Há profissionais da saúde que fazem de sua profissão um
sacerdócio. O médico José Carlos Dias de Toledo, que completou 88 anos no final
de 2012, é um exemplo. Especializado em ortopedia, com passagem por alguns dos
mais modernos hospitais dos Estados Unidos, ele escolheu Maringá para fazer
história. Em 1961, quando a pujante cidade ainda se consolidava como centro
regional, ele chegava com a sua família. Mais de meio século, portanto.
Residiu em Maringá por apenas vinte anos, mas sua atuação
revelou-se decisiva numa época em que parte da população infantil foi
acometida, como em nenhum outro momento, de um assustador surto de poliomielite
(paralisia infantil). Em sua especialidade e por suas iniciativas, Dr. Toledo
destacou-se como o médico que, na oportunidade, estava trabalhando na cidade
onde deveria estar. Colocado certamente por Deus para que quase uma centena de
crianças voltasse a ter qualidade de vida.
A ANPR E O GRÊMIO - O médico possuía uma bagagem de
conhecimentos e técnicas avançadas para os padrões brasileiros que foram
valiosos para o enfrentamento da doença. Nesse contexto, um dos legados que o
eternizam foi a fundação, em 1963, da Associação Norte Paranaense de
Reabilitação, a ANPR, da qual tornou-se também o primeiro presidente e médico
voluntário durante todo o tempo em que residiu em Maringá. A ANPR, que completa
meio século em 2013 como uma referência no Paraná, é um dos orgulhos do Dr.
Toledo, profissional que se notabilizou também a serviço do Grêmio
Esportivo Maringá, o famoso “Galo do Norte”. “Pé quente”, ele experimentou o
sabor da conquista dos dois primeiros títulos estaduais da equipe, em 1962 e
1963, e também do brasileiro, o “Robertinho” de 1969. Portanto, a primeira
façanha foi há 50 anos. Mas não parou por aí. Como ortopedista acostumado a
trabalhar com atletas e que sabia muito bem o que estava fazendo, teve
influência direta no terceiro campeonato do Grêmio em 1977, ao “bancar” perante
a diretoria a capacidade física do centroavante Itamar Bellasalmas, que fora
dispensado do Palmeiras por uma grave virose e, para muitos na época, acabado
para o esporte. Itamar, que escreveu um capítulo feliz da história do futebol
maringaense, não apenas tirou o time da repescagem, como também foi o
artilheiro da competição, fazendo o gol decisivo do título, na célebre disputa
com o Coritiba em plena Capital paranaense .
Há muitas outras passagens envolvendo a
participação do Dr. Toledo, no futebol e fora dele, que o projetaram no País e
no exterior, e levaram adiante o nome de Maringá, como aconteceu no atendimento
prestado ao goleiro Adamache da Seleção Romena, o qual sofreu fratura do malar
(zigoma), num jogo disputado em Maringá, recebendo por isso cartões postais de
agradecimento desse atleta, enviados do México e de Bucareste. Tudo isso faz do
médico um personagem importante, cujo nome é valorizado na memória da cidade.
“CAFÉ COM LEITE” - José Carlos Dias de Toledo nasceu a 10
de novembro de 1924 emBebedouro, no interior paulista, sendo o terceiro filho de uma família de
produtores rurais de linhagem “café com leite”, formada por ancestrais de
origem paulista e mineira. O menino viveu até os cinco anos em Bebedouro,
com seus pais Lúcio Dias de Toledo e Maria de Lourdes Moura de Toledo, ao lado
dos irmãos Paulo, Walter, Lúcia e Maria Aparecida. Nos cinco anos seguintes, a
família transferiu seus negócios para a Fazenda de pecuária “São Sebastião”em
Orindiúva, extremo norte paulista, próximo ao Triângulo Mineiro. José Carlos
foi alfabetizado ali, numa escola rural, sob a orientação do professor Pedro
Lima, homem simples e admirado por seus conselhos. Ao completar dez anos, de
mudança para Barretos, José Carlos recorda-se que recebeu dele uma pequena
carta, na qual se lia: “Vai com Deus e não se esqueça de mim”. Setenta e oito
anos depois, em depoimento a este livro, o médico ainda recordava-se com carinho
do primeiro professor. Em Barretos, os estudos seguiram no Grupo
Escolar e no Ginásio Municipal “Orlando França”.
NA CAPITAL DA GAROA- Com quinze anos, o jovem foi para
São Paulo em busca de emprego para custear o ensino noturno, encontrando
colocação na Cooperativa Central Agrícola de São Paulo, cujos escritórios
ficavam num prédio na Praça João Mendes, atrás da Catedral da Sé. A entidade à
época presidida por Francisco Antônio de Toledo Piza, congregava basicamente
agricultores de origem japonesa e produtores de café, arroz, feijão, ovos,
frutas e outros itens. O jovem cumpria o expediente cuidando das
correspondências e redigindo cartas para associados e repartições
públicas.
Quando a idade permitiu, prestou vestibular para o curso
de Economia na antiga Faculdade de Economia, Finanças e Administração da Cidade
de São Paulo. Ao cabo de três anos graduou-se ao lado de outros 28
bacharelandos. Foi um período difícil e sacrificante: morando em pensão;
trabalhava, estudava e cumpria o serviço de Tiro de Guerra, obtendo o
certificado de reservista pelo TG 35 após juramento à Bandeira no Vale do
Anhangabaú. Rememorando, diz que fazia instruções nos morros inóspitos do
Pacaembu, bivaque em Caieiras e treinamentos para o manejo de fuzil no campo do
Juventus, situado no Bairro da Mooca.
A REVIRAVOLTA – No entanto, como a profissão de
economista ainda não estava regulamentada no país, José Carlos refletiu sobre o
seu futuro e tomou a decisão que lhe parecia mais importante de sua vida até
então: cursar medicina, espelhando-se no sucesso de um tio, irmão de seu pai, o
Dr. Ricardo Dias de Toledo, cirurgião conceituado que atendia pacientes de toda
a região em sua Casa de Saúde “Doutor Toledo”,
na cidade de Bebedouro.
José Carlos o procurou e lembra que o tio ficou
satisfeito com sua determinação, prontificando-se a ajudá-lo
financeiramente. Ele, então, retornou a São Paulo para fazer o curso científico
no Colégio Anglo Latino, preparando-se para o vestibular na Faculdade Nacional
de Medicina da Universidade do Brasil (UB), na Praia Vermelha, Rio de Janeiro.
A Faculdade, uma das mais conceituadas do País, era a mesma em que o tio havia
se formado.
ESTUDANDO E TRABALHANDO - Aprovado em disputado exame
vestibular no ano de 1948, o jovem fez o curso com a duração de seis
anos. Enfrentou problemas de moradia, alimentação e transporte. O bonde
“4-PVermelha” e ônibus “13.E.Ferro-Urca”, lotados e morosos.
Em 1951 voltou a conviver com a tríade morar em pensão,
estudar e trabalhar, com uma diferença: compartilhando, desta vez, com sua
colega de turma Stella G. Rosembaum no Serviço Nacional de Recenseamento, que
funcionava ao lado da Faculdade de Medicina. Ele como codificador e ela como
revisora dos dados do Censo de 1950. Por meio de uma portaria, receberam um
certificado de funcionários exemplares, com 100% de frequência, uma inequívoca
prova de eficiência no trabalho realizado. Stella, de origem alemã com sangue
baiano foi sua “girl-friend”, durante quatro anos. Ela estagiava na Cadeira de
Ortopedia e, isso influenciou na escolha da especialidade que viria a abraçar. Bastante
inteligente, seguiu carreira universitária, tornando-se Catedrática de
Ortopedia, na Faculdade onde-se formou. Ele na fase acadêmica, estagiou-se na
Maternidade Escola de Laranjeiras e no Hospital Moncorvo Filho, já auxiliando
cirurgias. Destacou-se ainda, todos os anos, como representante de turma eleito
pelos colegas; foi diretor do Departamento de Assistência do Diretório
Acadêmico Carlos Chagas. Em 1953, em nome de todos os formandos, foi escolhido
para prestar o juramento de Hipócrates nas solenidades de formatura no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro.
O
tio Ricardo Dias de Toledo
Vale, então, abrir um parêntese e relatar um pouco mais
sobre a vida e a obra desse profissional que foi pioneiro em Bebedouro, onde
inseriu seu nome na história da cidade.
