A Experiência de Deus nas Religiões
Este artigo apresenta uma reflexão aproximativa da experiência de Deus nas religiões, partindo da perspectiva localizada da teologia cristã das religiões, mormente de inspiração católico-romana. Com base na distinção estabelecida por R. C. Zaehner entre as religiões proféticas ou monoteístas e orientais ou místicas, busca-se apresentar de forma panorâmica e concisa o modo como as tradições judaica, cristã, islâmica e budista expressam a realidade do mistério fundamental. Em seguida, apontam-se os traços comuns e as tensões presentes entre o cristianismo e estas tradições religiosas. O objetivo é mostrar a viabilidade de uma perspectiva ecumênica planetária, que possa abarcar as diversas tradições religiosas em vista do bem-estar ecoumano, bem como defender teologicamente a plausibilidade de um pluralismo religioso de direito. Palavras-chave: Experiência; Deus; Religiões; Cristianismo; PluralismoNão constitui tarefa fácil desvendar o universo da experiência de Deus ou do sagrado nas diversas tradições religiosas. Embora convocado para falar sobre este tema tão amplo e complexo, gostaria de precisar de antemão o caminho que decidi traçar na abordagem desta questão. Em primeiro lugar, seria importante explicitar o lugar a partir do qual eu falarei sobre o tema. Minha reflexão se dá na perspectiva da teologia cristã das religiões e não de uma "teologia mundial" ou universal das religiões, proposta por certos autores, que transcenderia as identidades religiosas particulares ao mesmo tempo que as integraria. Não creio ser possível uma teologia mundial, pertinente a toda a humanidade e sem vinculação específica com uma comunidade religiosa particular. Em linha de sintonia com a reflexão de Jacques Dupuis, sublinharia que uma teologia que se pretendesse "supraconfessional" tornar-se-ia problemática na medida em que não há possibilidade de se fazer teologia a não ser a partir de uma fé específica. Diversas adesões de fé não podem convergir numa "teologia mundial" mas numa diversidade de teologias. Ao lado de uma teologia cristã das religiões há, assim, um legítimo lugar para outras teologias confessionais. O fato de ser confessional, não implica, necessariamente, uma restrição de horizontes. Isto só ocorre quando a reflexão se encerra numa perspectiva ensimesmada ou provincial. Não é esta a perspectiva que defendemos. O caminho que apontamos vai no sentido de uma teologia cristã aberta e sensível ao horizonte universal, que assume com otimismo uma "perspectiva global" disponível às várias contribuições e enriquecimentos advindos das outras tradições religiosas e que seja capaz de reconhecer e saudar o pluralismo religioso como um dado de princípio e não problemático. Esta teologia cristã do pluralismo religioso encontra na doutrina da trindade a chave hermenêutica fundamental para uma interpretação da experiência da "Realidade Absoluta" testemunhada pelas outras tradições religiosas. Trata-se de uma perspectiva teológica declaradamente cristã, e sua pertinência válida exclusivamente no âmbito cristão, não podendo ser imposta como objetividade válida para todas as outras tradições religiosas. Conforme a hermenêutica cristã, "onde quer que aconteça uma genuína experiência religiosa é seguramente o Deus revelado em Jesus Cristo que entra de maneira escondida e misteriosa na vida dos homens e das mulheres".Em segundo lugar, gostaria de precisar o campo religioso que será objeto desta reflexão. Com base na distinção estabelecida por R.C.Zaehner entre as religiões proféticas ou monoteístas e orientais e místicas, buscaremos apresentar de forma panorâmica e sucinta a forma como as tradições judaica, cristã, islâmica e budista expressam a realidade do mistério fundamental. Serão apontados em seguida os traços comuns e as tensões presentes entre o cristianismo e estas tradições religiosas. O objetivo é mostrar a viabilidade de uma perspectiva ecumênica planetária, que possa abarcar as diversas tradições religiosas em vista do bem estar eco-humano. 1 - A Acolhida do Pluralismo ReligiosoO reconhecimento teológico do valor do pluralismo religioso implica a assunção de uma nova perspectiva teológica, capaz de reconhecer o significado positivo das diversas religiões no plano da salvação. Neste limiar do terceiro milênio constata-se não apenas a vitalidade das grandes tradições religiosas, mas igualmente a consciência da particularidade histórica do cristianismo. Conforme dados recentes, cerca de dois terços da população mundial não conhecem Jesus Cristo; a população restante, constituída de cristãos, encontra-se dividida entre si. Os católicos constituem somente 18% da população mundial, sendo quase a metade na América Latina. Os muçulmanos já ultrapassaram os católicos em termos de presença mundial. Este quadro atual suscita maior realismo por parte das análises teológicas ou magisteriais ainda devedoras de certa mentalidade missionária de conquista, típicas do século anterior, segundo a qual a expansão geral do cristianismo e catolicismo seria uma questão de tempo. Nesse sentido, torna-se-ia difícil partilhar com João Paulo II a idéia de que estaremos todos reunidos no ano 2000 "sobre as margens deste grande rio: o Rio da Revelação, do Cristianismo e da Igreja, que corre através da humanidade a partir do que sucedeu em Nazaré e depois em Belém, há dois mil anos." A proposta de uma única religião mundial contraria a hipótese aqui defendida do pluralismo religioso de direito e, em termos concretos, não passa de uma ilusão deslocada da dinâmica religiosa atual. Carece hoje de plausibilidade efetiva os projetos teológicos ou pastorais que desconheçam o valor singular das outras tradições religiosas ou que se limitem a avaliá-las unicamente segundo os parâmetros do cristianismo. Há que "respeitar os encaminhamentos particulares que procedem do destino de cada ser humano, o qual, onde quer que se encontre, pode ser solicitado pela graça e pelo Espírito de Deus." O pluralismo religioso vem acolhido como um fator positivo em importantes trabalhos teológicos sobre o tema da relação do cristianismo com as outras religiões. Ganha a nível teológico uma plausibilidade "de direito", deixando de ser visto como um dado conjuntural passageiro, uma ameaça ou expressão da fragilidade missionária da Igreja . Trata-se de um fenômeno rico e fecundo, que haure sua razão de ser no próprio desígnio de Deus, favorecendo ainda a transparência de toda a "riqueza multiforme" de seu mistério. Enquanto fator positivo, o pluralismo religioso sinaliza a profunda generosidade com que Deus manifestou o seu mistério de modo diversificado à humanidade, bem como as "respostas pluriformes" dadas pelos seres humanos na diversidade de suas culturas à auto-revelação divina.O fundamento teológico primário para o reconhecimento deste pluralismo teológico de princípio é apontado na fecunda e "superabundante riqueza e variedade das auto-manifestações de Deus à humanidade." O Deus uno e trino, que é mistério de amor, não se encerra na solidão da incomunicabilidade, mas comunga o seu mistério plural ao gênero humano na história. Trata-se de uma comunicação transbordante e diversificada. As tradições religiosas da humanidade expressam estes "diversos modos" (Hb 1.1) com que Deus falou e se prodigalizou aos seres humanos, muitas vezes, em sua história. Nelas se faz presente, não simplesmente um "anseio" descaracterizado, impessoal de um Deus desconhecido, mas a presença real do Deus de amor e misericordioso em sua rica iniciativa de oferecimento salvífico. 