espiritual estava ausente e sistematicamente refutada e combatida. Quantos mártires (mortos pela sua fé, do católico, do protestante, do judeu, do maçom) não estão mais aqui para testemunhar! Os judeus dizem que Auschwitz era e é sempre o lugar onde Deus está ausente. Pouco importa aquilo que nós entendemos por "Deus", se é o Deus de Israel, aquele dos Evangelhos ou o do Corão, ou bem um Deus mais íntimo, recluso no mais profundo de si mesmo. Ele pode, sem dúvida, aí ter o lugar ou os momentos onde (ou seja, aquilo que há de mais profundamente humano em cada um de nós) recusa a manifestar-se. Mas precisamente, escutemos os testemunhos dos recuperados do inferno. Nós estamos bem colocados para saber que da Luz jorra das Trevas e que a Morte não é senão uma ilusão, certamente uma passagem em direção a um outro plano de Conhecimento que é ainda e mais que nunca a Vida.Quanto ao sofrimento, às injustiças das quais somos as testemunhas, às vezes até as vítimas, eu estou convencido que elas têm também um sentido. O problema, é que para saber mais, é preciso passar para o outro lado do Espelho. Mas como imaginar que por detrás desse caos aparente, haverá aí um equilíbrio, uma harmonia?A loja maçônica é uma escolaOs maçons pensam que o homem é susceptível de aperfeiçoamento, e que esse aperfeiçoamento se dá pelo conhecimento, pelo conhecimento do mundo, mas ao mesmo tempo pelo conhecimento de si mesmo, pois não se liberta aos outros senão nos libertarmos a nós mesmos, e os dois movimentos devem caminhar ao mesmo tempo. A escola é para permitir que a criança, com os utensílios da razão, venha a ser ela própria. A loja maçônica não nos propõe mais do que isso. No seu percurso ela não afirma a Verdade. Ela propõe a dúvida. A sabedoria não é uma escola da verdade, é uma escola de dúvida, é uma escola de interrogação, é uma escola de permanente construção de si próprio.Não é uma iniciação de um saber estabelecido, de uma verdade revelada, de dogmas, de uma gnose transcendental. É neste sentido que a palavra espiritualidade pode ser discutível. A sabedoria é um caminho em direção a si próprio. Não é o ponto de chegada, mas o caminho para aí chegar. É a mais bela catedral a construir, é aquela que cada homem constrói em si próprio, é essa do seu coração, é essa da sua razão. E se não nos construímos a nós próprios livremente, como poderemos pretender construir a cidade ideal?Um papel para a MaçonariaDir-me-ão: tudo isso é um pouco triste! Sim e não. É um balanço que deve interpelar-nos, que apela ao sobressalto. As forças políticas penam em encontrar elementos, soluções, mais depressa valores do que marcas de cultura. Pois bem, se nós não somos capazes de fornecer marcas, valores, expectativas, não há nenhuma razão para que amanhã a política se renove no Fórum.E se a Maçonaria, para além da sua missão iniciática, tem uma missão no século XXI, ela deve situar-se no terreno da cultura, no terreno dos valores. É ao mobilizar-se para que as liberdades individuais e coletivas, a liberdade de consciência, os princípios de igualdade, direitos e deveres, os princípios de solidariedade, sejam respeitados e desenvolvidos, que ela encontra sua missão.A esperança, para finalizarE, portanto, a esperança está aí! Ela está na Maçonaria porque, quaisquer que sejam os graus de iniciação maçônica, nós somos todos livres e iguais, portadores de uma esperança de emancipação, de justiça, de razão, de amor pela humanidade.Contrariamente àquilo que muitos pensam, eu não acredito que as nuvens se encobrirão. As novas gerações, aquelas que surgem e que se anunciam, estão em busca de sentido. É muito surpreendente para nós ver esses milhares de jovens aplaudir, por exemplo, um Papa ancião e doente. Todos esses jovens não são crentes. Eles admiram a sinceridade de um homem e a sua capacidade de dar amor e compaixão. Eles sentem confusamente também que a nossa sociedade desorientada tem necessidade de marcos morais e balizas, mesmo se a chamada de atenção de certas regras do "Viver em conjunto" pode incomodar-nos, porque elas parecem ir ao encontro da nossa busca pessoal da verdade. Melhor dizendo, eu creio que nós não seríamos muito sensatos, nós os maçons, sem ter em conta essa sede de espiritualidade que se vê manifestar por todo o lado, mesmo se ela toma por vezes formas sectárias e dogmáticas. Mesmo na nossa maneira de abordar as questões de ética ou de sociedade.Acontece, que certos maçons pensam que a velhice e os graus lhes conferem o poder e a autoridade. Eles são felizmente muito poucos. Pois que, de fato, os únicos graus que existem em Maçonaria são graus espirituais, isto é, que balizam um percurso de si para si. Isto não confere nenhum poder, nem virtude. E quando esperamos pelo último grau, o cume da montanha mágica, da pirâmide, - eu não descubro nenhum segredo aqui - descobrimos que tudo que está em cima já está em baixo, que o que conta, não é o ponto de chegada, é o caminho que percorremos no "eu interior". É a descoberta que fazemos em nós mesmos. É o olhar do "outro". É a conversão do olhar que temos em relação a nós próprios.Eu creio que é isso que precisamos encontrar. César enganou-se: os homens não se satisfazem com o pão e com o circo. Eles têm necessidade de sentido. Eles têm necessidade de esperança. Eles têm necessidade de pensar que amanhã será melhor. Pois, se a História da humanidade tem um sentido, é precisamente esse do longo caminho em direção à sua emancipação, em direção à emancipação dos homens, périplo que cada geração deverá refazer no interior de si mesma. Pois podemos tudo ensinar aos nossos filhos, mas nunca o caminho em direção a eles mesmos.Em última instância, do meu ponto de vista, é essa a mensagem da iniciação maçônica. Será isso talvez a espiritualidade maçônica que se prepara para o século XXI: sair da pré-história dos preconceitos, das pré-histórias das alienações, tentando ir sempre mais além num mundo de liberdade e de dignidade: fazer louca a fanfarronada, mas maravilhosa, produto da inteligência humana.É este o grito que eu tento exprimir. Era preciso dizer num dado momento: nós somos ricos e não o sabemos. Não procuremos para além daquilo que temos, cultivemos o que temos. É também talvez isso a força da vida que nos oferece a Maçonaria para o século XXI. É esta esperança que eu tento partilhar convosco.
G.CARRAZ

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