O RENASCIMENTO
Da mesma forma como a Idade Média foi por muitos considerada a idade das trevas, o Renascimento foi visto como uma reedição da antiguidade. Embora seus representantes tenham se inspirado nas obras antigas, seus esforços resultaram em projetos e realizações originais - seu ideal foi retornar ao antigo, para poder ultrapassá-lo. O renascentista foi um homem do seu tempo: possuindo o sentido da história, sabia que o mundo antigo era diferente do seu e que, pretendendo reviver a antiguidade, procurava viver uma vida diversa da da Idade Média.
Esse movimento filosófico e literário, iniciado na Itália, na segunda metade do século XIV e, depois, difundido no resto da Europa, tem no humanismo sua característica principal. O aspecto primordial do Humanismo renascentista é a liberdade do homem, que o faz capaz de estabelecer e desenvolver seu projeto de vida. Ao contrário do conceito medieval de homem, inteiramente submetido à Igreja e ao Sacro Império Romano-Germânico, o Humanismo o vê livre, em relação à natureza e à sociedade. Restaurou a dignidade humana, pela admissão da liberdade e capacidade de interagir com o mundo.
O termo humanismo originou-se do latim humanitas, definida por Cícero como a cultura que distingue o homem civilizado da natureza e da barbárie. Assim, o retorno aos clássicos antigos, desenvolvendo a cultura, deveria permitir à humanidade a conquista de uma natureza humana mais de acordo com o ideal clássico greco-romano.
O Humanismo e o Renascimento são apenas dois momentos do mesmo movimento, tendo, portanto, os mesmos fundamentos: 1) afirmação do valor e da dignidade da natureza humana; 2) livre investigação da natureza física, sem sujeição à autoridade de Aristóteles e à autoridade religiosa, em campos fora de sua alçada.
Esses dois fundamentos são o naturalismo do Humanismo - que tem como objeto a natureza humana e o naturalismo do Renascentismo que tem como objeto a natureza física.
A fé inabalável na natureza humana fez com que os renascentistas acreditassem que a inteligência e a liberdade do homem são ilimitadas e que a ele, sendo livre, para agir bem, basta seguir as leis da sua natureza. Leon Battista Alberti (1404-1472) ilustra muito bem essas idéias, quando diz ser o homem o artífice de seu próprio destino. Esse homem ideal, que procura realizar-se, reedita a idéia platônica de homem. Trata-se, sem dúvida, de um otimismo utópico, mas que propiciou grande progresso e fundamentou o surgimento da cultura moderna.
Acreditando que o mundo natural é o domínio do homem, o movimento renascentista apregoou um naturalismo, que, ao lado da afirmativa do valor intelectual do homem e da sua liberdade, acentuou, também, o valor do corpo humano e seus prazeres. Em contraste com o ascetismo medieval, a ética volta às idéias epicuristas antigas - o bem é o prazer e a virtude é uma organização de prazeres.Do que até aqui foi dito, não se deve concluir que houve uma profunda ruptura cultural entre a Idade Média e a Renascença; em plena Idade Média, as cidades já possuíam estrutura econômica e social capitalista, propiciando, assim, o desenvolvimento da burguesia capitalista e da monarquia absoluta que condicionaram o Renascimento.
Também não se conclua que, no aspecto religioso, se possa falar de uma cisão total com o conceito de religiosidade medieval. Na verdade, extrapolou-se o cristianismo em duas direções: 1) um humanismo com tendência antropocêntrica (o homem é o centro do universo), que deu origem às correntes racionalísticas, filosóficas e científicas que caracterizam o pensamento moderno; 2) um humanismo super-teológico, do qual surgiram os movimentos religiosos iniciados por Lutero e que chamamos de Reforma.
O intrincamento de concordâncias e oposições gerou problemas que são considerados típicos do Humanismo, do Renascimento e da Reforma e que, até hoje, fazem parte dos questionamentos da cultura contemporânea. Os humanistas apresentavam, em sua maioria, bastante religiosidade e propensão para religiões misteriosas, astrologia, milagres e ocultismo; não foram nem anti-religiosos, nem anti-cristãos (pelo menos oficialmente), e deram prioridade a dois aspectos característicos dessa época: a tolerância religiosa e a função civíl da religião.
Procuravam uma paz religiosa que deveria decorrer do estudo de várias correntes filosóficas e que fora destruída pelas disputas teológicas.