2 - As Distintas Formas de Aproximação do Mistério FundamentalA teologia cristã das religiões busca hoje acentuar o significado das religiões como "caminhos de salvação". Esta nova perspectiva implica o reconhecimento da legitimidade de "diversos percursos religiosos", sempre direcionados para o horizonte da comunhão com o mistério fundamental. Cada um destes percursos guarda uma alteridade irredutível e irrevogável, que jamais será tematizado ou totalizado numa religião particular. Este caráter único e singular de cada religião não impede, mas exige uma dinâmica de abertura ao outro. O diálogo inter-religioso visa justamente apontar os traços de "complementaridade recíproca" que vigora entre as diversas tradições religiosas. Na experiência do encontro ocorre uma "troca e condivisão dos valores salvíficos" em favor de uma transformação e enriquecimento mútuos.Certos autores buscam fazer uma distinção entre as religiões monoteístas ou proféticas e as religiões orientais ou místicas. Pode-se admitir a relevância desta distinção desde que operada com cautela. Tem o mérito de sublinhar o fundamento comum das três religiões monoteístas de herança abraâmica, situadas como religiões proféticas e do livro, distinguindo-as das tradições orientais, que acentuam mais a dimensão da interioridade, da sabedoria e da gnose. Esta distinção, porém, não nos autoriza concluir em favor de uma separação rígida, que excluiria qualquer significado profético nas religiões orientais ou dimensão mística nas religiões proféticas.O caminho para se atingir a "Realidade Absoluta" nas religiões orientais é encontrado na interioridade. Trata-se de uma busca do Absoluto desconhecido na "gruta do coração" . Cultiva-se mais a mística do "entase": a descoberta do Absoluto no íntimo de si mesmo, ou a imersão na realidade de um Todo que nos inabita. A tradição oriental enfatiza mais o apofatismo teológico, excluindo, assim, a possibilidade de se alcançar o Absoluto mediante conceitos. A mediação para este encontro se dá através da experiência. Uma conhecida sentença zen afirma: "melhor ver a face do que ouvir o nome". Uma expressão desse apofatismo encontramos na experiência budista do sunyata (vazio). Este conceito vem empregado como expressão da inefabilidade e indizibilidade da realidade do Mistério Absoluto. Não indica relatividade ou vacuidade, mas a radical diversidade que separa este Mistério de todo e qualquer atributo possível de ser concretizado ou simbolizado. Na mística advaita hindu, a dinâmica religiosa vem concebida como uma experiência kenótica, de radical esvaziamento do sujeito humano e seu potenciamento para perceber a transparência do Absoluto transcendente (e inexprimível) no mundo dos fenômenos. Nesta experiência rompe-se toda dualidade (dvaita), dissolvendo-se tudo o que não é Absoluto. O sujeito, esvaziado de sua densidade ontológica, reencontra sua identidade com o Brahman. Em síntese, o cerne da espiritualidade nas tradições orientais relaciona-se com a busca da libertação mediante a purificação da consciência e a superação dos obstáculos que interditam a visão interior. Trata-se de uma piedade que se volta para o interior, aspirando a libertação dos desejos, a extinção da vida da vontade e dos afetos: um processo de auto-transformação que resulta em nova sabedoria; uma experiência de unidade adquirida mediante uma prática meditativa. O esforço aqui é pessoal. É o próprio sujeito que deve trilhar o seu caminho de aprofundamento espiritual, descobrindo por si mesmo o valor da realidade que o abarca, completa e liberta. Inexistem aqui profetas ou mediadores da palavra, salvadores ou messias que doam suas vidas por seus fiéis. A salvação é aqui fruto de um esforço pessoal. Nesta trajetória oriental, o ponto focal não está na "revelação pessoal de Deus ou no diálogo dual com o divino. O que chamamos Deus, como agente livre e definido, que sai ao encontro do humano, carece de importância central para a Índia. Mais que a existência de um Deus pessoal importa aqui a libertação do sofrimento, a descoberta da imortalidade ou salvação (moksa)." Nas religiões monoteístas ou proféticas o caminho de acesso à Realidade Absoluta é diverso. A ênfase recai agora no êxtase, ou seja, no encontro com o Deus "totalmente outro". No cristianismo e nas outras religiões proféticas, a experiência religiosa "toma a forma de um diálogo inter-pessoal de Deus - que assume a iniciativa manifestando-se - com o ser humano - que responde a tal iniciativa." Ao lado da compreensão de Deus como mistério inexprimível, a mística ocidental acentuará o conhecimento catafático (afirmativo), fazendo assim recurso ao conceito de analogia, que permite dizer algo sobre Deus mediante as vias da afirmação, da negação e da eminência. A mística profética será uma "mística da audição da Palavra". A salvação vem aqui entendida como encontro pessoal com um Deus transcendente que ao longo da história vai se manifestando através dos profetas, instaurando uma história de relações pessoais. Esta mística profética constitui a forma original da mística cristã: "uma mística que floresce no terreno da Palavra de Deus ouvida e obedecida (Rm 10.17-18) e que cresce até alcançar o caminho mais excelente (hyperbolén hodón, 1Cor 12.37), que dá realidade e consistência a todos os outros caminhos: o da fé, o da profecia, o do conhecimento dos mistérios, ou seja, o caminho da agápe (1Cor 13.2-3)." Para esclarecer ainda mais a peculiaridade tomada pelas tradições ocidental e oriental com respeito à aproximação do mistério fundamental podemos fazer menção à distinção traçada por Claude Geffré, com base nas análises de P.Ricouer e D.Tracy, entre "proclamação" e "manifestação". Enquanto que nas religiões proféticas Deus se revela mediante a proclamação de uma palavra, seja a Torah, Jesus Cristo ou o Corão; nas religiões orientais a ênfase recai na manifestação. A realidade divina não toca o ser humano a partir de fora, através de uma palavra ou lei exterior, mas apresenta-se como "o fundamento de seu próprio ser e de todo o cosmos."3 - Traços Comuns às Religiões Monoteístas ou ProféticasImportantes elementos comuns podem ser identificados nas três religiões proféticas caracterizadas pelo encontro entre Deus e o ser humano. Desde o início de suas trajetórias, o judaísmo, cristianismo e islamismo apresentam-se como religiões proféticas, distinguindo-se das religiões místicas indianas ou sapienciais chinesas. Para as religiões proféticas é Deus mesmo o sujeito da iniciativa decisiva com respeito ao evento salvífico. Este Deus entra em comunicação com o ser humano, que se coloca diante dele em atitude de escuta e confiança.Entre os traços partilhados pelas três religiões proféticas podemos assinalar a fé no único e mesmo Deus de Abraão. A origem comum das religiões monoteístas na fé de Abraão constitui a garantia da identidade pessoal do Deus que nelas vem adorado. A presença de uma "misteriosa complementaridade" entre estas três religiões abraâmicas foi sublinhada com vigor por Louis Massignon (1883-1962), um dos mais destacados orientalistas