Em 1987, já aposentado, e com a idade de 82 anos, o Doutor
Ricardo foi entrevistado pelo jornal Gazeta de Bebedouro e a matéria com o
título “Por suas mãos passaram centenas de vidas” ocupou uma página inteira na
edição de 6 de junho. Ele havia exercido a medicina por mais de cinquenta anos
e, já com a saúde frágil , recordou-se de ter sido estudante de Engenharia e de
sua eleição para Deputado Estadual pelo Partido Republicano, obtendo expressiva
votação. Filho de fundadores do Município e irmão do ex-prefeito Antônio Alves
de Toledo, o médico alimentava naquele momento um grande desjo pessoal:
construir o Lar do Idoso, na Chácara Paraty, em terreno de quatro mil metros
quadrados de sua propriedade, para assistir àqueles que não podiam gozar uma
velhice digna. Falamos apenas de passagem sobre a importância do apoio do
médico Ricardo Dias de Toledo para que José Carlos, seu afilhado, pudesse
abraçar a medicina. “O médico de hoje sai da escola muito mais
capacitado, mas no nosso tempo a profissão era um sacerdócio. Sem o médico de família,
a medicina mais perdeu do que ganhou”, disse. Ainda sobre o período em que
exerceu a profissão, ele declarou: “A medicina naquele tempo era feita sem os
recursos de hoje. O primeiro raio X da região foi na minha Casa de Saúde. Hoje
é uma medicina gostosa de ser trabalhada, com mais desembaraço. Mas, tenho
saudade do tempo em que fazia diagnósticos muito mais por intuição”. No Posto
de Atendimento Médico “Dr. Ricardo Dias de Toledo”, localizado no Jardim
Sânderson, dedicou-se a um trabalho em grande parte assistencial.
De
Volta à Bebedouro
Iniciando a vida profissional, José Carlos foi trabalhar
com o tio Ricardo Dias de Toledo em Bebedouro, atuando como assistente de
clínica geral e cirurgia. Após um ano, interessado em especializar-se em ortopedia,
procurou o Dr. Luiz Tarquínio de Assis Lopes, conceituado profissional na Santa
Casa de Ribeirão Preto, que o incorporou à sua equipe, da qual fez parte
durante três anos. Reconhecendo o valor de seu pupilo José Carlos como
habilidoso ortopedista, e atendendo a um desejo deste de aprimorar-se cada vez
mais em sua especialidade, o Dr. Luiz Tarquínio o levou a conseguir uma
cobiçada bolsa de pós-graduação de três anos na Universidade da Califórnia, em
São Francisco. Dr. Tarquínio era conhecido do Dr. Ralph Soto-Hall, chefe do Serviço
de Ortopedia do Hospital da Instituição. A única exigência feita é que José
Carlos aplicasse no Brasil, posteriormente, os conhecimentos assimilados nos
Estados Unidos, de maneira a contribuir para o aprimoramento da medicina em seu
País.
Uma
Bolsa de Estudos. Destino: São Francisco
Fazer pós-graduação no exterior não era para qualquer um.
Além de ser muito difícil conseguir, exigia preparo, capacidade de adaptação e,
obviamente, pleno conhecimento da língua inglesa, o que José Carlos não
detinha. Tamanho desafio, em vez de assustar o jovem médico brasileiro, só o
motivou ainda mais a fazer todo o possível para não deixar escapar a
oportunidade.
INCANSÁVEL APRENDIZ - A bolsa, válida para o período
1957-1959, correspondia ao valor de 120 dólares mensais, passando a 200 dólares
após seu casamento, com todas as despesas pagas. E assim, logo ao chegar a São
Francisco, José Carlos matriculou-se numa escola pública para o aprendizado
intensivo do idioma. Não obstante, adquiriu um aparelho de rádio com o objetivo
de familiarizar-se ao som das palavras e, em suas folgas, procurava ver TV para
absorver mais informações.
Em sua estadia, o médico conta que sofreu em razão das diferenças
culturais e ambientais entre os dois países e, particularmente, a saudade dos
familiares e da língua. Mas havia também a preocupação com algo inusitado para
ele: “os tremores de terra” que, de vez em quando, chacoalhavam os ambientes.
Durante um deles, ocorrido no momento de uma cirurgia, o desacostumado José
Carlos lembra que se assustou e, por alguns momentos, deixou a sala. O motivo
de toda essa precaução, foi porque a cidade de São Francisco sofreu um grande
terremoto seguido de grande incêndio décadas antes, mais precisamente no ano de
1910.
APROVEITANDO O TEMPO - O sacrifício valeu a pena: foi um
período de intenso aprendizado e aprimoramento que moldaram o seu perfil
profissional. Nas férias, para aproveitar ao máximo o tempo, ainda procurava
fazer estágios. Um deles, sobre cirurgia de mão, em companhia da equipe
especializada do conceituado Dr. Bunell; outro, com foco no tratamento de
escoliose no hospital do Dr. Joseph Risser em Passadena, próximo a Los
Ângeles.
Interessado por esportes, onde pretendia conhecer um
pouco da atividade médica nessa área, o brasileiro conseguiu permissão para
acompanhar, durante algum tempo, o médico do “San Francisco 49 ers”, importante
clube de futebol americano da Califórnia, fundado em 1946 e um dos principais
ganhadores do Super Bowl, evento tradicional que acontece no dia 1º de janeiro
de cada ano em Pasadena, California, USA.
CAROL BETTY - Dos Estados Unidos José Carlos trouxe não
apenas os conhecimentos e as técnicas mais modernas que fariam dele um
profissional diferenciado em seu País. Em 1958, conheceu e casou-se com a
técnica de Raio X Carol Betty, uma norte-americana cinco anos mais jovem: ele
tinha 33 anos e ela 28. Natural de Denver, Colorado, era filha de um minerador
que se tornou dono de uma área a qual, mais tarde, seria transformada em
concorrida estação de esqui “Vail”, perto de Aspen. O casal formava um par
aventureiros. Os dois gostavam da vida no campo, praticavam aventuras “off
Road” com jeep nas montanhas, pescavam nos lagos das cercanias em Glenwood
Spring – Rio Colorado, pescavam trutas, com ovas de salmão, as
quais foram consumidas pelos familiares em uma cabana nos altos da
montanha.
A cerimônia de casamento realizou-se em Reno, no Estado
de Nevada, onde o jogo é liberado e grandes cassinos funcionam dia-e-noite. É o
lugar preferido por milhares de não-residentes, americanos ricos e famosos,
assim como pelas estrelas de Hollywood, que lá se divorciam e casam de novo,
beneficiando-se da lei estadual de “no-waiting”, para casamento, ao custo de U$
25, favorecendo não só aqueles que se casavam pela primeira vez, como também os
divorciados. Após a cerimônia, era costume jogar as alianças antigas nas aguas
do riacho Truckee, que atravessa a cidade; este fato se tornou um atrativo
turístico, pois, gerou uma nova profissão “os pescadores de alianças”, que as
recolhem por meio de uma rede de malhas finas. No nosso caso nada lucraram, já
que não haviam alianças para ser descartadas.
A exemplo do que ocorrera com o marido nos Estados
Unidos, agora seria a vez de Carol estranhar os costumes e o modo de viver dos
brasileiros. A primeira cidade onde viveu, Ribeirão Preto, exibia ares de
metrópole importante e desenvolvida em comparação à maioria dos municípios, mas
o Brasil não deixava de ser diferente e muito atrasado em relação à realidade
norte-americana.
Anos depois, já no Brasil, Dr. Toledo analisou o perfil
dela, escrevendo: “Quem não teve
oportunidade de conhecer Carol Betty ou de viver com ela, pode imaginá-la
distante e pouco dada a relacionamentos. Todavia, sua timidez escondia uma
mulher simpática e elegante no trato com as pessoas. Recatada e de poucas
palavras, mas delicada nos gestos e atitudes, perfil que caracteriza a maioria
das americanas, incorporou os hábitos e costumes brasileiros, naturalizando-se.