A tolerância religiosa foi defendida por idéias que deixam entrever a aurora do pensamento moderno; dois pensadores representam com grandeza esse momento: Erasmo de Rotterdam (1465/1469-1536) e Thomas More (Morus, em latim-1478-1535). Estudaram juntos em Oxford, foram amigos por muitos anos, e conceberam, em conjunto, a idéia de restaurar a teologia através de novas edições dos textos bíblicos revolucionando, assim, pela hermenêutica (interpretação) bíblica, muitas idéias sobre as escrituras sagradas prevalecentes na época medieval. A partir daí, foram feitas muitas traduções dos textos originais, que modificaram, em muito, o cristianismo, tal como era pensado na Idade Média.
Várias obras de Erasmo, que era frade, satirizavam costumes sociais e da Igreja, pessoas notáveis da época, descritas sob pseudônimos (mas facilmente identificáveis), a vida conventual como espiritualidade e a carreira militar. Mas a obra que o fez um autor celebrado por todos e que, por sua ousadia, foi das que mais abalou o seu tempo - e que é uma obra-prima da literatura universal - chama-se O Elogio da Loucura. Nesse livro, escrito em apenas sete dias e que foi dedicado a Thomas More, o autor faz a Loucura subir ao púlpito e auto-elogiar-se, tendo sempre, a seu lado, a Lisonja e o Amor Próprio. Dessa forma, criticou os filósofos escolásticos, os nobres arrogantes, os juristas detalhistas, os bispos luxuriosos, os negociantes desonestos e os militares estúpidos.
Vejamos, em alguns parágrafos selecionados, como, através da ironia e da finura de espírito, Erasmo expõe as mazelas dos homens de sua época, que muito pouco ou nada diferem dos homens contemporâneos:
- ... que mais poderia convir à Loucura do que ser o arauto do próprio mérito e fazer ecoar por toda parte os seus próprios louvores? ... Assim, pois, sigo aquele conhecido provérbio que diz: Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo.
- ... pareceu-me igualmente oportuno imitar os retóricos de nossos dias, que se reputam outras tantas divindades, uma vez que podem gabar-se de outras línguas como a sanguessuga ( que teria a língua bifurcada) e consideram coisa maravilhosa inserir nos seus discursos, de cambulhada, mesmo fora de propósito, palavrinhas gregas, a fim de formarem belíssimos mosaicos.
- Para nós, os tolos, um dos maiores prazeres não consistirá em admirar, com a máxima surpresa, tudo o que nos vem dos países ultramontanos?
- Mas, afinal de contas, por que é que esse grande homem (Sócrates) foi acusado perante os magistrados? Por quê foi ele condenado a beber cicuta? Não seria talvez a sua sabedoria a causa de todos os seus males e, finalmente, de sua morte? Tendo passado toda a vida a raciocinar em torno das núvens e das idéias, ocupando-se em medir o pé de uma pulga e se perdendo em admirar o zumbido do pernilongo, descuidou-se esse filósofo do estudo e do conhecimento dos homens, bem como da arte sumamente necessária de se adaptar a eles. Aí tendes, nesse retrato, o que diz respeito a muitos dos nossos.
- Que espécie de homem é um estóico? ... Eis o retrato de um estóico: surdo à voz dos sentidos, não sente paixão alguma; o amor e a piedade não impressionam absolutamente seu coração duro como o diamante; nada lhe escapa, nunca se perde, pois tem uma vista de lince; tudo pesa com a máxima exatidão, nada perdoa; encontra em si mesmo toda a felicidade e se julga o único rico da terra, o único sábio, o único livre, numa palavra, pensa que só ele é tudo e o mais interessante é que é o único a se julgar assim.
- A ignorância tem, pois, dois grandes privilégios: um, que consiste em estar de acordo com o amor próprio e outro, que consiste em trazer em si a maior parte do gênero humano. Por conseguinte, seríeis duas vezes ingênuos, se quisésseis elevar-vos acima do nível comum, com toda vossa ciência filosófica.
- ... Além disso, mostram as estátuas e os retratos dos antepassados, enumeram os bisavós e os tataravós; recordam os antigos sobrenomes e os feitos dos seus maiores. ... Esses idiotas fazem um alto conceito de si mesmos e estão sempre cheios da estéril idéia da sua ascendência.