católicos. Jacques Dupuis menciona em particular a continuidade entre o Iahweh da religião hebraica e o Pai de Jesus Cristo celebrado no cristianismo, bem como a identidade pessoal que vigora entre o Deus hebraico-cristão e o Deus presente no Corão e no Islã. Isto não significa apagar as diferenças que permeiam o conceito de Deus presente nas escrituras destas três tradições. É o mesmo Deus que vem adorado, mas "segundo uma inteligência diferente de sua unidade"; diferença que nos convoca a uma "emulação recíproca" no sentido da busca da verdade transcendente do Deus sempre maior. A fé em Abraão constitui, portanto, uma referência normativa para as três religiões monoteístas e base para as propostas hoje em curso de uma "Ecumene abraâmica" que possa favorecer um retorno à autenticidade das tradições religiosas em questão e encontrar os caminhos de um novo ecumenismo, capaz de fomentar a paz e a compreensão, bem como transformar o espírito de rivalidade em entendimento recíproco no respeito às fidelidades singulares.Outros traços comuns podem ser igualmente sublinhados: uma visão da história direcionada a um fim, com início na dinâmica criacional de Deus e orientada para um horizonte querido por Deus; a presença de figuras proféticas como arautos da Palavra e da vontade de Deus; a presença da Revelação de Deus consignada num livro escrito, considerado como normativo e critério de autenticidade; um comum ethos fundamental, haurido da vontade do único Deus e expresso no decálogo hebraico-cristão (Ex 20.1-21) e no Código islâmico dos deveres (Sura 17.22-38). Uma convergência ainda mais radical ocorre a nível da fé vivida e expressa pelos místicos das respectivas tradições. Tanto na mística cristã, na tradição da kabala judaica e no sufismo islâmico, encontramos místicos de grande profundidade e que testemunham valores comuns de comunhão, manifestando "uma análoga e incansável busca de união com o Deus único para o qual tende o inteiro gênero humano". A atual sensibilidade em favor de um ecumenismo planetário tem buscado acentuar os traços comuns que unem judeus e cristãos. Com o Vaticano II, a Igreja católica manifesta uma nova sensibilidade dialogal, rompendo com antigos preconceitos que reforçavam um anti-judaísmo problemático. Com a Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs ( Nostra Aetate - NA), recorda-se o vínculo de união entre o povo do Novo Testamento com a linhagem de Abraão e o "patrimônio" comum que vincula as duas tradições religiosas (NA 4). A partir desta nova sensibilidade dialogal, novos estudos foram sendo desenvolvidos visando sublinhar estes elementos comuns. No campo cristão podem-se mencionar os aprofundamentos realizados em torno de uma teologia cristã do judaísmo, sintonizada com a explicitação da base judaica do cristianismo. Um trabalho importante realizado nesta direção foi apresentado por Hans Küng em seu livro sobre o judaísmo. Nesta obra, Hans Küng busca mostrar que o judaísmo, antes de ser um "Antigo Testamento" ultrapassado, constitui uma "realidade autônoma e dotada de estupefaciente continuidade, vitalidade e dinamismo." Este autor sublinha que o cristianismo não pode desconhecer sua base judaica: Jesus e Maria eram judeus , bem como seus discípulos e a primeira comunidade dos cristãos. Jesus cresceu e se formou em profundo contato com as Escrituras, orações, cultos e festas judaicos. Desta estreita ligação permanecem traços que são comuns: a fé no Deus único, de Abraão, Isaac e Jacó; as Sagradas Escrituras como fonte da fé comum (o Primeiro Testamento); a familiaridade partilhada na experiência litúrgica (salmos, orações e leituras); o ethos comum em favor da justiça, codificado nos dez mandamentos; a fé na continuação da história do povo de Deus, marcada pela esperança comum da comunhão plena em Deus.Assim como a abertura aos judeus, o Vaticano II sublinhou a sintonia do cristianismo com o islã. As duas tradições vinculam-se pela fé num único Deus criador. Este dato foi bem acentuado na Constituição sobre a Igreja ( Lumen Gentium - LG) : "Adoram conosco um Deus único e misericordioso, que há de julgar os homens no último dia" (LG 16) . O orientalista Louis Massignon já em 1947 sublinhara este dado: "O islã é a religião da fé, e não a religião de uma fé natural no Deus dos filósofos, mas a fé no Deus de Abraão, de Isaac e de Ismael , fé em nosso Deus".As duas tradições podem ser definidas como "religiões do livro", apresentando igualmente um acontecimento inaugurador, um texto original e uma comunidade interpretativa. As escrituras, porém, não conseguem traduzir de forma adequada o mistério inacessível da Palavra de Deus. Tanto na revelação cristã como na corânica, permanece resguardada a "distância" que interdita a objetivação perfeita desta Palavra. Analogias podem ser estabelecidas entre a Bíblia e o Corão, sobretudo com respeito à mensagem bíblica do Antigo Testamento, ou mesmo, em certos casos, do Novo Testamento. Estudiosos recentes têm buscado mostrar as afinidades e analogias entre a imagem corânica de Jesus e a cristologia judaico-cristã: a cristologia primitiva de Jesús, Servidor de Deus, presente na Igreja judaico-cristã, e que foi sendo progressivamente substituída pelas formulações gregas da Igreja helenista, que prevaleceram nas decisões dogmáticas de Éfeso e Calcedônia. 3.1 - A Experiência de Deus no JudaísmoA profissão de fé no Deus uno e único, que estabeleceu uma aliança permanente com os judeus, reconhecidos como povo de Deus, constitui "instância central do judaísmo." Foi em defesa do monoteísmo estrito que a tradição judaica reagiu permanentemente aos dogmas cristãos da Trindade e da Encarnação. A afirmação da unicidade de Deus vem expressa no início de uma das orações mais significativas da religião judaica, a Xemá: "Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh!" (Dt 6.4). As reações de estudiosos rabínicos contra as idéias metafísicas que introduziam divisões em Deus remontam aos século II e III d.C. A partir da Idade Média, e nos séculos sucessivos, o dogma trinitário vem afrontado com maior rigor. Atribuía-se ao mesmo uma atenuação do conceito de Deus uno e único de Israel. Aplica-se ao cristianismo o conceito religioso-jurídico de shittuf, ou seja, "associação ou coletivização". Para os judeus, o mistério da trindade significava uma "deformação ou enfraquecimento do monoteísmo puro." O conceito shittuf, atribuído aos cristãos, não se identificava, porém, com a noção de idolatria ou politeísmo. Considerava-se, antes, o cristianismo como um "monoteísmo atenuado e diluído". Em sua reflexão sobre a teologia cristã do pluralismo religioso, Jacques Dupuis recorda que apesar do mistério da trindade ter sido revelado em Jesus Cristo, conexões com este mesmo mistério encontraríamos já no judaísmo. Para este autor, o Antigo Testamento não excluiria a presença de uma economia universal, mediante a ação da Palavra de Deus (dabar), da Sabedoria de Deus (hokmah) e do Espírito de Deus (rûah). A Palavra de Deus diz respeito à lei divina que interpreta os significados das intervenções históricas de Iahweh (Ex 20.1-17 e Dt 5.6-22); A Sabedoria de Deus constitui um "reflexo da luz eterna" e "eflúvio do poder de Deus" (Sb 7.25-26). Criada por Iahweh "antes de seus feitos mais antigos" (Pr 8.22), é esta Sabedoria que aponta o caminho da vida, da