domingo, 22 de abril de 2012

Artigo: Enfim Sós - A/01153

Enfim Sós!
Desde os confins da longe infância, pelo ouvir das primeiras histórias, em plena inocência, persiste em mim esta curiosidade santa de contemplar o esplendor do Teu rosto, sem ousar tocar as fímbrias do Teu vestido.
O bastante seria uma visão apenas - num abrir e fechar de olhos - da Tua luz que brilha de eternidade a eternidade. Deparar-me-ia com a emoção estremecente, da cabeça aos pés do meu próprio espírito. Uma imagem luminosa capaz de apagar toda e qualquer treva - do meu passado, do presente e mesmo as brumas do futuro sem fim.
Obriguei-me, ao longo da vida terrena, na impossibilidade de contemplar o Teu semblante divino, ocupar-me tão só na observação das Tuas maravilhas. Tão simples quanto misteriosas ao mesmo tempo.
Nos dias ensolarados, neste meu recanto tropical, posso sentir o Teu calor e a Tua luz. Nas noites – de escuridão e insônia - ao simples abrir a antiga janela, me basta volver os olhos para o firmamento para, não apenas ver, mas também “ouvir estrelas”, como antes de mim o fez o imortal poeta Olavo Bilac.
Pude e posso, contudo, a despeito de Tua proposital invisibilidade, avaliar a Tua ação dinâmica e permanente, através da Mãe Natureza, das mais diversas formas: na placidez da árvore, sobre quem depões o passaredo a dar-lhe a cada dia a voz e o canto. Sim, em beleza visível que se faz notória até mesmo aos mais desapercebidos.
Disfarças Tua presença no mendigo à minha porta; no médico nalgumas vezes que me visitou; no entregador de gás numa moto possante a trazer a chama de que um lar é feito ; na balconista da padaria, a entregar-me o pão nosso de cada dia.
E assim, poderia encher este caderno das tantas vezes que Te vi de modo indireto, oculto, em ciência a arte sem cobrança de direitos autorais, sem a mínima exigência de qualquer reconhecimento. Um sublime anonimato impera em Tuas muitas grandes e pequenas obras, de cujo testemunho, praticamente o mundo inteiro não se ocupa em proclamar. Sim, porque a maioria das pessoas, ainda, não consegue ler a Tua assinatura, mesmo tão visível nas obras de Tuas mãos.
O barco de minha vida, muitas vezes, singrou mares encapelados. Não raro me defrontei com terríveis procelas, que na época acreditei impossíveis de transpor. Tempestades devastadoras, a custo fiz por apaga-las da memória, pois à mera lembrança de tais investidas, ainda hoje me fazem sobrevir arrepios e tremores.
Em termos existenciais, figurativamente, deixei atrás o alto-mar. Já percorri a maior parte de minha viagem, em que em mim depuseste a confiança de um digna travessia, por mais turbulenta que fosse a trajetória. Confesso, com Teu perdão, que em algumas vezes, ante a fúria aparentemente soberana dos tufões, senti fraquejar a minha própria fé. 
As provações, todavia, nada mais fizeram do que forjar-me a alma, como o ouro depurado no cadinho do alquimista. Sei ainda estar longe de corporificar a pedra filosofal.
Ademais, não me embala a certeza da imunidade a eventuais percalços que me separam da ancoragem no porto final. Até porque, nas imediações do cais do desembarque, comumente se precipitam as aves de rapina, ciosas de um marinheiro cansado, de carnes sovadas e melhor afeitas aos seus apetites. Pode ocorrer que tais covardes predadores, useiros em selar de dor a chegança ao destino final, estendam suas garras assassinas para imprimir suas marcas de torturante aflição.
Podem vestir suas penas com matizes terrificantes. Câncer, aids, Alzheimer, Parkinson ou mesmo aquele pássaro esquálido e enrugado, visitante inevitável, mesmo em condições relativamente normais, chamado velhice.
Ainda assim, por mais extremo que seja o desafio a ser enfrentado. Mesmo em meio ao cansaço infrene e à mortal fadiga, não descansarei as mãos do remo nem desviarei o olhar do céu que habitas.
Quando, feliz ou infelizmente, eu der por concluída a jornada terrena, buscarei entre os que me possam informar: “onde se oculta Aquele a quem o céu e a terra proclamam a Sua glória?”
Algum anjo brincalhão, quiçá um ateu abençoado, pode até fazer troça com minha alma recém-chegada e dizer: “Ah, Deus não existe, senão na cabeça dos poetas e dos sonhadores.”
Então gritarei bem alto: Pai, deixe de brincadeira e mostra-me a Tua face, ainda que já me baste o ter visto tudo o quanto fizeste, lá de onde acabo de chegar. “Senhor, não afaste de mim o Teu rosto”.
(Geraldo Generoso, de Ipaussu)

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