- Merecem ser incluídos nessa categoria os habitantes da caverna de Platão. Ao verem, os tolos, as sombras e as aparências de diversas coisas, admiram-nas e nada mais procuram, dando-se por satisfeitos.
- Os sábios são em número tão escasso que nem vale a pena falar deles e eu desejaria saber se é possível descobrir algum.
- ...vejamos o que são os filósofos. Não passam, também, de ridículos loucos: quem poderá conter o riso ao ouví-los sustentar seriamente a infinidade dos mundos? O sol, a lua, as estrelas... são por eles tão conhecidos como se os tivessem medido palmo a palmo ou com um fio.... vangloriam-se de distinguir as idéias, os universais, as formas separadas, os quid, os esse, em suma, todos os objetos que, de tão pequenos, só poderiam distinguir-se, se não me engano, com olhos de lince.
- A propósito de combate, parece-me que os cristãos deveriam mudar as suas tropas movidas contra os infiéis. Se, em vez da soldadesca, que há tanto tempo empregam inutilmente nas cruzadas, expedissem contra os turcos e os sarracenos os clamosos escotistas (de Duns Scotus), os obstinados occamistas (de Guilherme Occam), os invencíveis albertistas (de Alberto Magno) e toda milícia dos sofistas, quem poderia resistir ao assalto dessas tropas coligadas?
- Demonstrou o pregador, mas com uma sutileza imperceptível, que tudo quanto se podia dizer para glorificar o Salvador, tudo se achava nas letras componentes do seu augustíssimo nome ... O velho bajoujo teve a felicidade de separar o vocábulo Jesus em duas partes iguais: Je-su. Mas, que faremos daquele s, que, tendo perdido o companheiro, está surpreso de se achar sozinho? Um pouco de paciência e logo repararemos o mal. Os hebreus, em lugar de s, pronunciam syn; ora, em bom escocês, syn quer dizer pecado. Pois bem! - exclamou o pregador - quem será tão incrédulo ao ponto de negar que o Salvador tirou os pecados do mundo?
- O sistema do cristianismo, acerca da felicidade da vida, muito se avizinha do dos platônicos. Segundo o princípio fundamental desses dois sistemas, a alma está encarcerada no corpo, ligada pelos nós da matéria e de tal modo oprimida pelo peso da matéria orgânica que muito dificilmente pode descobrir e apreciar a verdade. Foi por essa razão que Platão definiu a filosofia como sendo a meditação da morte, porque tanto a filosofia como a morte destacam nossa alma das coisas visíveis e corporais.
- Em lugar de um epílogo, quero oferecer-vos duas sentenças. A primeira, antiquíssima, é esta: Eu jamais desejaria beber com um homem que se lembrasse de tudo . E a segunda, nova, é a seguinte: Odeio o ouvinte de memória fiel demais.
- E, por isso, sede sãos, aplaudi, vivei, bebei, ó celebérrimos iniciados nos mistérios da Loucura.
Erasmo valeu-se de sua grande cultura clássica para produzir uma obra artística de estilo admirável, onde sua própria opinião permanece oculta; se se pretendesse discutir as opiniões e críticas contidas nesse livro, ele poderia tranquilamente alegar que fora a Loucura, e não ele, quem as expressara. E quem deveria levar a sério a Loucura?
Esse livro, embora possa parecer uma brincadeira, teve grande influência na eclosão da Reforma protestante, porque criticava os costumes da Igreja, que contradiziam os ensinamentos do cristianismo original e aos quais se opunham os reformadores. Não se acredite, no entanto, que tenha havido concordância de pensamento nas idéias fundamentais entre Erasmo e Lutero; enquanto o primeiro quer reformar os costumes pela razão, o segundo acredita poder fazê-lo pela fé. Erasmo, como verdadeiro humanista que acredita na razão humana, achava ser possível fazer uma opção moral entre o bem e o mal, através do livre arbítrio; Lutero, vendo a humanidade pela lente de um agostinianismo extremado, considerava o homem perdido pelo pecado e incapaz de se salvar por suas próprias ações - apenas a graça divina poderia redimí-lo. Essa crença (a fé remove montanhas e a razão não), comum entre os camponeses da época, era interessante para os príncipes alemães que queriam livrar-se da autoridade do Vaticano e apossar-se de suas terras em solo alemão. Assim, apoiaram Lutero, que, em 1517, iniciou a Reforma.