inteligência e do favor de Iahweh. O Espírito de Deus, por sua vez, representa a vitalidade, energia e potência divina em ação desde o ato criador. Trata-se do Espírito que dá vida ao caos, renova a face da terra e ativa os seres humanos com sua energia criadora. A Palavra, a Sabedoria e o Espírito não representam pessoas distintas de Iahweh, mas atributos dinâmicos de Deus. Esta tríade revela, segundo Dupuis, as relações de Deus com a humanidade no processo da história da salvação e apresentam de forma antecipada "as principais categorias que a auto-revelação de Deus em Jesus Cristo e a sua elaboração no contexto da tradição cristã iriam colocar posteriormente em ação." A afirmação de Deus defendida pelos judeus não pode, porém, ser identificada com um monoteísmo transcendente rigoroso. Não há como sustentar esta hipótese com base na Bíblia vetero ou neo-testamentária, nem na literatura talmúdica ou judaico-esotérica. O que transparece em toda a tradição judaica é a ideia do Deus da aliança, de um Deus terno e compassivo, que se insere nas situações de seu povo e condivide com ele a sua trajetória. O Deus judaico é animado de um "pathos atual", que deixa ser visitado em sua intimidade pelos profetas bíblicos e outros destinatários de seu amor. Trata-se de um Deus que ama os seres humanos, que sofre com os seres humanos, que precisa dos seres humanos e se revela com muitos "rostos".No judaísmo percebemos a presença de uma dialética que articula os conceitos de Deus como infinito e transcendente e, ao mesmo tempo, profundamente próximo e vizinho ao ser humano. O livro do Êxodo aponta a distância que separa Deus do ser humano: "Não poderás ver a minha face..." (Ex 33. 20). Já o livro de Isaías descreve de forma muito feliz a idéia da proximidade: "Eu habito em lugar alto e santo, mas estou junto ao abatido e humilde..." (Is 57.15). O Deus de Israel está sempre muito próximo de seu povo, como o Deus clemente e misericordioso: "Qual a grande nação cujos deuses lhe estejam tão próximos como Iahweh nosso Deus, todas as vezes que o invocamos ?" (Dt 4.7). Esta proximidade e presença de Deus junto aos seres humanos foi descrita de forma particular na teologia da shekinah, presente no judaísmo rabínico, que sublinha a inabitação, enquanto modo particular de existir e agir de Deus. O Deus da aliança não se faz unicamente presente na tenda da aliança ou no templo, mas acompanha sempre a comunidade de seu povo, mesmo no exílio: é o Deus Emanuel, o Deus-conosco. A afirmação da proximidade de Deus junto aos seres humanos não significa, entretanto, uma pura e simples identificação. O traço de distinção vem sempre acentuado com vigor pelos judeus. Daí a grande dificuldade em aceitar, nos meios judaicos, a idéia de que numa certa época da história humana Deus tenha se encarnado num ser humano. A doutrina da encarnação vem igualmente identificada pelos judeus como "mistura", "união" ou "associação" indevida de algo criado com Deus (shittuf). A tradição judaica manterá sempre acesa a reserva contra a perspectiva cristã que situa num mesmo plano ontológico Jesus e o Pai, o que ocorreu sobretudo após sua difusão no universo helenista.A divergência entre judeus e cristãos, como bem acentuou David Flusser, não situa-se no âmbito das doutrinas de Jesus, mas no âmbito da cristologia. Importantes autores da tradição judaica reconhecem em Jesus um "judeu exemplar". O filósofo Martin Buber define Jesus como o "irmão maior", portador de uma mensagem autenticamente judaica. Igualmente o seu discípulo, Schalom Bem Chorin, retoma esta idéia de Jesus como judeu exemplar, reconhecendo nele alguém animado por uma fé incondicionada em Deus e radicalmente fiel à sua vontade. No exemplo de Jesus identifica o elo de união entre judeus e cristãos. No campo católico, ocorre similar reconhecimento. Como afirmado no documento da Conferência Episcopal Alemã, "quem encontra Jesus Cristo, encontra o judaísmo." Os autores da tradição judaica reconhecem em Jesus uma personalidade exemplar, mas nada além de um homem exemplar. Na expressão de Bem Chorin, "a fé de Jesus nos une, mas a fé em Jesus nos divide". A dificuldade maior está em aceitar Jesus Cristo como a segunda pessoa da trindade divina. Para os judeus isto é inaceitável, e justamente pelo fato de Jesus ter sido um judeu. Segundo o estudioso judeu, Pinchas Lapide, os caminhos de diálogo entre judeus e cristãos devem tomar como base não a elevada cristologia dos concílios (a partir do alto), mas a trajetória histórica de Jesus (a partir de baixo). Partindo do olhar com que os discípulos de Jesus puderam identificá-lo e perceber o conteúdo de sua mensagem na história, é que se abrem novas pistas para o diálogo com os judeus que, igualmente, podem levantar a questão: "quem foi propriamente ele ?"3.2 - A Experiência de Deus no CristianismoO cristianismo encontra-se fundado numa compreensão de um Deus que é comunhão, de um Deus que integra as diferenças: de um Deus que é Trindade e não solidão. Ele suscita a diferença, não por estar marcado pela insuficiência, mas justamente por ser comunhão. Por ocasião do Encontro de Puebla, João Paulo II afirmara: "Já se disse de forma bela e profunda, que nosso Deus em seu mistério mais íntimo não é uma solidão, mas uma família, pois leva em si mesmo a paternidade, a filiação e a essência da família que é o amor" . A concepção cristã de Deus descarta, por si mesma, toda perspectiva monolítica e fechada de Deus: Existe, pois, uma "dimensão 'plural' em Deus" . Rico em sua unidade de relações, o Deus cristão não é nem o "Um" do monoteísmo estrito (de tipo plotiniano ), nem o "Vários" do politeísmo. Trata-se de um Deus que "integra o plural. Um monoteísmo que integra, ousaria dizer, a inquietude, o sussurro, a riqueza do plural." Como bem sabemos, mediante a perspectiva trinitária, o plural, o múltiplo não podem, absolutamente, ser identificados como algo negativo. Esta identificação foi fruto da tradição grega e filosófica que, com poucas exceções, ponderou unicamente a glória e a nobreza do "Um" encerrado em si mesmo, como o de Plotino. O monoteísmo presente no cristianismo revela-nos que o "Um" é rico de uma multiplicidade interna. A riqueza da composição de vários em um foi observada por muitos pensadores, teólogos e poetas. Pascal dizia: "Toda a verdade é feita de verdades contrárias que parecem excluí-la e que subsistem numa ordem admirável." Este monoteísmo original e aberto foi fruto da "audácia" das primeiras gerações cristãs, que souberam "transgredir" a compreensão do monoteísmo comum. Deus não se encontra na solidão, Deus não é solidão: "Non in solitudine Deus", diz Ilario de Poitiers. Já Orígenes, em sua homilia sobre Ezequiel, rompia o bloqueio do conceito filosófico grego do Deus impassível, ao sublinhar que o Deus cristão é alguém que tem piedade, que se compadece, que experimenta uma paixão de caridade. Salienta que "nem mesmo o Pai é impassível. Ao se colocar diante dele em oração, ele manifesta piedade e se compadece, experimenta uma paixão de caridade, colocando-se numa condição incompatível com a grandeza de sua natureza." Essa "kenosis" de Deus, esse "descensus": esse vir ao encontro do humano era algo de inimaginável para aquele tempo e em viva contradição com o paganismo. Como sublinha Gesché, Deus não seria a rigor monoteísta. É, de