Como uma perfeita ‘house-wife’, priorizou a educação dos filhos, ensinando-lhes
uma segunda língua, o inglês, que viria, sem dúvida, ajudá-los em suas
formações profissionais e, consequentemente, na conquista do mercado de
trabalho, tornando-os plenamente vitoriosos em suas atividades. Carol, uma
mulher mística e com visão de futuro, teve firme determinação para a solidificação
de nossa família. Com
determinação e sacrifício, trilhamos e vencemos os obstáculos encontrados no
caminho da vida, em busca de nossos objetivos que haveriam de ser fecundos e
gratificantes nesta hospitaleira Maringá, que nos recebeu de braços abertos”.
CARTAS SEM TIL, CEDILHA E OUTROS ACENTOS – As maquinas de
escrever daqui não possuem em seus teclados esses acentos. Portanto, nas cartas
que enviamos ao Brasil não consta til, cedilha ou acentos agudos e graves,
conforme se pode verificar pelos recortes de jornais que anexei. Li, com
atenção, sua última correspondência e, concordo plenamente com seus
dizeres. Os preços dos carros entusiasmam a gente. Papagaio! Como andam as
coisas por aqui – eis o raciocínio imediato. Com efeito, meu caro Toledo,
qualquer bexiguinha mambembe, nestes “heróicos brasis”, custa sempre uma
fortuna.
Não há novidades por estas bandas. Tudo como você pode
ver, ainda durante sua permanência nativa. Políticos à procura de negócios
polpudos (embora nem sempre muito honestos), “pelegos” sindicais à cata de
possíveis bandalheiras, e assim por diante.”
Dr. José Carlos Toledo nos escreve: Do Dr. José
Carlos Toledo que se encontra em San Francisco- Califórnia, EE.UU., onde se
especializa no Serviço de Ortopedia do St. Joseph’s Hospital, recebemos
interessante carta, agradecendo a noticia que publicamos sobre sua partida para
aquele grande país amigo e relatando-nos fatos e coisas interessantes por ele
observados no que se refere aos usos e costumes americanos. Dr. José Carlos
fala nos vários “meentings” da especialidade que tem assistido nos diversos
hospitais de San Francisco, do curso que irá iniciar na Universidade de
Califórnia, de ciências básicas aplicadas à ortopedia, do qual pretende tirar o
máximo proveito, dizendo-nos das saudades que já sente do Brasil, de seus
amigos e parentes. Por essa razão falou-nos da imensa satisfação sentida ao
receber uma carta do Dr, Honório. Por nos parecer interessantes certos fatos
relatados pelo missivista, com o máximo prazer os apresentamos aos nossos
prezados leitores. Diz aquele nosso amigo: “aqui se bebe só café aguado em
xícaras de chá; o ônibus custa 15 cents, preço, único. com direito ao
“transfer” para dois outros ônibus; a grande maioria tem carro e televisão; os
carros usados custam uma ninharia e existem milhares à venda, e, este é um fato
que nos impressiona, realmente, pois, como sabemos, no Brasil qualquer
“bexiguinha mambembe” custa uma fortuna. De
todos os Estados, Califórnia é o que possui maior
número de automóveis, porém não existe problema de tráfego; existe, isto sim,
problemas de estacionamento no centro da cidade e o número de mortes por acidente
é elevado; poderá ver pelo recorte de jornal que estou anexando a esta; eu
ainda não comprei carro, penso fazê-lo daqui a dois ou três meses, quando estiver
dominando melhor a língua. Todos pagam imposto de renda, inclusive eu que estou
pagando quase 20%, do que ganho; os quartos e salas de todas as casas e
edifícios têm “heater”. Os tecidos de nylon são baratíssimos; não existem
empregadas; quase todas as senhoras , e senhoritas fumam; em troca, não sabem
cozinhar; o corte de cabelo custa dólar e meio; no dia 22 de novembro “Thanksgiving
Day”, todo mundo come peru. O brasileiro é tido como espanhol.
Geralmente, não conhecem o Brasil e ficam muito admirados quando se lhes
mostra um “pôster” de São Paulo, cidade de 3 três milhões de habitantes; existe
grande número de bancas de jornais sem jornaleiros, onde cada qual apanha seu
jornal e honestamente deixa os 10 cents. Por outro lado, existe W.C, cujo uso
custa 10 cents. O cinema é caro, custando geralmente mais de um dólar; aliás,
na semana passada, fui assistir a essa nova maravilha do cinema que
é o Cinerama, o 3° da série, justamente as “Sete Maravilhas do Mundo”,
onde o Rio de Janeiro é tido como a cidade mais linda, o que constitui motivo de
orgulho para nós brasileiros. Paguei 25 cents; os hospitais e os
honorários médicos são caríssimos.
Agradecemos ao Dr. José Calos Dias de Toledo pela
interessante carta que nos enviou e fazemos votos para que sua estadia na terra
de Tio San seja altamente proveitosa para a sua brilhante
carreira.
Em dezembro de 1956, o médico recebe uma carta assinada
pelo amigo Hélcio Carvalho de Castro, jornalista do setor de Relações Públicas
da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, com o qual se correspondia.
Vale destacar parte do conteúdo da mesma que, embora escrita numa época tão distante,
contextualiza um Brasil pouco diferente do atual em determinados aspectos.
“Recebi dois cartões seus: o primeiro de New York e o
segundo de São Francisco. Não respondi àquele, porque havíamos acertado que
você pouco demoraria na megalópolis estadunidense. Aguardei este e, agora, cá
estou eu, a espetar meus cansados dedos de repórter nas teclas da máquina.
É claro que minha preocupação inicial foi satisfeita logo
às linhas inaugurais do postal californiano, quando você afirma que está
aproveitando ao máximo o curso que a ventura lhe proporcionou fazer (ventura
merecida, é evidente). Esperarei que você conclua o ‘currículum’ de
aperfeiçoamento para, só então, sentir alguma necessidade ortopédica.
De
volta ao Brasil
No mês de agosto de 1959, de volta ao Brasil, o médico
José Carlos Dias de Toledo foi trabalhar novamente na equipe do Dr. Luiz
Tarquínio, em Ribeirão Preto, onde em poucos anos certamente se projetaria como
ortopedista e onde, com seu nome, poderia instalar uma clínica concorrida. Na
mesma cidade, manteve a ligação que havia adquirido com o esporte nos Estados
Unidos, auxiliando o Dr. Luiz Tarquínio a prestar atendimento às duas equipes
de futebol locais, o Botafogo e o Comercial. No ano seguinte, recebeu o diploma
de Membro Titular da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia.
Com o objetivo de desenvolver estudos e pesquisas dentro
da especialidade médica de ortopedia foi fundado no Centro Médico local um
Departamento de Ortopedia, considerado pela classe médica como âmbito regional
e sua fundação reuniu vinte médicos dessa especialidade. A primeira diretoria
eleita ficou contituida pelos doutores Luiz Tarquino de Assis Lopes,
presidente; José Carlos Dias de Toledo, secretário; e Fausto Bergamini, prof.
Marcondes de Souza, da Faculdade de Medicina local; João Marcelino, Benedito T.
Terreri, Ivo Simões Gomes, Camilo Mercio Xavier Jr, Fabio Musa, Paulo Hoelz:
médicos fundadores.
Mudança
para Maringá
Inquieto, Doutor Toledo voltava seus olhos para outras
regiões brasileiras, onde pudesse desenvolver plenamente a sua carreira. Visitara
Campinas, Goiânia, Brasília... mas o destino o colocaria na rota de Maringá,
cidade promissora do norte do Paraná.
Em suas primeiras décadas, as oportunidades oferecidas
por Maringá, cidade que se desenvolvia rapidamente no interior do Paraná,
soavam como um convite para gente do Brasil e até do exterior que sonhava em
fazer riqueza.
A Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP), de
capital nacional, transformou a região em um verdadeiro “eldorado”. Detentora
de 515 mil alqueires de terras férteis ainda recobertas por florestas em parte
do norte e do noroeste do Estado, adquiridas junto ao governo paranaense, a
empresa fundou mais de 60 cidades e fragmentou suas terras para a venda de
lotes urbanos e rurais.
Depois de colonizar e esgotar na década de 1930 a
comercialização de imóveis no primeiro polo, que foi a região de Londrina, a
companhia desenvolveu outros três: o de Maringá, a partir dos anos 1940; o de
Cianorte, nos anos 1950; e o de Umuarama, nos anos 1960.
A população rural, bem maior que a da cidade, ganhou
substância principalmente por causa do café. A cultura, fortemente empregadora.
