O TALEBAN E A MAÇONARIA
O Taleban é o grupo extremado islâmico que domina o governo do Afeganistão.
O que é que o Taleban tem a ver com a Maçonaria? Esta semana, muito especialmente, tem tudo a ver. Esse grupo acaba de decretar que a minoria não islâmica do Afeganistão passe a usar identificação que a distinga da maioria dominante. Nada leva a crer que esse ato seja a expressão da vontade do povo afegão, mas a posição de um governo teocrático intolerante.
Essa atitude recorda a odiosa prática nazista de obrigar os judeus alemães a também usarem identificação nas braçadeiras, e que acabou por condená-los à exterminação nas câmaras de gás.
É, portanto, a restauração de uma prática pior que a intolerância: a discriminação pelo ódio.
Tenho escrito alguns trabalhos sobre a questão política e a nossa Ordem, alguns deles gentilmente publicados por esta revista[1]. Neles, tenho reiterado minha fidelidade ao preceito de não tratarmos de questões religiosas ou político partidárias na instituição. Tenho, porém, ressaltado – no que apenas faço coro a autores renomados – que política, no sentido lato do termo, está vinculada à essência das relações humanas, e não há como não enfocá-la ao se tratar dessas relações.
O caso do Afeganistão é exemplar. Não temos, nem enquanto seres humanos e menos ainda enquanto maçons, o direito de criticar os fiéis ao islamismo, e menos ainda de lhes negar o sagrado direito de viverem segundo suas convicções. Pela mesma razão, contudo, temos o dever de denunciar e combater todo preconceito e, especialmente, toda segregação, quer venha travestida de motivações religiosas, quer de motivações econômicas ou políticas.
Este novo período histórico que vivemos - que a etiqueta política denomina neoliberalismo e a econômica globalização - tem a marca cada vez mais visível da exclusão e da discriminação. Não são apenas as minorias – negros, mulheres, índios, desempregados – que são excluídas dos processos econômico e político. Populações inteiras estão sendo condenadas à morte por penúria, para que o lucro de uma minoria cada vez mais seleta não seja afetado.
Um dos grandes sociólogos da atualidade, o português Boaventura de Sousa Santos, nos diz em reportagem no jornal A Folha de São Paulo[2], que há três novidades no novo processo civilizatório instaurado pelo neoliberalismo: a primeira é que o modelo político-econômico atual é essencialmente excludente, pois implica na homogeneização de trabalhadores, produtores e consumidores, o que repele todas as formas discordantes das trazidas pelo modelo. A segunda é que esse modelo dividiu os direitos humanos em categorias estanques: direitos civis, políticos e sócio-econômicos, privilegiando a primeira e eliminando de sua ética tanto os direitos políticos quanto os sócio-econômicos. Assim fazendo, o modelo neoliberal desestruturou essa totalidade de direitos que constitui o que compreendemos como Direitos Humanos.
Essa desestruturação dos direitos, que acabou elegendo as razões econômicas como as próprias razões do Estado, está na gênese dessa “lógica do pragmatismo” que pretende orientar a coisa pública, submetendo a si todos os demais direitos, inclusive os individuais.
O Estado, como instância de mediação dos conflitos sociais de várias ordens, entre as quais a econômica, deve ser o espaço regido pela lógica política – de administração da polis -, que é a lógica da garantia dos direitos, especialmente o direito dos mais fracos.
Quando o Estado, como os Estados neoliberais modernos, pretende se reger pela lógica econômica, subordinando a ela as instâncias política e social, vivemos uma situação de verdadeira catástrofe. Não precisamos de mais exemplos do que as recentes tentativas do Poder Executivo brasileiro de “convencer” o Judiciário de que fazer justiça torna o país ingovernável e ameaça a estabilidade econômica.
Essa aberração neoliberal, por si só, já justificaria uma ação firme de tantos quanto sentem responsabilidade pela sociedade em que vivem.
A terceira novidade, finalmente, decorre do próprio processo societário: como se multiplicaram as formas de poder, resultado da marginalização e conseqüente organização de inúmeras categorias sociais, a conquista do poder do Estado já não é mais a solução para os vários conflitos e as múltiplas necessidades que afloram. A solução não está em se destruir o que existe, mas em se construir formas alternativas de convivência política, econômica e social, que redistribuam o poder e permitam o acesso das maiorias à produção social, política e econômica dessa nova sociedade.
