DESBASTANDO A PEDRA BRUTA
HÁ COISAS QUE NOS ATINGEM E SOBRE AS QUAIS NÃO TEMOS CONTROLE
Viver é uma coisa coletiva. Por mais que nos esforcemos, o “mundo lá de fora” invade nossas vidas e nos deixa sem controle sobre a maior parte das coisas. É o trabalho; a escola dos filhos; as despesas; os problemas de saúde; são os amigos e os parentes; às vezes os vizinhos; todas essas coisas e pessoas interferem em nossos planos e mudam nossos projetos, alteram nossos sonhos, e muitas vezes ferem nossos sentimentos de maneiras as mais variadas. Muitas de nossas tristezas vêm de forma inesperada; a maioria das nossas alegrias também.
Passar da adolescência para a vida adulta é, entre outras coisas, aprender que a vida que pensávamos fazer “segundo nossos planos” tem a mania de acontecer quase sempre de forma diferente.
A TEORIA DO A B C
Se nos perguntarmos o que é que principalmente nos diferencia de outras formas de vida - animais e vegetais -, sem dúvida responderíamos que é o sentimento. Tristeza, alegria, raiva, medo...são essas coisas que fazem da vida uma vida humana. De outra forma, os acontecimentos não seriam para nós diferentes do que são para uma pedra, por exemplo.
Albert Ellis é um psicólogo americano que desenvolveu uma teoria interessante: a Psicoterapia Racional-Emotiva, que diz que “o que importa não são os fatos, mas como nós nos sentimos diante deles”. Nos diz ele (e é verdade!) que um mesmo fato pode produzir reações diferentes em pessoas diferentes, assim como um fato pode produzir reações diferentes na mesma pessoa em duas situações diferentes. Todos podemos nos lembrar de situações como essas.
Tomemos um exemplo. Nosso filho chega em casa e nos diz: “um menino pegou a minha bola e eu dei um chute nele”. Parece que há uma causa (a): “um menino pegou a minha bola” e uma conseqüência (c): “e eu dei um chute nele”. Mas o menino poderia ter pegado a bola e nosso filho não ter dado um chute nele, não é mesmo? Então, pensou Ellis, entre um acontecimento (a) e uma conseqüência (c) existe algo mais: um sentimento (que ele chama de b - belief - "crença" no original).
Então a coisa não se passou como pareceu à primeira vista:
a ® c acontecimento - conseqüência
O que ocorreu foi:
a ® b ® c acontecimento - sentimento - conseqüência
A informação completa de fato seria: “um menino pegou a minha bola [eu fiquei com raiva] e dei um chute nele”. Havia um fator oculto na explicação do ocorrido, embora ele não fosse consciente.
A compreensão desse fenômeno é muito importante e a primeira lição que tiramos daí é que, mesmo que não possamos mudar um fato, podemos mudar nosso sentimento em relação a ele...e com isso as conseqüências também poderão mudar.
MAS A BALANÇA TEM DOIS PRATOS: CRENÇA/SENTIMENTO
O termo do meio -b- é na verdade uma balança com dois pratos: sentimento e crença.
Tomemos um exemplo comum: quando alguém fala mal de minha religião (se eu tiver uma), eu fico com tanta raiva quanto esse alguém ficaria se eu falasse mal da dele (se ele também tiver uma). Isso não acontece porque minha religião é certa e a dele errada, ou vice-versa; isso acontece porque tanto eu quanto ele aprendemos a crer que nossas religiões são certas. Essa é a segunda lição que tiramos daquela teoria do a ® b ® c do Albert Ellis. Nossos sentimentos são, na verdade, aprendidos e apreendidos durante nossa vida, especialmente na fase em que nossas defesas (a fase em que ainda não sabemos julgar por nós mesmos) ainda são muito fracas: a infância.