RITMO ALUCINANTE - Há quem compare a movimentação de
brasileiros provenientes de todas as regiões e de levas de estrangeiros
oriundos de vários continentes, à corrida que se viu na Califórnia em meados do
século XVIII. O solo generoso para se cultivar café e a necessidade de
suprimento de uma população que só fazia crescer, promoviam a derrubada do mato
em ritmo frenético, enquanto casas de secos e molhados, pequenos restaurantes,
hotéis e pensões, bares, oficinas, cerealistas, clínicas modestas e outros
estabelecimentos, abriam suas portas.
Isto acontecia sem que a região tivesse estradas e, sim,
caminhos de terra rasgados em meio ao sertão hostil, que ficavam intransitáveis
quando chovia. Por isso, o tráfego aéreo era intenso, enquanto a ferrovia ainda
avançava. Só ao chegar é que as pessoas se deparavam com as condições
absolutamente precárias e inóspitas que as aguardavam. A maioria das
localidades, incluindo Maringá, ainda não era servida de ruas pavimentadas,
calçadas, água encanada e muito menos saneamento básico. Por sua vez, a geração
de energia elétrica dependia de ruidosos motores estacionários impulsionados a
diesel, que funcionavam apenas em determinados horários. Com isso, lamparinas e
lampiões eram ainda artigos indispensáveis.
OPORTUNIDADES - Mesmo assim, a expectativa de
prosperidade do lugar, baseada no que já havia acontecido em Londrina e no seu
entorno, continuava fazendo com que muitas famílias deixassem seus Estados, ao
mesmo tempo em que outras tantas transpunham oceanos em direção ao tão
comentado norte do Paraná, com predominância de prosperidade aos quatro cantos
e dela também dependia o comércio e a própria vida dos núcleos urbanos.
A
cidade conquistou o Médico
Se de um lado a maior parte dos que chegavam era gente
simples e sem instrução devotada ao trabalho braçal, de outro havia uma parcela
mais sofisticada, formada principalmente por profissionais recém-formados que
tentava alavancar suas carreiras. Eram, principalmente, advogados e médicos - a
classe que habitava as melhores casas, desfilava em carros de luxo,
influenciava na política, convivia em ambientes exclusivos e, por pertencer a
uma camada superior, inspirava justificado respeito e admiração entre os
moradores.
PRURIDOS DE RIQUEZA - Fazer logo o “pé-de-meia” era o
objetivo dos graduados, mas não raro, mesmo os desprovidos de diploma flertavam
com a chance de enriquecer. Homens simplórios, incluindo analfabetos,
conseguiam em poucos anos, graças ao seu pioneirismo, obstinação e faro aguçado
para os negócios, amealhar fortuna explorando filões no comércio ou comprando
terra barata para revender com lucro. Maringá, desde cedo, revelou-se uma
cidade fadada ao sucesso, mas impunha desafios.
Não se pode afirmar, portanto, que todos os que acorriam
ao “eldorado” alcançavam seu intento. Aventureiros não habituados aos percalços
e aos altos e baixos da agricultura, às surpresas preparadas pelo tempo, podiam
ficar arruinados após uma única noite de geada. Por sua vez, hordas de
miseráveis, atraídas pela crença de que “dinheiro nascia em árvore”, formavam
na periferia bolsões de pobreza e desencanto.
Em 1961, dez anos após ter se tornado município e
quatorze se levada em conta à data de fundação (10 de maio de 1947), Maringá já
somava cerca de 100 mil habitantes e apresentava impressionante desenvolvimento
urbano, sendo sede de bispado desde 1957.
Mesmo com o fornecimento de energia elétrica ainda sendo
problemático, havendo constantes apagões – motivo de revolta dos moradores -,
Maringá exibia uma atividade comercial fervilhante e se sobressaía como centro atacadista
importante no Brasil, reunindo dezenas de importadoras e empresas abastecedoras
de secos e molhados.
Apesar de apenas um pequeno trecho das ruas centrais
serem calçadas com paralelepípedos, a cidade se preparava para ganhar seus dois
primeiros “arranha-céus” – o Três Marias, de nove andares, com salas comerciais,
e o Maria Tereza, de doze, residencial, ambos na atual avenida Getúlio Vargas.
A rodoviária nova seria inaugurada no ano seguinte e a Praça Napoleão Moreira
da Silva já estava cercada de grandes magazines, entre os quais as lojas
Pernambucanas, Riachuelo, Prosdócimo e Hermes Macedo.
A população estampava uma mescla de raças, visível sobretudo
no comércio, com muitos estabelecimentos atacadistas e bares comandados por
portugueses; restaurantes dirigidos por italianos; relojoarias, óticas e
quitandas a cargo de japoneses; lojas e bazares mantidas por libaneses, enfim.
RUMO À “CIDADE CANÇÃO”- Foi esta cidade que, no mês de
dezembro, recebeu a visita do médico José Carlos Dias de Toledo. Proveniente de
Ribeirão Preto, ele viajara de carro até Londrina, distante 100 km de Maringá,
em companhia do professor Marcondes, titular de ortopedia da antiga Faculdade
de Medicina do município paulista.
Aos 37 anos, o Dr. Toledo prestava serviços à Santa
Casa de sua cidade, integrando por três anos a equipe do Dr. Luiz
Tarquínio. No entanto, embora bem sucedido, ele acalentava a vontade de
investir conhecimentos em uma clínica própria e trilhar o seu destino
possivelmente em outra região, de forma que nem mesmo o convite feito pelo
professor Marcondes para assumir seu assistente na cadeira de ortopedia da
instituição, conseguiu demovê-lo, mesmo recebendo oferta de um estágio numa
Universidade de Londres.
DR. DALTON PARANAGUÁ - A viagem do Dr. Toledo a Londrina,
onde ele e o professor participaram de um congresso, seria decisiva para o seu
futuro. No evento, reencontrou-se com um colega de turma dos tempos da
Faculdade Nacional de Medicina. O colega era ninguém menos que o Dr. Dalton
Fonseca Paranaguá, médico conceituado, que seria o futuro Secretário Estadual
de Saúde (entre 1966 e 1968, no governo de Paulo Pimentel e Prefeito do
Município na gestão 1969-1972). Em conversa com o Dr. Dalton Paranaguá, Dr. Toledo expôs seu objetivo. Por meio dele,
ficou sabendo das possibilidades oferecidas por Maringá, citada como “cidade
rica e de muito futuro”.
PUJANÇA - Como era a primeira vez que o Dr. Toledo vinha ao
Paraná, tudo lhe pareceu novidade. Estradas muito ruins, ainda sem asfalto,
poeira vermelha, cafezais a perder de vista no campo. Mas o Estado o
impressionava, sem esquecer que Londrina, então “capital mundial do café” –
título que no passado havia pertencido a Ribeirão Preto – apresentava rápido
desenvolvimento. Nesta cidade, como o Hospital Evangélico já contava com
ortopedista, pareceu-lhe convincente a sugestão dada por Dr. Dalton de conhecer
Maringá, para onde se dirigiu sozinho, naquele mesmo dia.
Na cidade, visitou diversos hospitais onde manifestou a
seus diretores o propósito de manter clínica e prestar serviços. Em alguns
deles, encontrou médicos contemporâneos bastante receptivos, que também haviam
estudado na UB, caso do Dr. Michel Felippe, proprietário do Hospital Santa
Lúcia, e o Dr. Fred José Poralla, um dos integrantes do Hospital Maringá,
que o recebeu ao lado dos demais diretores, o Dr. Ivaldo Borges Horta e o Dr.
Francisco Valias de Rezende.
Deu “pane no motor”- Já inclinado a transferir-se para
Maringá, por tudo o que tinha visto e também pela boa acolhida, Dr. Toledo
aceitou um convite do Dr. Fred José Poralla para conhecer o Clube Hípico, um
dos locais frequentados pela “nata” e onde, invariavelmente, próceres do
município tomavam as decisões mais importantes. No caminho, pela avenida
Paranavaí, no entanto, um susto: ao cruzar a linha férrea, já bem próximo do
clube, o veículo conduzido pelo anfitrião, “apagou”. Sem pensar duas vezes,
ambos saltaram rapidamente para removê-lo dali, visto que uma composição
aproximava-se, apitando pouco adiante. Muitas décadas depois, no início de
2013, durante depoimento para produção deste livro, Toledo se recordaria com um
toque de humor desse episódio, dizendo: “Foi por muito pouco”.
