PEQUENA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DO RITUAL
Conquanto se possa, movido por desejo de rigor etimológico, fazer distinção entre rito, ritual, ritualística e liturgia, ao analisar os conceitos referentes ao cerimonial em Loja optamos aqui pelo termo ritual que, conforme o Aurélio, pode ser usado sem prejuízo como sinônimo de todos os demais.
Minha atenção sobre o ritual foi mais agudamente despertada pelo comentário de um Irmão sobre como era curioso que homens adultos e razoáveis se prestassem a participar de cerimônias tão pouco usuais quanto as que praticamos em nossas Lojas, com todos seus sinais, símbolos, diálogos e movimentações tão esquisitos a um olhar profano.
Refletindo sobre esse comentário, quero crer, hoje já bem distante do fato, que o mesmo expressasse uma certa inadaptação ao grupo. O ser humano é essencialmente ritualístico e toda nossa vida é um participar de cerimônias socialmente estabelecidas para os vários momentos fortes da existência, tenham caráter religioso ou profano: nascimento, batismo, namoro, casamento, formatura, morte. Se pudéssemos olhar nossas práticas culturais com o mesmo distanciamento com que olhamos as práticas alheias (dos índios e dos estrangeiros de uma forma geral), veríamos que são tão estranhas quanto, a princípio, possa nos parecer nossa ritualística maçônica.
Ainda assim, apesar dessa constatação mais geral, há algo na pergunta que realmente solicita uma resposta: os ritos sociais se cumprem e se mantêm apenas porque cumprem uma função social, sejam os atores conscientes ou não disso. Ao não cumprirem mais qualquer função, as práticas sociais se enfraquecem e tendem ao desuso[1]. Nesse sentido estrito, a pergunta: "o que leva pessoas mentalmente sãs, adultas e razoáveis a praticarem rituais, mesmo quando se dão conta de sua excentricidade", se transforma na questão: "que função ou funções sociais ou psicológicas cumprem nossos rituais maçônicos para que continuemos a praticá-los?".
Pretendemos neste trabalho ensaiar uma resposta a essa questão.
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Considerando que o ser humano tanto vivencia uma instância material (a "realidade concreta") quanto uma ideacional (suas interpretações, símbolos, ideais, valores, mitos, etc.), partimos do axioma de que o ritual é uma dramatização que, por sua natureza humana, ocorre como interseção entre a idealização e a realidade. Isso pode ser mais "visível" nos rituais religiosos que nos profanos: naqueles, a miscigenação de nossas esperanças com nossas realidades concretas é tal que encontramos dificuldade em separar o "crer" do "saber". Esse estado de "dúvida latente" é condição sine qua da existência dos rituais. Nesse sentido, o ritual é uma transfiguração simbólica que permite, ainda que no plano do imaginário, transformar a realidade em ideal e o ideal em realidade.
Mesmo nos rituais profanos esse caráter está presente: o casamento, por exemplo (que é hoje em maioria um ritual social e não religioso, apesar de realizado num templo), "atualiza" o futuro, "garantindo" no cerimonial que se cumpra a felicidade que se almeja.
Mas no ritual maçônico, especificamente, que condições estão presentes a fim de permitir essa transfiguração simbólica entre o real e o ideal? Cremos que existem três condições necessárias a essa alquimia que se dá em nossas liturgias:
a) uma condição espacial: a cerimônia se dá num espaço geograficamente isolado (o templo) que separa o "mundo lá de fora" do "nosso mundo", como se num círculo mental "mágico" que impede a contaminação pela realidade social concreta. Essa separação repete no espaço a divisão conceitual do mundo entre "sagrado" e "profano", tão necessária à relação dialética entre o ideal e o real.
b) uma condição temporal: o drama representado é a-histórico no sentido de que, por se vincular a um passado mítico e tradicional, é estático, permitindo, assim, que a atualização dos ideais se realize apenas simbolicamente, sem um necessário compromisso com a efetiva transformação da realidade histórica concreta. Não que essa condição seja determinante de um descompromisso social, mas, por sua própria natureza, tanto permite uma opção transformadora da realidade quanto uma de reconstrução apenas simbólica do mundo, no sentido de transformar-se em apenas um belo discurso.
c) uma condição ambiental: o cenário compartilhado, composto de objetos e símbolos que remetem a um contexto congelado no passado, reforça a idéia de comunhão na tradição. Isso permite o encontro de pessoas social e ideologicamente diferentes como se fossem semelhantes.
A proibição de se trazer a discussão de certos temas para a Loja tem por função evitar que esses objetos e símbolos reassumam seu caráter real e passem a dividir o que, no plano simbólico, unem de maneira ideal e não real. Da mesma maneira, esses temas trazem o perigo de contaminar o sagrado pelo profano e historicizar o mito, exigindo uma tomada de posição concreta frente à realidade, desmitificando o rito.
Nossa liturgia é, então, estruturalmente alienante? Creio que não e voltarei ao assunto. No momento importa ainda considerar outra questão: apontamos as condições que permitem ao nosso ritual situar-nos entre a realidade material e a ideacional. Mas que funções tal condição atende, fazendo com que tiremos prazer de, semanalmente, participarmos desse cerimonial com reverência e seriedade?
· Em primeiro lugar, a nível pessoal, a participação numa comunidade que, mesmo simbolicamente, realiza a união dos diferentes, é catártica, aliviando nossas frustrações, redimindo nossas culpas e reavivando nossas esperanças num mundo mais justo.
· A nível social, o sentimento de pertinência a um movimento universal, por sua vez, fortalece nosso sentimento de poder, mesmo que vicariamente. Isso não é pouco num mundo onde a auto-estima dos indivíduos anda pelas sarjetas.
Voltemos, então, à questão da alienação: nossa liturgia é fatalmente alienante? A resposta mais ponderada é: não mais que qualquer outra. A alienação é uma condição possível do homem e, portanto, potencialmente presente em qualquer situação humana.
Até aqui falamos da face simbólica e mítica do ritual. Nossos encontros, contudo, são fatos sociais reais, interpenetrados pela vida concreta com todas as suas contradições e que não se esgotam na dramatização ritualística. Do ponto de vista social, por ser organizador, tanto externa quanto internamente, o ritual realimenta as energias psíquicas e as relações interindividuais; por sua utopia constantemente reafirmada, a participação ritualística reaviva as crenças e as esperanças, mobilizando, mais cedo ou mais tarde, o indivíduo; por sua própria função de transcender, ainda que simbolicamente, a contradição entre o real e o ideal, acaba por explodir suas próprias fronteiras, produzindo a extrapolação de atitudes e comportamentos a outros níveis do social (familiar, religioso, político, etc.), produzindo uma participação no sistema que ora é conservadora, ora é revolucionária, mas que sempre é socialmente relevante, como a história tem freqüentemente anotado.
[1] Falarmos da função de uma prática social, aqui, não implica em adesão aos postulados sociológicos da escola Funcionalista.
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