Nós aprendemos coisas diretamente com a nossa experiência de vida e através das pessoas que nos são significativas. Dessa forma, quando caímos da escada, queimamos a mão na chaleira ou levamos um choque na tomada, estamos aprendendo. Quando uma pessoa nos ensina a fazer um carrinho, um estilingue ou uma pipa, também estamos aprendendo.
Mas também apreendemos coisas indiretamente: quando vemos alguém tentar nos esconder algo - um beijo de namorados, por exemplo - pode ser que arquivemos a idéia de que beijar é uma coisa feia; quando pedimos um favor ao pai e ele, ocupado, inconscientemente faz aquela cara de chateação, pode ser que arquivemos a idéia de que não somos bem-vindos; quando tentamos contar à mãe o que nos ocorreu na escola, tropeçando nas palavras de tanta excitação, e ela nos diz aquele “fala logo menino, não vê que estou ocupada?”, pode ser que arquivemos a idéia de que não somos amados.
“Assim, seriam as idéias que as pessoas têm das coisas, e não as próprias coisas, que as levariam a experimentar sentimentos diversos".[2]
É claro que nem toda conclusão que tiramos de nossas experiências são irracionais. Quando eu meto o dedo na tomada e levo um choque, e concluo que tomada dá choque, minha conclusão é bem racional. É uma interpretação lógica dos eventos e, mesmo que produzam sentimentos (raiva, frustração, tristeza, etc.), esses sentimentos são “normais”, isto é, não causam danos muito desastrosos em minha vida.
Agora, quando minhas conclusões são emocionais, elas podem conduzir a conseqüências desagradáveis e desgastantes, capazes de produzir graves distúrbios de sentimento e de comportamento.
Esses distúrbios podem ser encontrados nos sentimentos de ansiedade, culpa, auto-censura, fazendo com que:
1. Sintamos necessidade de sermos amados por todas as pessoas.
2. Desejemos ser bem sucedidos em tudo que fazemos.
3. Achemos terrível que as coisas não sejam exatamente como gostaríamos que fossem... e assim por diante (grifos meus)[3].
O objetivo da reflexão, da auto-análise, da terapia, e de outras formas de busca de mudança, é identificar, questionar e eliminar essas e outras idéias irracionais que impedem as pessoas de viverem uma vida satisfatória e feliz. Quando discutimos nossos sentimentos com outras pessoas (que também têm seus sentimentos), a tarefa fica bem mais fácil.
COMO AS CRIANÇAS EXPRESSAM E DESAPRENDEM SEUS SENTIMENTOS
Jesus disse que se não voltarmos a ser crianças, dificilmente entraremos no Reino dos Céus. Mesmo que não sejamos religiosos, essa é uma profunda verdade. A criança goza de uma pureza e de uma liberdade invejáveis.
Um dia desses eu lia nos jornais que uma Diretora de Escola nos Estados Unidos suspendeu por uma semana um menino de seis anos que beijou no rosto uma coleguinha de turma. Motivo: assédio sexual! É assim que nós, adultos, ensinamos as crianças a terem sentimentos "adultos".
A criança pequena é inteiramente livre para sentir e para expressar seus sentimentos, puros e livres de quaisquer interferências. “Livre também é sua expressão: ela chora, ri, repete o que lhe dá prazer e rejeita o que não dá. Mais tarde, quando já faz uso da palavra, diz abertamente o que sente, de uma maneira tão direta e verdadeira, que chega a embaraçar os adultos”[4].
Mas muito cedo, também, a criança começa a ser podada em seus sentimentos. É uma repreensão aqui, uma agressão ali, um levantar de sobrancelhas, um franzir de testa, uma palavra mais azeda e...pronto: a criança já começa a aprender que o importante não é sentir, mas obedecer.
Agora, a sociedade já lhe está sendo apresentada. A criança aprende e apreende que tem que seguir regras e padrões para que seja uma pessoa “adequada”. Também aprende que a regra mais fundamental da sociedade em que ela está inserida é mentir: mentir escondendo o que sente, calando o que quer falar, fazendo o que não deseja. Podemos nós mesmos aumentar essa listinha por algumas páginas mais.