DESCONFORTO - Se Carol estranhara o atraso de uma cidade
relativamente bem servida na época, como Ribeirão Preto, o que teria pensado
quando a família transferiu-se para Maringá? Um lugar promissor, sem dúvida,
mas de ruas sem calçadas e com uma insistente poeira vermelha a encardir os
ambientes, quando não a lama gordurosa em prolongados períodos chuvosos, a
falta de calçadas para pedestres, os péssimos serviços de eletricidade, o
saneamento precário, a maior parte da população vivendo de forma simplória, e
índice alarmante de mortalidade infantil. A população parecia não se incomodar
com o desconforto. Famílias instalavam-se de forma improvisada em pequenas
casas de madeira com latrina em separado - uma curiosa novidade para Carol. A
água recolhida por sarilhos de poços manualmente perfurados nos quintais era a
única a servir a população, orientada ao menos a fervê-la antes do
consumo.
Um
Médico com muita visão
José Carlos, que em Maringá passou a ser conhecido
simplesmente por Dr. Toledo, viera para prestar serviços de médico
especializado em ortopedia no Hospital Santa Lúcia. Contudo, não lhe faltaram
chamados para atender também em outros, caso dos Hospitais Maringá e Modelo,
este último do Dr. Galileu Pasquinelli. Na região, viajava, eventualmente, para
o município de Terra Boa, distante 60 km, onde atendia em um hospital de
propriedade de dois colegas de turma nos tempos da UB: os irmãos Henrique e
Miguel Alves Pereira. De vez em quando, ia para São Jorge do Ivaí e Engenheiro
Beltrão, a pedido Dr. Antônio Mestriner e Dr Rebeis, seus conhecidos de
Ribeirão Preto. Também constavam de suas viagens Nova Esperança, onde trabalhava o Dr Isamo Totugui, e Jandaia
do Sul, solicitado por outro colega de turma, Dr Agostinho Pereira, também seus
colegas de faculdade. Inclui, por fim, atendimentos prestados em Mandaguaçu e
Mandaguari.
ATOLADOS - Numa de suas primeiras viagens a Terra Boa, em
companhia da esposa e dos dois filhos pequenos, Dr. Toledo descobriu como era
impraticável trafegar por estradas barrentas. Chovia muito e, decidido a voltar
assim mesmo, não considerou os conselhos de que seria melhor evitar a viagem em
condições tão adversas, ainda mais que escurecia e a família estava a bordo.
Assim, enfrentando muita lama, o veículo acabou não indo mais que uma dezena de
quilômetros, atolando próximo ao córrego São Lucas. Na difícil tentativa de
seguir em frente, a esposa Carol teve que descer e empurrar, enquanto o marido
manobrava. Foi assim por horas, o que exigiu paciência e muito esforço, até que
conseguiram chegar ao município de Doutor Camargo, quase na metade do caminho.
Ali, madrugada plena, sem conseguir um lugar para passar o restante da noite e
sem ter onde comprar leite para as crianças já famintas, a família se obrigou a
dormir no próprio veículo. Só mesmo ao raiar do sol é que foi possível
prosseguir viagem, chegando a Maringá muito
cansados e sujos de barro.
PRIMEIROS PACIENTES - No Hospital Santa Lúcia, o primeiro
paciente a ser atendido pelo Dr. Toledo foi, proveniente do município de Quinta
do Sol, onde se acidentara durante corte de árvores e apresentava fratura
exposta dos ossos da perna direita. No entanto, o médico recorda-se que ali
davam entrada feridos em razão das mais diferentes causas. Quem mais
comumente demandava atendimento nessa época eram as vítimas de traumas causados
por acidentes, derrubada de floresta, quedas na residência, colisões e
capotamentos de veículos que ocorriam principalmente em função da densa poeira
das estradas. Por isso, era comum hospitais acolherem para atendimentos de
emergência, pacientes com toda a sorte de fraturas. Tanto os médicos
especializados em ortopedia, quanto os clínicos gerais tinham sempre muito
trabalho e deles dependia o futuro daquela gente.
FALTAVAM RECURSOS - Em muitos casos, o médico se
utilizava de conhecimentos adquiridos nos Estados Unidos, quase sempre
surpreendendo os colegas. Um dia, o Dr. Pasquinelli o chamou para fazer a
retirada de fragmentos de aço da articulação de um joelho. Sem grande
dificuldade, Dr. Toledo empregou ímãs para removê-los, o que não era tão usual.
Clínica
própria
Se para a esposa Carol, Maringá era uma cidade bastante
aquém em relação às quais estava acostumada, para o Dr. Toledo o interior do
Paraná não oferecia nem de longe os recursos tecnológicos de outros lugares por
onde havia passado. Depois de cursar uma das melhores universidades de medicina
do País, pós-graduar-se em um dos centros mais avançados dos Estados Unidos e
de ter trabalhado com especialistas de renome em Ribeirão Preto, ele estava em
Maringá. Uma cidade onde, nos melhores hospitais, se trabalhava ainda, não
raro, com recursos bastante limitados, o que era ainda mais visível na região.
Certa vez, ao atender a um caso de fratura- luxação exposta em Mandaguaçu, a
30km, o médico se recorda que pequenos mosquitos se movimentavam pelo ambiente,
durante a operação. Ao perguntar ao colega se não havia perigo de contaminação,
a resposta foi: “Eles estão esterilizados”. Em outras situações, se lembra da
dificuldade para localizar profissionais anestesistas, principalmente em
horários noturnos, porque nem todos se dispunham a sair da cama para atender
emergências.
Mesmo em tais condições, ele conta que teve a
oportunidade de confirmar sua condição de especialista, diagnosticando e
operando enfermidades como “psoíte”, uma infecção do músculo psoas iliaco, cuja
função é fletir a coxa contra a bacia, simulando uma doença dessa articulação. Desdobrou-se
na prestação de serviços a hospitais locais e de cidades da região, além de,
sem perda de tempo, procurar instalar a própria clínica, seu principal
objetivo. Assim, já no início de 1962, como já dito antes, inaugurava a Clínica
de Ortopedia e Fraturas, ocupando um espaçoso imóvel na avenida Brasil 4313, o
qual dividiu com o consultório de cardiologia do Dr. Célio Serpa Ferraz,
profissional que também pretendia iniciar carreira na cidade.
DR. LUIZ SADER - Com o passar dos meses, Dr. Toledo foi consolidando seu nome e o de
sua clínica, conquistando muitos clientes. Não demorou, também, para que
precisasse de um “partner”. Com tanto trabalho, era chegada a hora de contar
com os préstimos de um especialista para auxiliá-lo no dia-a-dia. Esse médico
foi o Dr. Luiz Sader, também de origem paulista, profissional e amigo de sua
confiança, com o qual tinha afinidades. Ambos haviam sido colegas de Ginásio,
de Universidade e feito o mesmo curso de especialização nos Estados Unidos. Não
bastasse tudo isso, o Dr. Sader era casado com uma norte-americana, Nancy.
A história de ambas as famílias seguia seu curso com
semelhanças e as mesmas expectativas, numa convivência harmoniosa. Foi por essa
proximidade, com os filhos dos casais frequentemente brincando juntos, todos de
pouca idade, que o Dr. Toledo começou a
observar com mais atenção o comportamento de Luizinho, o primeiro filho do
colega. Percebia que o menino não conseguia acompanhar as brincadeiras.
Recomendou, então, que o casal consultasse um pediatra neurologista para
examiná-lo. Estava certo. O diagnóstico indicava paralisia cerebral,
consequência de um parto difícil.
Retorno- A vida que prometia tanto para o médico e sua
família, mudara completamente de rumo. Aflita, Nancy não descansou até embarcar
em companhia do filho para os Estados Unidos, onde foi em busca de tratamento
especializado. Em Maringá, o Dr. Luiz Sader permaneceu ainda por mais algum
tempo, sozinho e desmotivado, mas continuava trabalhando com o Dr. Toledo.