Os dois lados, isto é, Lutero e a Igreja Católica, tentaram atrair Erasmo, que, no entanto, se conservou independente, coerente com sua crença de que o homem, como ser inteligente e livre, deveria combater todos os fanatismos, achando seu caminho pela razão e fazendo suas escolhas pelo livre arbítrio. Erasmo, humanista universal no mais completo sentido do termo, situou o homem acima de todos os valores, dignificando-o como ser racional.
Thomas More, nascido em Londres, foi Chanceler de Henrique VIII e juiz conpetentíssimo. Foi muito influenciado por Erasmo de Rotterdam, que era doze anos mais velho do que ele e que o conheceu aos vinte e um anos de idade. Ficaram muito amigos.
Na Renascença, a filosofia clássica foi estudada de forma bem diferente dos estudos da filosofia medieval. A par das reinterpretações de Platão e Aristóteles, os humanistas voltaram-se para filósofos que tinham sido deixados de lado ou mesmo condenados na Idade Média.
Em sua obra principal, a Utopia, podemos observar o retorno do epicurismo e da filosofia estoica. Entretanto, não se deve pensar que ele nada acrescentou às idéias antigas. Ao contrário, estabeleceu as bases do epicurismo cristão, acrescentando contribuições platônicas (Platão era seu filósofo favorito) que já haviam sido , por assim dizer, cristianizadas: crença na providência divina, na imortalidade da alma e na recompensa depois da morte. Epicuro, ao contrário, descreveu deuses que nada tinham a ver com os homens e que não poderiam ajudá-los a encontrar qualquer bem.
Morus descreve uma ilha chamada Utopia, cujos habitantes consideram virtude procurar obter sempre o maior prazer; para eles, é absurdo sofrer voluntariamente, considerar virtude renunciar aos prazeres terrenos e não esperar recompensa após a morte pelos males que sofreram no mundo. A virtude consiste em procurar o prazer natural, seja ele dos sentidos ou da razão, compreendendo quais os bens que se pode ter sem injustiça e que não acarretem males. As idéias estoicas podem ser observadas na importância atribuída pelos utopianos ao viver de acordo com a natureza, ao espírito comunitário natural do ser humano e na extrema atenção dada ao problema da virtude.
Thomas Morus revelou-se um perfeito humanista, enquanto associou, na Utopia, o paganismo epicurista e estoicista clássicos às idéias cristãs. Observando e criticando a estrutura econômica da Inglaterra, o autor propõe uma sociedade utópica, cujos habitantes vivem num regime de comunidade de bens. Os habitantes não possuem suas casas: a cada dez anos, as moradias são sorteadas e as pessoas trocam de casa, abolindo-se, assim, a idéia de propriedade privada. Tudo o que for produzido pelos cidadãos de um quarteirão é levado a um mercado nele existente, abastecendo gratuitamente as famílias locais. Ninguém se apropria de mais do que necessita, porque nada lhes é negado; assim, sendo garantida a subsistência, a ganância, tão comum aos homens, não se desenvolve entre essas pessoas.
A forma de governo é a democracia: os magistrados são eleitos e as leis não podem ser votadas antes de três dias. É proibido reunir-se fora do senado e das assembléias populares e a pena para a desobediência a essa ordem é a morte.
Procurando encontrar uma forma de sociedade melhor que as existentes na Europa, Morus descreveu instituições públicas que visavam impedir o abuso de autoridade, as leis tirânicas ou as mudanças de forma de governo.
A religião da Utopia é permissiva, isto é, seus habitantes podem professar diferentes crenças, desde a adoração de forças da natureza até a crença em um único Deus. Todas as religiões são respeitadas e não existe conflito entre elas. Não há uma religião oficial do Estado e, assim, estabelece-se a tolerância religiosa. Embora haja preconizado a tolerância religiosa, Thomas More não foi adepto da Reforma e, por causa de suas firmes convicções e independência diante do poder, acabou sendo destituído do cargo de chanceler, quando discordou de Henrique VIII sobre a separação da igreja inglesa da autoridade do papa. Foi preso e decapitado quando discordou do divórcio do rei de Catarina de Aragão, para validar seu casamento com Ana Bolena. Foi canonizado em 1935, como mártir da Igreja Católica em defesa da liberdade de pensamento.
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