A criança vai aprendendo a reprimir e a camuflar seus sentimentos em função dos ‘valores’ que o meio social atribui aos papéis sociais e às coisas que lhe vão sendo impostas: assim, ela aprende que “homem que é homem não chora”; “lugar de mulher é na cozinha”; “menina não brinca com bola”; “homem não leva desaforo para casa”; etc. Com isso, aprende que existem papéis de homens e papéis de mulheres. Aprende, também, que há sentimentos de homens e outros de mulheres. Aprende que homem não pode ter medo e que mulher não pode ganhar mais do que homem. E aprende...e aprende...e aprende...
E quanto aos valores? Quem ainda não viu uma criança ouvir, depois de quebrar um vaso: “você sabe quanto custou isso?”; ou, depois de chegar com um mal resultado da escola: “você sabe o sacrifício que eu faço para que você estude?”; ou, ainda: “eu me mato de trabalhar para que você isto ou aquilo”. Com isso, a criança também aprende que ela vale bem menos do que os objetos (já percebeu que "caro" é usado como sinônimo de "querido"?) e sabe menos do que as outras pessoas que, afinal, são grandes e não erram nunca, não é mesmo?
E “...a criança vai se encolhendo pouco a pouco, reprimindo suas emoções. No início, temerosa de não ser aceita, depois até culpada por estar sentindo, acaba tão impossibilitada de ser ela mesma quanto os adultos que estão à sua volta”.[5] Isso é importante de ser repetido: tão impossibilitada de ser ela mesma quanto os adultos que estão à sua volta!
Quando reprimimos nossas emoções, elas não desaparecem simplesmente no ar. Permanecem dentro de nós, em algum lugar, criando medos, insatisfações e dúvidas, que nem mesmo sabemos de onde vêm. Quando tudo parece perfeito, continuamos insatisfeitos sem saber o por quê. Outras vezes é o corpo que reflete nossos sentimentos reprimidos: dores inexplicáveis, insônia, falta de apetite e até aquela dorzinha meio generalizada. Quando não é a crise maior: o casamento desfeito, o emprego abandonado, a alienação mental.
AUTOCONHECIMENTO COMO CONDIÇÃO PARA DESBASTAR A PEDRA BRUTA
Buscar o autoconhecimento não é mais do que buscar a compreensão de nossas potencialidades, limites e...sentimentos.
“Quando me observo e me escuto, posso perguntar-me: o que estou sentindo neste momento? De onde vem este meu sentimento? O que quero? O que não quero? O que é importante para mim?”.[6] Em relação aos meus relacionamentos, posso também me perguntar: por que fiquei com esta raiva? O que me levou a agir desta maneira? Por que disse isso a ele (ou a ela)? Será que disse ou agi assim porque estou com raiva? Desapontado? Envergonhado? Será que estou fazendo o que quero ou o que acho que esperam que eu faça?
Segundo John Powell, "meus sentimentos não se dividem em certos e errados; eles simplesmente existem. (...) Posso mudar minhas emoções. (...) Conhecendo-as e descobrindo sua fonte, posso decidir trocá-las por outras que não sejam tão destrutivas para minha própria pessoa. (...)”.[7] E para as demais.
Essa é uma importante condição para se desbastar a pedra bruta. Afinal, apenas pela razão não conseguiremos jamais "subjugar nossas paixões e submeter nossas vontades". Ao maço temos que juntar o cinzel, para que a brutalidade da força seja guiada pela delicadeza dos sentimentos e a obra brotada de nós se chame BELEZA.
[1] Texto baseado no livro Construindo a Relação de Ajuda, de Clara Feldman de Miranda e Márcio Lúcio de Miranda, editora Crescer, l983, pg.104ss.
[2] p. 106
[3] p. 107
[4] p. 107
[5] p. 108
[6] p. 109
[7] p. 110
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