Com a forte geada de 1963, que afetou os cafezais da
região, Maringá começou a passar por um momento de dificuldade econômica, com
refluxo das vendas do comércio e menor demanda de serviços inclusive nas
clínicas e hospitais. Ao manifestar seu desejo de retornar para o interior
paulista, o médico encontrou o apoio que precisava do Dr. Toledo, o qual o
recomendou para a Santa Casa de Campinas.
Esse período praticamente coincide com o nascimento de
Peter, o terceiro e último filho do Dr. Toledo e Carol, ocorrido no Hospital
Santa Lúcia no dia 27 de julho de 1963, sob a assistência do obstetra, Doutor
Paulo Jacomini.
NUMEROSOS ATENDIMENTOS- Nos vinte anos em que manteve
clinica em Maringá, Dr. Toledo calcula ter atendido não menos que vinte e
sete mil pacientes. Sempre muito organizado e detalhista, ele mantinha
anotações sobre cada um deles. Dessa forma, ao cabo de duas décadas, havia
realizado 6.144 cirurgias, média de 25,6/mês.
OS PRIMÓRDIOS DA FUNDAÇÃO DA ANPR- A ideia da fundação de
um Centro de Reabilitação para crianças defeituosas em Maringá, surgiu da
necessidade imperiosa de se prestar assistência as crianças portadoras de sequelas
de poliomielite (também chamada de paralisia infantil), doença essa que
grassava, em forma epidêmica, em todas as regiões do Pais, atingindo
principalmente o Norte do Estado do Paraná, onde a incidência de casos foi
bastante elevada. De acordo com o Dr. Toledo, os sintomas da doença eram febre
alta, provocando estado geral de gripe e paralisia flácida que atingia os
músculos dos membros inferiores e, em casos mais graves, a região do tórax.
Antes dos programas de vacinação, os hospitais
pediátricos de todo o mundo estavam cheios de crianças perfeitamente lúcidas
condenadas à prisão do seu “pulmão de aço”(respiração artificial). Sendo uma
doença neurológica crônica, não há tratamento especifico para a
poliomielite.
Em 1963, Maringá, toda a região e várias partes do
Brasil, começaram a ser assolados por casos de poliomielite. De forma
assustadora, a quantidade de registros só cresceu com o passar dos dias,
semanas e meses. Crianças e adolescentes, em número cada vez maior, geralmente
de famílias pobres, estavam sendo acometidos de paralisia infantil, doença
temida, altamente contagiosa, causada por um poliovírus, oriundo da água e
alimentos contaminados.
As várias reportagens, quase que diárias publicadas pelo
O Jornal de Maringá, nos primeiros meses de 1963, focalizando o caso do
“Lavrador paralítico”, e, “Cleide, a menina paralitica”, comoveram
profundamente a população, desencadeando de imediato o início de uma Campanha
em prol das crianças defeituosas e seus familiares, realizada com verdadeiro
sucesso, culminando com a fundação da ANPR, em 23 de Julho do mesmo ano. Desde
logo, Dr. Toledo foi indicado para coordenar este movimento humanitário, não só
pelo fato de ter prestado assistência especializada nos casos acima referidos,
como também, pelo intercâmbio de doentes que já havia estabelecido com a AACD,
de São Paulo.
INTERCAMBIO COM AACD - Dr. Ivan Ferraretto, na época era
o assistente N° 1 do Dr. Renato Bomfim, e que viria ocupar, com destaque a
presidência da AACD, que se tornou o maior centro de reabilitação de crianças
defeituosas da América do Sul. Dr. Toledo recebeu uma carta do médico
Ferrareto, encaminhando o menor Clóvis Lopes da Silva, que necessitava de
tratamento cirúrgico de sequelas de paralisia infantil. Uma carta datada de 13
de fevereiro de 1963 foi trazida pela família do menino. Nela, o Dr. Ferrareto
explicou: “Trabalhei com o Dr. Fábio dos Santos Musa, em Ribeirão Preto,
durante 17 meses. Durante esse período tive contato com o senhor, por
intermédio de conferências e reuniões, no Instituto Santa Lydia e Santa Casa,
em Ribeirão Preto, sabendo, portanto, de sua competência. Após esse tratamento,
o menor será internado na AACD para reabilitação com aparelho ortopédico.
Trata-se de família sem posses e, portanto, impossibilitada de permanecer em
São Paulo para o tratamento cirúrgico”. Seu pedido foi imediatamente
atendido pelo Dr. Toledo, o qual realizou o tratamento cirúrgico indicado.
Assim sendo, obtivemos o apoio total do Dr. Renato
Bomfim, presidente daquela entidade, que nos ofereceu o “know how” das
campanhas que realizara em São Paulo, com a feliz escolha de uma
“criança-simbolo”. A proposito, a charmosa menina Cleide, que havíamos atendido
e que fora encaminhada para AACD, a fim de receber um aparelho ortopédico,
conquistou a simpatia geral de todos os setores da AACD, tendo sido escolhida
como a “Criança-Símbolo” da Campanha Nacional daquela entidade, ocupando a
manchete dos noticiários de todos os principais jornais do Pais.
Da AACD vieram diversos outros pacientes, alguns enviados
pelo médico Reynaldo G. Calia, assistente, mas igualmente, médico competente
integrante da equipe daquela entidade, a maioria em 1963, todos acompanhados de
correspondências. Em uma dessas, datada de 28 de maio daquele ano, foi possível
ter notícias do menino Clóvis Lopes da Silva, citado anteriormente. A
assistente social Suzana Aparecida Medeiros encaminhava a menor Luzanira Silva
Brasil, de três anos, cuja família residia em Ibiporã. Ele escreveu: “O que nos
fez encaminhar esta criança ao senhor foi a maneira como o menino Clóvis Lopes
da Silva, recomendado pelo Dr. Ivan Ferrareto, foi atendido em seu serviço.
Atualmente, o referido menor está internado em nossa instituição. Recebeu
aparelhos e já está andando bem”. Sobre a pequena Luzanira, o Dr. Calia enviou
carta a 16 de setembro daquele mesmo ano ao Dr. Toledo, expressando a satisfação
por ter resolvido em pouco tempo este caso, graças ao nosso mútuo entendimento.
A menina recebera aparelhos ortopédicos e apresentava evolução de seu quadro
clínico. Em outra carta, o Dr. Calia encaminhava uma criança procedente de
Londrina, com paralisia cerebral espástica, paraplegia com mínimo comprometimento
dos membros e razoável nível mental”. Ao final, ele dizia: “O mesmo fica
livremente sob sua orientação, já que Maringá possui todos os recursos
necessários e, inclusive, maior facilidade cirúrgica”.
Segundo especialistas, a multiplicação inicial do
poliovírus ocorre nos locais por onde penetra no organismo (garganta e
intestinos). Em seguida dissemina-se pela corrente sanguínea e, então, infecta
o sistema nervoso, onde a sua multiplicação pode ocasionar a destruição de
células (neurônios motores), resultando em paralisia flácida. Crianças de pouca
idade, ainda sem hábitos de higiene, estavam particularmente sob risco. O
poliovírus também era disseminado por contaminação fecal de rios e plantações.
Todos os doentes, assintomáticos ou sintomáticos, expulsam grande quantidade de
vírus infecciosos nas fezes até cerca de três semanas depois da infecção do
indivíduo.
A “GOTINHA” SALVADORA - Em 1963, a vacinação periódica
contra a poliomielite ainda não era efetuada, como se faz nos dias de hoje. A
vacina inativada (Salk) havia sido introduzida poucos anos antes, em 1955, pelo
médico, pesquisador, virologista e epidemiologista norte-americano Jonas Salk,
enquanto a vacina oral, a conhecida “gotinha”, desenvolvida pelo médico e
cientista também norte-americano Albert Sabin, ainda era muito recente. A
vacina de Sabin se revelou mais completa do que a de Salk, a qual se mostrava
eficaz na maioria das complicações, embora pouco eficiente na prevenção. A
“gotinha” começou a ser testada em humanos em 1957 e somente foi licenciada em
1962, portanto às vésperas do surto que atingiu uma grande quantidade de
crianças e adolescentes no Brasil.