fato, a partir do "três" que aprendemos o significado do "um".O cristianismo não fecha, assim, caminho a uma concepção mais flexível da unidade. Neste sentido, introduz em sua própria linguagem uma abertura que felizmente impossibilita qualquer raciocínio excludente. Assim, podemos nos aproximar da intimidade de Deus, um Deus que integra a diferença e que convoca o cristianismo a dar direito à diferença. Trata-se, igualmente, de um Deus que é mistério que sempre advém. Um Deus que é mistério do mundo, mas cuja visibilidade é provisória: se dá nas condições do mundo. "O mundo não pode tornar manifesto o Deus eterno de modo eterno, divino." O ser de Deus guarda surpresas inauditas para cada um de nós. Sua substância mais íntima constitui "evento do vir-a-ser": é o Deus que era, que é e que vem.O Deus da Bíblia é um Deus que "bendiz o múltiplo". Já no livro do Gênesis a multiplicidade das famílias da terra e a variedade de suas línguas vêm acolhidas e celebradas positivamente (Gn 10.31-32). E todas as nações da terra benditas (Gn 12.3). O episódio da torre da babel, no capítulo 11 do mesmo livro, narra a condenação divina da ambição humana idolátrica de colocar no lugar de Deus uma humanidade monolítica. A pluralidade vem, assim, acolhida por Deus. No Novo Testamento, o episódio de Pentecostes constitui a real consagração do plural e de sua cidadania. A efusão do Espírito indica que "a pluralidade das línguas e das culturas é necessária para traduzir a riqueza multiforme do mistério de Deus." O Deus de Jesus é alguém que comunga com o ser humano: um Deus "de ternura e de piedade, lento para a cólera, rico em amor e fidelidade" (Ex 34.6). Como bem sublinhou W.Pannenberg, o Deus de Jesus não se difere do Deus testemunhado no Antigo Testamento e reverenciado na fé judaica: o mesmo Deus de Abraão, Isaac e Jacó (Mt 12.26s). É um Deus de misericórdia (rahamim ) e de bondade (hanum), rico em graça (hesed) e fidelidade ('emet). "Estas são imagens tomadas das emoções e atitudes que mais intimamente comprometem a vida pessoal dos seres humanos, as que serão aplicadas a Javé com particular realismo pelos profetas." Como recorda Ronaldo Muñoz, 'rahum' é a ternura, o carinho e a compaixão que sente a mãe pelo seu filho pequeno; 'hanun', a benevolência ou favor dedicado por alguém para com os seus prediletos; 'hesed', o amor de solidariedade e a confiança mútua dos que estão intimamente ligados. O Deus de Jesus não é o Deus da ataraxia estóica, da impassibilidade platônica, da imobilidade aristotélica, mas um Deus que cuida do ser humano, alguém atento e preocupado. E assim se manifesta desde a primeira página da Bíblia: "Não é bom que o homem esteja só" (Gn 2.18), até a sua última página, com o livro do Apocalipse: "Eis que eu venho em breve" (Ap 22.7). Um Deus que "cuida de cada cabelo de nossa cabeça" (cf. Lc 21.18), que faz o sol nascer indistintamente para todos e a chuva jorrar sobre justos e injustos (Mt 5.45). Os Evangelhos testemunham de forma muito clara como Jesus retoma esta dinâmica de alteridade, suscitada pela sua profunda relação com o Pai. Trata-se de alguém que se afirmou e cresceu como um "judeu fiel" mas ao mesmo tempo crítico diante das rigorosas observâncias religiosas mantidas pelos judeus como expressão da vontade de Deus. Esta relação de alteridade foi descrita de forma primorosa pelo biblista Carlos Mesters em trabalhos recentes. Ao conviver 30 anos no interior da Galiléia, Jesus se dá conta da dura realidade da exclusão sofrida por segmentos simples da população: os leprosos, os doentes, os publicanos, as mulheres, os pagãos, os pobres e outros. Excluídos ou renegados em nome das normas vigentes da cultura e da religião. Um dos traços peculiares da prática de Jesus é a acolhida dada aos excluídos: sua ternura e o amor receptivo para com os pobres e os excluídos de seu tempo, sobretudo para com os samaritanos. Para os judeus daquele tempo, os samaritanos eram postos, do ponto de vista cultual e ritual , "em pé de igualdade com os pagãos." Como sublinha Mesters, o povo dos terreiros de candomblé é hoje, para muitos de nós católicos, o que os samaritanos eram para os judeus no tempo de Jesus. Aos samaritanos Jesus dedica de modo preferencial a sua ternura e amor acolhedor. Jesus não condena a aproximação com o diferente. Ele faz o contrário. Na parábola do bom samaritano coloca um samaritano como exemplo para o sacerdote e o levita (Lc 10.29-37). Em bela passagem de sua clássica obra sobre a teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez sublinha que o samaritano acerca-se do ferido que está à beira do caminho, não por um frio cumprimento de obrigação religiosa, mas porque 'se lhe removem as entranhas', porque seu amor por esse homem se fez carne nele." Jesus não evita o território "impuro" dos samaritanos, como o faziam os judeus observantes da época. Ele entra nas cidades e nos povoados da Samaria, mesmo sem ser bem recebido (Lc 9.52-53). No episódio dos dez leprosos, descrito por Lucas, será justamente o samaritano aquele que o reconhecerá e o agradecerá pela graça recebida (Lc 17.15-16). "Jesus puxa conversa com a mulher samaritana, o que era proibido pelos costumes da época (Jo 4.7) . E conversando com ela, não a condenou. Pelo contrário, foi a esta mulher da Samaria que ele, por primeiro, se revelou como o Messias (Jo 4.25-26). Na conversa com a samaritana, Jesus colocou os pingos nos "is" (Jo 4.21-22), mas não disse que ela devia abandonar a sua religião."Jesus não fazia acepção de pessoas: convivia e partilhava a comida com pecadores e publicanos (Mc 2.15-16 e Lc 5.30). Escandaliza os poderosos de então ao afirmar que os publicanos e as prostitutas teriam precedência no Reino de Deus (Mt 21.31). Os excluídos tinham um lugar destacado em seu coração. Não reage com repulsa, como o fariseu, ao gesto acolhedor da prostituta que derrama o frasco de alabastro com perfume em seus pés, enxugando-os com os cabelos. Ao contrário, reconhece neste gesto a demonstração de um grande amor (Lc 7.36-47). Jesus tocava em pessoas impuras, abraçava as crianças, chamava as mulheres para seguí-lo. Jesus é capaz de acolher a mulher cananéia, que era de outra raça e religião; o oficial romano, pagão e dizer: "Nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé" (Lc 7.9); de aceitar o desconhecido que expulsa demônios em nome de Jesus, mesmo não pertencendo à sua comunidade (Mc 9.38-40); de reconhecer o valor e fé em todos aqueles que se comprometem na solidariedade para com os necessitados, independentemente da religião professada (Mt 25.31-46). A misericórdia era a "chave de sua ética" e, para ele, o canal privilegiado de acesso ao Reino da Vida.A missão que Jesus confere a seus discípulos e discípulas era uma missão de paz. Ao contrário de outros missionários descritos no Evangelho (Mt 23.15), os seguidores de Jesus não podiam levar nada em sua missão: nem ouro, nem prata, nem cobre, nem duas túnicas ou sandálias. Deviam ser portadores de paz: "ao entrar na casa, saudai-a". E que a paz desça sobre ela (Mt 10.9-13). Nem sequer comida deviam levar. Jesus recomendou-lhes que "nada levassem para o caminho", nem mesmo o pão (Mc 6.8), e que partilhassem a comida do povo. O missionário devia confiar na hospitalidade do povo e aceitar a comunhão de mesa: "comei o que vos servirem" (Lc 