No contexto atual ressuscitam com todo vigor os sempiternos assassinos de Hiran, não mais simbolicamente, mas personalizados em grupos econômicos e políticos que não se importam com a exclusão maciça de seres humanos do direito à vida e nem com o suicídio ecológico que está sendo perpetrado em nome de inflexíveis leis econômicas.
Nem é preciso mencionar a resposta que é dada à pergunta do Venerável, que se repete diariamente por milhares de vezes nos Templos espalhados pelo mundo: “Irmão Primeiro Vigilante, para que nos reunimos aqui?”, para percebermos o importante papel a que nossa Ordem é chamada a desempenhar neste grave momento histórico por que passa a Humanidade.
Se for verdade que não cabe à Maçonaria assumir posições político partidárias, também é verdade que cabe sim à instituição, como decorrência de sua filosofia e doutrina, uma postura intransigente – interna e externamente – contra todas as formas de opressão, injustiças, corrupção e atentados à ética.
Hoje, mais grave do que o conflito de classes, que até há pouco ainda nos permitia a comodidade de nos recusarmos a aceitar certas posições ditas ideológicas, trata-se da marginalização, por pura intolerância, de grupos, categorias, etnias e nações inteiras.
Hoje, mais do que uma disputa política entre esquerdas e direitas, o que temos é a condenação de contingentes cada vez maiores de seres humanos à miséria, à fome, ao desemprego, à simples inutilidade como seres humanos.
Hoje, mais do que a simples condenação de alguns, o que temos é a séria ameaça de extinção da humanidade pela destruição acelerada do ar, das águas, da terra e do próprio Homem, através da manipulação genética irresponsável.
Em meio a essas graves questões, temos que repensar a Maçonaria. Não se trata de transformá-la em alguma coisa nova, mas em fazermos uma leitura atenta do que ensinam nossos rituais e do que vemos escrito em nossa história.
Desde a Iniciação, tornar-se maçom é jurar um compromisso com a Verdade, a Ética, a Justiça, o socorro aos necessitados. É jurar combater a intolerância, a iniqüidade, e todas as formas de óbices ao crescimento e ao desenvolvimento do Homem.
Frederico Guilherme Costa nos diz, em livro recente, que “(...) de tudo o que foi exposto, fica a constatação de que a Maçonaria efetivamente representa uma forma alternativa de sociabilidade. Os Maçons nada mais procuram do que viver em comunidade, em comunhão com o mundo”[3]. Em que pese o profundo respeito e admiração que tenho por esse profícuo autor maçônico, se assim fosse não haveria razão para sermos uma instituição iniciática. Aliás, nem haveria razão para existirmos, se fosse apenas para concorrer com outras associações culturais e filantrópicas, bem mais eficientes nesse mister de promover sociabilidade.
A nossa Ordem tornou-se “Potência” no século XVIII como uma instituição burguesa. Só que a burguesia, naquela época, representava o que de mais avançado e revolucionário havia como força de transformação social. Hoje, após a consagração histórica da burguesia, a inércia tende a transformar-nos naquela caricatura consagrada do burguês – gordo, bem vestido e socialmente inútil.
Na maioria das instituições que fazem aniversário em séculos, entre as quais a Maçonaria e a Igreja, as figuras aguerridas e progressistas dos fundadores tendem a ser substituídas por caricaturas.
A Maçonaria deve reler seus princípios e sua filosofia. Seu objetivo é transformar o Homem porque crê que, assim o fazendo, transformará o mundo. Mas para transformar o Homem necessário é transformar seu contexto, pois qualquer um dos Irmãos que reflete este tema comigo sabe bem que se não dermos ambientes éticos e sadios a nossos filhos, de nada adianta exigirmos deles comportamentos éticos e sadios. Nossa materialidade exige que, para a realização de nossos ideais, contemos com meios apropriados e apoio constante.
Não será de nossos discursos que nossos filhos e netos tirarão seus exemplos, mas de nossas posições firmes e de nossas ações resolutas.
[1] Preparado, inicialmente, para publicação na Revista O PRUMO.
[2] De 10/04/2001, p. A3.
[3] A Trolha na Universidade, editora A Trolha, Londrina, 2001, p. 90.
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