OS PRIMEIROS CASOS DA DOENÇA - Dr. Toledo, que já havia
atendido o “lavrador paralitico e Cleide a menina paralitica”, iniciou o
tratamento cirúrgico das crianças que apresentavam deformidades, sequelas da
poliomielite. Assim sendo, após rigorosa avaliação, realizou cerca de 300
procedimentos cirúrgicos em 75 pacientes, seguindo seus conhecimentos
especializados e sob a orientação segura dos “text-books” americano (1). Lembra
que os resultados foram excelentes, conseguindo colocar de pé crianças que
andavam engatinhando e se arrastando pelo chão. “Senti-me muito
gratificado ao vê-las andando recuperadas e aptas ao exercício das
atividades para a vida futura e inseridas ao mercado de trabalho. Em fim,
considero-me realizado no meu desejo de ajudar essas pequenas criaturas
portadoras de necessidades especiais, que sempre se mostraram agradecidas com
um grande sorriso em seus lindos rostos.” O tratamento cirúrgico utilizado
consistiu-se de transferências de tendões, fasciotomias, alongamentos ósseos de
3,5 cm, abaixamento de inserções musculares e outros. Posteriormente, quando a
idade óssea permitia, outro procedimento era incluído: a artrodese. Ao todo,
ele atendeu 75 crianças que voltaram a andar, fazendo uso de aparelho tutor
longo ou curto, muletas, bengalas, botinas com palmilha, ou simplesmente
sem auxilio nenhum. Julga que foi o período mais importante para ajudar a
estabilizar os objetivos da ANPR, contando com o apoio inestimável da Dra.
Nilda Satake, anestesista abnegada que, também, trabalhava sem receber nada.
A PRIMEIRA CAMPANHA BENIFICENTE - Em Maringá,
médicos e hospitais eram acionados quase que a todo momento e a sociedade se
mobilizou em torno de uma campanha para prestar assistência às vítimas e também
às suas famílias. Por orientação do Dr. Toledo, sob a égide “não peço piedade,
apenas oportunidade”, foi organizada uma campanha, para prestar assistência a
essas crianças e suas famílias formada, por um grupo de voluntarias senhoras da
sociedade, presidida pelo Dr. Michel Felipe, coadjuvado por sua esposa dona
Gedir, e uma equipe composta por Pivene Piassi de Morais, Branca de Jesus
Camargo Vieira, Déa Bastos, Nadyr Porto Virmond e Terezinha Wiedmann.
A OFICINA ORTOPÉDICA - O objetivo era a instalação de uma
oficina ortopédica, para confecção dos aparelhos ortopédicos, complementos do
tratamento cirúrgico, que foi possível já em 1964 quando, no dia 8 de
maio, foi inaugurada, ocupando um imóvel cedido gratuitamente pelos médicos
Ivaldo Borges Horta e Francisco Valias de Rezende, ao lado do Hospital Maringá.
“A façanha foi possível graças à iniciativa privada do povo de Maringá e
municípios vizinhos, que responderam prontamente à primeira campanha
financeira. A campanha foi considerada a mais humanitária já realizada em
Maringá, permitindo, em tempo recorde, angariar fundos que tornaram realidade a
oficina ortopédica, a primeira etapa na conquista dos objetivos da ANPR. A
Prefeitura participou do empreendimento, com a cooperação do médico Célio Serpa
Ferraz. A oficina foi comandada pelo técnico ortopédico Valdir Fernandes dos
Santos, funcionário numero 1 da ANPR, trazido de Marília pelo próprio Dr.
Toledo. “Assim que ele chegou, viajou para São Paulo diversas vezes na
companhia do Dr. Toledo, para comprar todo o material necessário. A
oficina foi estruturada inteiramente com recursos obtidos na campanha”, reitera
o médico. As viagem foram realizadas nos fim-de-semana, por três vezes usando
um “fusquinha”, de propriedade do Dr. Toledo. Chegavam na madrugada de sábado
ficando hospedados num hotel na avenida Duque de Caxias. Assim que tomavam o
café da manha, lá estavam eles no bairro Canindé onde compraram
maquinário necessário para a oficina, depois de uma necessária “tomada”
de preços. A atual oficina ortopédica da ANPR ainda usa torno e máquina de
costura industrial, adquiridos naquela época.
ORIGEM
DA ANPR
POR QUE O NOME ANPR? - O Dr. Toledo se recorda que, sem
perda de tempo, sugeriu uma reunião para buscar apoio efetivo junto ao poder
público, a qual aconteceu na Biblioteca Municipal, por sua indicação, com a
presença dele, do secretário de Educação, Saúde e Assistência Social, Dr. Célio
Serpa Ferraz, do Dr. Luiz Sader, do advogado Adriano Valente (que representou o
Rotary Club), e dona Eugênia. Como em Curitiba já havia a Associação Paranaense
de Reabilitação (APR), o nome da entidade, sugerido por Dr. Toledo, foi Associação Norte Paranaense
de Reabilitação (ANPR). Era a data de 23 de julho de 1963.
PRIMEIRA DIRETORIA - Diante do parecer favorável do poder
público, que se prontificou a ajudar no que fosse possível, formou-se ali mesmo
uma diretoria provisória, encabeçada pelo Dr. Toledo na presidência e o Dr.
Célio na função de vice-presidente, Eugênia Meller (1ª secretária), e o coronel
Haroldo Cordeiro, Delegado regional de Policia, como tesoureiro.
Dr. Toledo se recorda que algumas pessoas se destacaram
bastante nessa fase inicial dos trabalhos, para que a ANPR, segundo ele, o
trabalho de lideranças femininas, entre as quais a professora Pivene Piassi de
Moraes, foi fundamental.
MAIS APOIO - Com o surto de poliomielite, a campanha de
apoio às vítimas e seus familiares ganhou ainda mais força, conquistando
adesões e apoiadores em Maringá e cidades vizinhas. Para que a sociedade
conhecesse a gravidade do problema e se motivasse a colaborar ainda mais, o Dr.
Toledo passou a fazer palestras em clubes de serviço em toda a região,
recebendo pacientes encaminhados por autoridades do Município e da
região, como Marialva e Nova Esperança.
CRIANÇAS-SÍMBOLO - Vítima da poliomielite, a menina
Cleide Rodrigues de Souza, de quatro anos, foi alvo de intensa campanha
filantrópica promovida pelo Jornal de Maringá, sendo submetida a longo
tratamento. Recomendada pelo Dr. Toledo, ela foi levada posteriormente, por sua
genitora, Maria de Lurdes, para receber aparelho ortopédico em São Paulo,
com passagens cedidas pela Vasp. “Cleide vai ficar boa”, garantiu o Dr. Toledo,
que cuidou da criança em Maringá. Segundo publicou O Jornal, “O tratamento é
demorado, mas já está revelando a sua eficiência, pois Cleide, que estava completamente
paralítica na metade inferior do corpo, já fica em pé. Um dos membros ainda
está insensibilizado, mas o Dr. Toledo espera vencer a doença.” Cleide
tornou-se símbolo nacional da campanha de combate à poliomielite, chegando a
participar de um evento público no Rio de Janeiro.
Outra criança que se tornou símbolo da ANPR foi Maria do
Carmo que, aos oito meses de idade acometida de poliomielite, doença que
atingiu os músculos principais de seus membros inferiores, causando-lhe graves
deformidades. Aos cinco anos, iniciou o tratamento, que lhe permitiu caminhar
com o auxílio de aparelho ortopédico tutor longo e muletas. A menina ficou
assim em condições de ser entregue à equipe de reabilitação. Foi fotografada
junto com Clóvis, outra criança-símbolo segura pelas mãos de Pelé, grande
atleta e goleador da época, que sempre fez questão de marcar presença nesses
eventos.
O LAVRADOR PARALITICO - Um dos casos que também comoveu a
cidade foi a do lavrador Osvaldo Duarte Silveira, morador em Paiçandu. Casado e
pai de quatro filhos – o mais velho com dez anos de idade, ele havia sido
afetado pela poliomielite há pelo menos uma década, estando paralítico, com forte
deformação em ambos os pés. O médico avaliou que ele poderia se recuperar,
dependendo do êxito de uma melindrosa cirurgia. No entanto, por ser a
intervenção bastante dispendiosa, e com o emprego de uma série de medicamentos
nas fases pré e pós-operatória, o Jornal de Maringá se movimentou em uma nova
cruzada para levantar recursos com o objetivo, também, de assistir a família.
Posteriormente, o jornal publicou matéria com o título “Lavrador operado.