10.8). Em sua missão, deviam cuidar dos excluídos, doentes e estigmatizados. Somente ao cumprir as exigência de afirmação de vida é que podiam, então, saudar e se alegrar com a chegada do Reino (Lc 10.1-12; 9.1-6; Mc 6.7-13; Mt 10.6-16). O objetivo decisivo da missão não era, em primeiro lugar, "anunciar uma nova doutrina, mas sim testemunhar uma nova maneira de viver e de conviver. Deviam recriar e reforçar a comunidade local, o clã, a casa, para que esta pudesse ser novamente uma expressão do Reino, uma expressão do amor de Deus como Pai que faz de todos irmãos e irmãs." A missão dos discípulos e discípulas de Jesus revela que o Reino começa a acontecer quando as pessoas, tocadas pela vida e mensagem de Jesus, passam a acolher e partilhar as riquezas e valores que possuem; quando assumem em toda a sua radicalidade a dinâmica da filiação e da fraternidade: criaturas e filhos de Deus e irmãos e irmãs uns dos outros. O anúncio da Boa Nova de Jesus consiste justamente em tirar o véu e revelar que o Reino de Deus está em nosso meio (Lc 17.21) e acontece "onde quer que Deus esteja reinando mediante sua graça, seu amor, vencendo o pecado e ajudando os homens a crescer" 3.3 - A Experiência de Deus no Islã Para a tradição do Islã, a grande teofania está presente num livro: o Corão. A Palavra ocupa nesta tradição religiosa uma importância fundamental. Trata-se de um "ditado sobrenatural, registrado por um profeta inspirado." Para os muçulmanos, o Corão traduz a Revelação mesma de Deus descida sob a forma de Livro. Para a espiritualidade muçulmana, é o Corão e não o profeta Maomé que ocupa o lugar fenomenologicamente análogo ao de Jesus Cristo para os cristão. Nesse sentido, ele pode ser corretamente definido como o "Verbo enlivrado." Enquanto Palavra de Deus (Kalam Allah), o Corão nos abre pistas importantes para a compreensão de Deus na tradição islâmica. A tradição islâmica não cessa de recordar os 99 nomes de Deus presentes no Corão. Para a exegese muçulmana, estes nomes representam símbolos ou qualificativos da realidade divina, jamais alcançada pelos limites humanos. Para Deus são reservados os "mais belos nomes" (7.180; 17.110). Com base na descrição corânica de Deus pode-se acentuar, em primeiro lugar, a afirmação decisiva da transcendência de Deus e a total dependência de todas as criaturas para com Ele. A própria raiz da palavra islã refere-se à "submissão" a Deus, sendo o muçulmano (muslin) aquele que se submete a Deus. O fato de ser transcendente, grandioso e altíssmo (13.9), para além do que é transitório e efêmero, não significa que esteja distante e insensível aos caminhos do humano. Embora distinto do ser humano, Deus dele se aproxima com grande intimidade. Deus é portador das "chaves do incognoscível"(6.59), mas também Aquele do qual "estamos mais perto do que a [sua] artéria jugular (50.16). O Deus de que fala o Corão é o criador de todas as coisas (13.16; 6.102), exercendo sobre as mesmas uma soberania absoluta. É também o Deus único e uno professado com grande devoção pelos muçulmanos na profissão de fé (shahadah): "Não há outro Deus senão Deus" (lâ ilâha illâ Allâh). Declaração explícita desta unidade de Deus encontraremos na Sura 112: "Dize: Ele é o Deus único; Deus é eterno. Jamais gerou ou foi gerado e ninguém é comparável a Ele". Esta surata, de grande importância na liturgia, e uma das mais apreciadas pelos muçulmanos, confirma a profissão de fé monoteista do islã. Com ela reafirma-se a polêmica tradicional entre cristãos e muçulmanos a propósito do dogma da trindade. Esta profissão de fé muçulmana vem confirmar a fé inicial de Israel: "Tu adorarás um só Deus". Na descrição corânica, Deus emerge igualmente como onipotente e misericordioso. Com o qualificativo do Deus onipotente busca-se enfatizar o dado fundamental da adoração e submissão do ser humano a Deus. Por sua vez, o qualificativo da misericórdia vem confirmar a extrema bondade de Deus. Em linha de sintonia com o Deus bíblico (Ex 34.6-7), o Deus do Corão é animado por uma misericórdia que "abraça todas as coisas" (7.156). O qualificativo al-rahman (misericordioso) aparece inúmeras vezes no Corão, como um dos importantes nomes atribuídos a Deus.Uma série de outros nomes são atribuídos a Deus no Corão, alguns com posição de maior destaque, outros com menor número de menções no Livro. Todos eles, porém, conhecidos e recitados de memória nas orações dos fiéis. Alguns deles vem agrupados em suratas importantes (57.1 e 59.22-24), outros aparecem na chamada de cada surata (clemente e misericordioso). Todos eles relacionam-se, em síntese, com os seguintes temas: "unicidade de Deus, santidade e transcendência, criação e soberania, justiça e retribuição, misericórdia e mansidão, vida e eternidade." Há na reflexão muçulmana a presença de uma "teologia negativa" que mantém sempre inacessível o mistério de Deus. Esta teologia estará presente sobretudo na tradição mística sufi. O grande mestre Al-Ghazali sublinhou com ênfase a impossibilidade do conhecimento de Deus por parte dos iniciados. A única certeza que podem estar animados, é a certeza da incapacidade de tal conhecimento, pois "conhecer realmente Deus é impossível a quem quer que esteja fora de Deus mesmo." Aos 99 "belos nomes de Deus", a especulação dos místicos acrescentou um centésimo nome: al-ism. Este seria o "nome máximo", desconhecido e impronunciável, mas portador de enormes virtudes. Trata-se de um nome só acessível aos místicos mais iluminados. Quando evocamos anteriormente os traços que unem o cristianismo e o islã, mencionamos o dado da fé no único Deus criador. Não é incorreto afirmar esta comunhão de fé na transcendência pessoal do Deus único. É o mesmo Deus que vem adorado, mas segundo uma "inteligência diferente de sua unidade". A tradição muçulmana tem grande dificuldade de aceitar um monoteísmo que reconcilie a imutabilidade inalterável de Deus com a sua encarnação em Jesus Cristo; bem como a unicidade de Deus com a trindade de pessoas. Esta é a grande questão e o ponto nodal de diferenciação das duas tradições. A tradição islâmica reconhece valores excepcionais na pessoa de Jesus ('Îsâ). Este vem reconhecido no Corão como um sinal e exemplo para os homens (19.21 e 43.59) um profeta e enviado, perfeito "servidor de Deus" (19.30). Sua descrição ganha no Corão prerrogativas excepcionais: o caráter singular de seu nascimento da virgem (19.9), o reconhecimento de sua vizinhança e proximidade com Deus, o seu traço messiânico, os seus prodígios e milagres. Este reconhecimento não leva, porém, a uma afirmação da sua divindade. O Corão é claro ao afirmar que Deus não teve nem cônjuge nem filho (72.3); que não gerou nem foi gerado (112.3); e todos aqueles que afirmam a divindade de Jesus são identificados como "descrentes" (5.17); bem como os que dizem que "Deus é o terceiro dos três" (5.73).A resistência à doutrina da trindade cristã é menor no circuito da mística sufi e no esoterismo islâmico. No século XIX, o poeta sufi persa Hatif Isfahani reconheceu no cristianismo a afirmação da Unidade Divina, mesmo com a presença da doutrina trinitária, desde que a trindade pudesse ser reconhecida em seu sentido metafísico. Em poema de rara beleza ele descreve a resposta de uma "encantadora de coração cristã" às indagações críticas à sua crença na trindade: "Se tu sabes o