Movimento de recuperação prossegue” e o seguinte conteúdo: “Osvaldo Duarte,
vítima de paralisia infantil, está internado no Hospital Santa Lúcia, restabelecendo-se
de delicada intervenção cirúrgica. Osvaldo Duarte foi atendido gratuitamente
naquele nosocômio e o facultativo que o operou, Dr. J. C. Toledo, em elevado
gesto, nada cobrou pela intervenção. A família (esposa e quatro filhos) estão
sendo mantidos pela campanha de auxílio feita pelo JM e que contou com decidida
colaboração da população.
TRABALHO HUMANITÁRIO - “Fizemos um intenso trabalho
humanitário, envolvendo um grande número de pessoas em torno dessa causa”,
recorda-se o Dr. Toledo. Dentre os voluntários que em sua época como presidente
também colaboraram, ele cita os de Conrado Mommenson, Josué de Moraes, Olintho
Schmidt e Pedro Costa, este último presidente do Clube dos Gerentes de Bancos
da cidade, o colunista da Folha do Norte do Paraná, o hoje imobiliarista Pedro
Granado Martines, assim escreveu na edição de 1º de janeiro de 1964: “A ANPR
realizou a campanha mais humana que se fez em Maringá”.
Reportagem publicada no dia 17 de outubro de 1965 na
Folha do Norte do Paraná, com o título “Elas precisam de você”, mostrava que a
ANPR já prestava assistência a mais de uma centena de crianças provenientes de
várias regiões. “O bom povo é que a mantém com ajudas financeiras quando de
campanhas”, mencionou o texto, que incluiu também: “Na maior campanha beneficente
já realizada em nossa região, em 63, logo após a sua fundação, a ANPR adquiriu,
com os fundos arrecadados (quase seis milhões) uma completa oficina ortopédica.
Aparelhos ortopédicos permitiram tratamento em mais de cem pequenas
criaturas portadoras de deformidades físicas originadas da paralisia infantil”.
Mais adiante, citou: “A ANPR deseja transformar-se numa associação quase
completa em se falando de reabilitação da criança. Ela quer um gabinete de
fisioterapia”. Ouvindo o Dr. Toledo, o jornal explicou que “A fisioterapia
ensina através de exercícios , a tirar o máximo proveito das forças restantes,
ensinando ainda o paciente a desenvolver o que chamamos de AVD (Atividades da
Vida Diária). Entre outras atividades, precisa o paciente aprender a
levantar-se da cama sozinha, entrar e sair da banheira, cuidar da higiene
pessoal, vestir-se, pentear-se, colocar seu aparelho ortopédico sem ajuda,
subir e descer escadas, atravessar uma rua, subir e descer de um ônibus etc. É
um trabalho demorado que exige paciência e compreensão”.
COMANDANDO A BANDEIRA DA REABILITAÇÃO - Com o passar do
tempo, a ANPR notabilizou-se por seu trabalho e crianças portadoras de
sequelas, provenientes de municípios de toda a região, passaram a ser trazidas
para tratamento na entidade. Este assunto foi abordado na edição de 26 de
outubro de 1965 por “O Jornal de Maringá”. Dizia o texto: “Oriundas de Campo
Mourão, Mandaguaçu e Nova Esperança, além de muitas outras, de cidades do norte
paranaense, chegam à ANPR crianças defeituosas cujos pais ignoravam a
existência em Maringá de uma entidade capaz de ministrar-lhes o devido e
adequado tratamento. No dia 2 de dezembro de 1966, o jornal “O Estado do
Paraná” comentou em editorial a atuação da entidade, com o título “ANPR, uma
notável obra”. O texto mencionava: “Fundada em julho de 1963, graças ao
idealismo de um grupo de pessoas de alto espírito público, funciona em Maringá
a Associação Norte Paranaense de Reabilitação, prestando assistência às
crianças defeituosas independente da condição social, raça, cor ou credo
religioso. Organizada sob inspiração do médico José Carlos Dias de Toledo, que
é atualmente o diretor clínico da entidade, e esteio da magnífica obra, a ANPR
vem prestando um inestimável trabalho na reabilitação de crianças, que eram
relegados à uma vida absolutamente vegetativa. Cumpre acrescentar, como detalhe
valiosíssimo, que a entidade já tem uma oficina especializada na confecção de
aparelhos ortopédicos, o que significa a complementação indispensável de um
centro dessa natureza. Uma média de 15 crianças são atendidas diariamente pela
ANPR, instalada num local bonito e muito bem aparelhada.”
GABINETE DE FISIOTERAPIA - A ANPR precisava agora de um
gabinete de fisioterapia para poder complementar o atendimento às crianças e jovens
e uma nova campanha foi organizada em outubro de 1965 para arrecadar os
recursos destinados à aquisição dos equipamentos. Desta vez, o trabalho ficou a
cargo de Ardinal Ribas, proprietário da Empresa Telefônica Maringá, com a
participação de Pedro Granado Martines, Durval Riba e Agenor Bregola, este como
tesoureiro. Abrindo um “livro de ouro”, recebeu valiosas doação de vários
segmentos do comercio. A campanha, que teve como patrono o diretor-gerente da
Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP), Hermann Moraes Barros, foi
lançada durante o jogo Grêmio x Arapongas, realizado dia 19 de outubro de 1965
no Estádio Willie Davids.
O Dr. Altino Borba, advogado e escritor, colunista
do jornal Folha do Norte do Paraná, comentou de forma emocionante, o que
presenciou em prol da ANPR na promoção realizada, no Estádio Willie Davids na
edição do dia 21 de outubro de 1965, escrevendo a crônica “Sentando na Bola”: “O
Estádio Willie Davids”, no último domingo, foi palco de inúmeras e
inesquecíveis emoções. Manifestações ruidosas de entusiasmo esportivo.
Manifestações silenciosas de comoção íntima, de alegria espiritual. Os
diretores da Associação Norte Paranaense de Reabilitação lançando a campanha
oficial pró-Laboratório de Fisioterapia. Os pequeninos recuperados em desfile
jovial. Ignorando a sua própria infelicidade com um sorriso nos lábios. O povo
vibrando com os lances bonitos da partida de futebol. O povo contagiado com o
sorriso das crianças e contendo lágrimas. Dona Eugênia, Ambrósio Neto e o Dr.
Toledo conduzindo seus tutelados. A assistência olhando os lances do jogo. E
contribuindo carinhosamente com o seu quinhãozinho. Antes do pontapé inicial, o
Dr. Toledo ocupou o microfone. Mas o discurso não saiu. A voz ficou-lhe
embargada na garganta. Nesse momento, toda a população de Maringá participou
daquele soluço maravilhoso. Há momentos em que as palavras não dizem nada. Mas
a explosão da alma se propaga em mil direções. As lágrimas do médico
humanitário representaram a silenciosa prece que substituiu o discurso. E
ninguém ficou sem entender. Os lenços foram levados disfarçadamente à altura
dos olhos. O encanto de corações em “stripe-tease”. A bola branca era chutada
de um lado para outro. Os torcedores fremiam aos sons de olé. Mas e o Dr.
Toledo? A sua presença estava fazendo falta para complemento da festa. Onde se
encontraria ele? Os minutos se passavam e o embate marchava para o fim. Uma
estação de rádio deu a notícia. O Dr. Toledo fora requisitado para acudir ao
valoroso guardião Adilson, do Arapongas. Lá mesmo no vestiário do Galo do
Norte, transformado em sala de operações. Havia fratura exposta. Mas, por
felicidade, lá estava o especialista, competente e humanitário. Deixou de
assistir aos melhores lances do jogo. Enfeixou as falanges do moço que sofria.
Suturou e engessou tudo na hora, como se estivesse em seu ambulatório. O
Adilson deu-lhe um carinhoso abraço de gratidão e voltou para ver o final da
partida. Já ostentava um sorriso juvenil. Quando a festa esportiva terminou, os
dirigentes do Arapongas manifestaram o seu sincero agradecimento ao Dr. Toledo.
O tempo perdido, o material usado e o serviço profissional não foram objetos de
preço. Em dia assim tão glorioso, falar-se em pagamento seria um absurdo. Uma
verdadeira heresia. Não há dinheiro que possa retribuir os reflexos divinos da
alma humana. Que beleza, meu Deus!”. Ainda antes do jogo fizeram doação
de dinheiro com objetivo de colaborar com a campanha.
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