Segredo da Divina Unidade, não jogues sobre nós o estigma da infidelidade. A beleza eterna lançou um raio de seu refulgente semblante em três espelhos. A seda não se converte em três coisas se tu as chamas parniyan, harir e parandn." Em semelhante linha de reflexão, o estudioso Frithjof Schuon sublinha que a restrição feita à Trindade no Corão é "extrínseca e condicional". Argumenta que a afirmação da Trindade não significa necessariamente a ruptura com a Unidade: "O conceito de uma Trindade enquanto 'desenvolvimento' (tajalli) da Unidade ou do Absoluto em nada se opõe à doutrina unitária do Islão. Aquilo que se lhe opõe é tão-só a atribuição do caráter absoluto à Trindade pura e simples...". Como estamos observando, a doutrina da Trindade permanece uma pedra de tropeço seja para os judeus como para os muçulmanos, embora devamos reconhecer os esforços presentes na busca de um entendimento mútuo. No campo da teologia cristã, podemos mencionar o trabalho realizado por importantes teólogos no sentido de uma formulação da doutrina trinitária didaticamente assimilável fora da esfera cristã. Em artigo sobre a unicidade e trindade de Deus no diálogo com o Islã, Karl Rahner sugere uma formulação sobre a Trindade assimilável nos espaços extra-cristãos. Rahner acreditava num diálogo verdadeiro entre teólogos cristãos e islamitas em base à comum confissão no Deus uno e único. Sem desrespeitar as "regras linguísticas" da doutrina trinitária clássica, este autor afirma que "um discurso das 'três pessoas' e da mesma 'Trindade' (não encontrada no Novo Testamento) não é incondicionalmente necessário para expressar aquilo que o cristianismo entende apropriadamente dizer com tal doutrina trinitária." Toda esta complexa discussão suscita um duplo desafio, para cristãos e muçulmanos. De um lado, a importância dos cristãos estarem mais atentos ao significado e valor do monoteísmo, bem como da transcendência inviolável de Deus; por outro, a necessária abertura dos muçulmanos no sentido de uma maior "dinamização" da unicidade de Deus, rompendo com o risco de uma compreensão da divindade como perfeição auto-suficiente, de forma a poder reconhecer o valor de uma identidade permeável à diferença. Esta mútua interpelação abrirá, certamente, novos caminhos para o diálogo. 4 - A Questão de Deus nas Religiões Místicas do Oriente Destacar a questão de Deus ou da Realidade Absoluta nas religiões místicas do Oriente é uma tarefa extremamente complexa e intrincada, sobretudo em razão da diversidade de experiências existentes, das visões de mundo na qual se baseiam e das nuances distintas que apresentam. Mas não há como seguir tratando a questão de Deus ou de Jesus Cristo hoje em dia desconhecendo a importância e o valor das outras tradições religiosas. A concepção de Deus presente no Ocidente não esgota a complexidade que envolve a reflexão sobre o tema. "As experiências, formas, modelações e idéias religiosas da humanidade são infinitamente ricas, e infinitamente complexa é sua problemática." O teólogo cristão é convidado a buscar uma aproximação a tais experiências, com espírito desarmado, e tentar captar a importante questão da relação que vigora entre a Realidade Absoluta afirmada por tais tradições e o Deus das religiões monoteístas. O desafio teológico de compreensão desta importante relação vem sendo objeto de reflexão de muitos autores hoje em dia. Gostaria de sublinhar, de modo especial, o grandioso esforço realizado por Jacques Dupuis em sua obra sobre a teologia cristã do pluralismo religioso. Este autor busca enfrentar num dos capítulos de seu livro a questão do mistério absoluto de Deus, enquanto horizonte transcendental da experiência religiosa humana que ocorre nas diversas tradições religiosas. Sustenta em sua reflexão ser "legítimo encontrar nas tradições místicas do Oriente aproximações e prefigurações do mistério Último do Ser assim como vem revelado e manifestado de forma decisiva, embora ainda incompleta em Jesus Cristo." Em razão da complexidade que envolve o tema das religiões místicas do Oriente, bem como da delimitação da reflexão proposta neste artigo, nos restringiremos a apontar alguns dos traços que caracterizam a experiência da Realidade Absoluta no budismo e os traços de sua relação com o cristianismo. 4.1 - A Experiência da Realidade Absoluta no Budismo A grande dificuldade que interdita o acesso do ocidental à experiência singular do budismo diz respeito à questão da linguagem. Deve-se sublinhar que alguns termos que são utilizados nas duas tradições religiosas ganham um conteúdo diferenciado: é o caso de "ateísmo-teísmo", "religião-fé", "materialismo-espiritualismo" etc. Termos utilizados pelos cristãos para designarem a realidade de Deus são motivo de escândalo para os budistas e outros orientais, como é caso dos aplicativos: "pessoa" , "espírito", "criador". Por sua vez, termos empregados na tradição budista permanecem misteriosos ou impenetráveis para a sensibilidade ocidental: "sunyata" (vazio) "anatta" (não-eu) e outros. Estes últimos termos, em particular, adquirem um sentido radicalmente distinto no Ocidente e Oriente. Na tradição original, não estão marcados pelo acento negativo atribuído aos mesmos no Ocidente. Impõe-se, assim, o importante trabalho hermenêutico capaz de favorecer a real compreensão dos eixos essenciais da religião que se busca compreender e dialogar. O estudo comparado das religiões tem mostrado de forma precisa como cada linguagem "é reveladora de um sentido 'contextualizado' e de uma experiência determinada. Julgar a linguagem dos outros no interior da própria tradição, constitui uma armadilha muito perigosa para o trabalho de compreensão da alteridade." O caminho mais indicado para o acesso do ocidental à compreensão da Realidade Absoluta no budismo é o da teologia negativa. A teologia ocidental conheceu igualmente este traço da afirmação da transcendência pela sua negação, com a qual os orientais estão mais habituados. No Ocidente, as raízes da teologia negativa (ou apofática) encontram-se no neo-platonismo. Dentre os seus representantes podemos assinalar: Pseudo-Dionisio, Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa e Tomás de Aquino. O importante estudioso do budismo, Heinrich Dumoulin, ressaltou em sua reflexão sobre o tema a dimensão transcendente das experiências religiosas no budismo, fato reconhecido por budistas e não budistas. O autor assinala, todavia, que a religião budista não visa diretamente a Realidade transcendente. Isto significa que "nenhuma concepção religiosa particular do Budismo pode encontrar equivalência perfeita com a Realidade absoluta indicada pelo cristianismo com o nome de Deus." Seria um equívoco atribuir simplesmente ao budismo o qualificativo de "ateísmo". Os estudiosos atuais são mais cuidadosos quando refletem sobre o tema, evitando os enquadramentos peremptórios. É verdade que o conceito de um Deus pessoal e criador não existe no budismo. A dificuldade para os budistas está em conceber o Absoluto como um ser pessoal, pois o conceito de pessoa significa para eles individualidade, apego a si etc. Não há, porém, dificuldade de se aceitar no budismo o conceito impessoal ou supra-pessoal de divindade. A forma como os budistas expressam o Absoluto é distinta dos ocidentais; fazem recurso a termos como "vazio", "nada" ("sunyata"), "extinção" ("nirvana"). O significado de "vazio" ou "nada" não indica para eles relatividade ou nihilismo, mas sobretudo a "completa diversidade de tudo o que existe ou de tudo o que se refere à consciência lógica." De forma semelhante, a compreensão de nirvana no budismo não pode ser concebida de forma negativa. Trata-se da "extinção" dos desejos e sofrimentos e a imersão na quietude eterna; de um "estado" de supressão de todas as dores. Ao refletir sobre esta questão, Edward Conze, estudioso do budismo sublinhou: "Se consideramos os atributos da divindade assim como são compreendidos na tradição mística cristã e depois os relacionamos com os atributos do Nirvana, quase não encontraremos nenhuma diferença a nível de conteúdo." Na experiência zen budista enfatiza-se sobretudo "a base inexprimível e inexplicável da experiência direta" . Não necessariamente da experiência de Deus como designada no Ocidente, mas da experiência da vida. Como afirma Suzuki, Deus não vem nem negado nem afirmado; o que se busca é a "mente livre", e para tanto, é necessário transpor um "abismo sem fundo" e chegar ao radical desapego de si. O misticismo revelado pelo zen é o encontro com a simplicidade da realidade. O que ele busca é abrir "os olhos do homem para o grande mistério que diariamente é representado. Alarga o coração para que ele abranja a eternidade do tempo e o infinito do espaço em cada palpitação e faz-nos viver no mundo como se estivéssemos andando no Jardim do Édem." A ênfase recai não sobre a explicação, sempre acidental para a tradição zen, mas sobre a experiência, para ela essencial. Dentre os pensadores cristãos, talvez tenha sido Mestre Eckhart quem melhor alcançou o significado do zen budismo, ao apontar o radical sentido de esvaziamento como condição para a experiência do mistério de Deus: "Deveria o homem ser tão pobre que não possuísse nem mesmo um lugar onde Deus pudesse atuar. Reservar um lugar seria manter distinções." Para Mestre Eckhart, só quando o eu está totalmente despojado, livre de qualquer "vestígio", ou "espaço" para a ação de Deus, é que se recobra o "verdadeiro eu". O encontro com a meta proposta pelo zen implica em superar todas as idéias, inclusive a "idéia de não ter nada": "Buda revela-se a si mesmo quando não é mais afirmado. Para encontrar o Buda temos de renunciar ao Buda. Este é o único caminho para obter a verdade do Zen."Encontramos de fato em toda a tradição budista um "silêncio de Deus", uma reticência em dar nome à realidade absoluta e transcendente. Isto não significa uma ausência da questão religiosa ou do sentido, profundamente presentes em todas as suas expressões. Trata-se da negação como "cifra da transcendência". O silêncio de Deus praticado no budismo não reflete um ateísmo nihilista, mas constitui "a forma mais radical de preservar a condição misteriosa de Deus, o supremo, a que toda religião aponta, embora nem sempre de forma conseqüente." O caminho enfatizado pelo budismo relaciona-se com o exercício prático da libertação da dor, que passa pela interiorização e pelo desapego. Como bem sublinhou o Dalai Lama, o budismo "não se volta para algo externo e sim para a responsabilidade pessoal do desenvolvimento interior." Os passos desta viagem interior estão presentes nas 4 nobres verdades contidas nos ensinamentos de Buda e que representam o núcleo mesmo do budismo. Esta verdades podem ser assim sintetizadas: a verdade do sofrimento, a verdade da origem do sofrimento (a ilusão do apego, do orgulho, das visões errôneas ou equivocadas do ego), a verdade da cessação do sofrimento e a verdade do caminho de superação do sofrimento (que pressupõe moralidade, concentração e a sabedoria do desprendimento). 5 - Em Favor de Um Ecumenismo Planetário: Desdobramentos e Desafios Um dos fundamentais desafios enfrentados hoje pelas religiões diz respeito ao diálogo de obras, de mútua colaboração em favor de um mundo melhor e mais justo. Um diálogo de responsabilidade comum por todos os povos da terra, mas que garanta a singularidade das religiões. Um diálogo, portanto, animado pelo equilíbrio entre a consciência da diversidade e o imperativo da responsabilidade. A alteridade irredutível de cada tradição religiosa deverá estar sempre garantida no processo dialogal, e isto significa ser capaz de perceber o outro como "mysterium tremendum", que jamais pode ser completado ou reduzido em seu significado único. Ao mesmo tempo, percebê-lo como "mysterium fascinans", ou seja, um mistério que igualmente convida ao encontro e que se abre ao aprendizado da diferença. O encontro e cooperação entre as religiões constitui hoje um requisito essencial para a paz entre as nações: "Não haverá paz entre as religiões sem um diálogo entre as religiões." O ecumenismo planetário constitui uma ampliação da "ecumene abraâmica", na medida em que busca envolver todas as religiões da terra em favor de uma comum responsabilidade eco-humana. Os passos para o diálogo envolvem não somente uma responsabilidade prática, mas igualmente uma abertura aos enriquecimentos múltiplos que o encontro desarmado pode e deve favorecer. No caso específico do cristianismo emergem desafios muito importantes. Com respeito ao diálogo com o judaísmo, exige-se, em primeiro lugar, a superação de todo e qualquer sentimento de hostilidade que caracterizou o passado das relações entre as duas tradições. Impõe-se o reconhecimento dos profundos laços de dependência que vinculam o cristianismo ao judaísmo ; igualmente a abertura e disponibilidade para "escutar o testemunho dos judeus, a aprender com a sua experiência de vida e de fé e, portanto, colher novos aspectos da tradição bíblica." Com respeito ao diálogo com o islã, impõe-se a necessidade de um maior respeito e abertura ao valor do Corão, enquanto Palavra de Deus diferente e autêntica, bem como o reconhecimento de Maomé como profeta verdadeiro. A teologia cristã da criação sairá igualmente enriquecida quando animada pelo contato com o Corão, que favorece perceber com grande riqueza o "admirável sentido da beleza e estabilidade do mundo criado" testemunhado neste Livro. O budismo, por sua vez, favorece aos cristãos grandes inspirações éticas e religiosas, tão bem sinalizadas por João Paulo II em ocasiões diversas: o caminho de renovação do indivíduo, o estilo de vida fundado na compaixão, bondade e desejo de paz, prosperidade e harmonia para com todos os seres viventes, o profundo respeito pela vida e a natureza, a renegação de si, a busca da verdade e o incessante esforço de transcendência. Durante a jornada mundial de oração pela paz, realizada em 1986 na cidade de Assis, João Paulo II fez menção à "viagem fraterna" que os fiéis das diversas tradições religiosas realizam em comum em direção à meta transcendente de Deus. Somos todos nesta história convidados por Deus mesmo a entrar no "mistério de sua paciência" e a buscarmos juntos os valores da verdade transcendente. Só Deus conhece a forma como esta etapa histórica será coroada no fim dos tempos. Nenhuma religião pode pretender esgotar toda a verdade, pois só Deus é senhor da verdade plena. Estamos todos sob o mistério do inescrutável da transcendência amorosa de Deus. Somos todos "homines viatores", sempre a caminho. A Igreja cristã é igualmente peregrina: "Ecclesia peregrinans". E não estamos sozinhos nesta travessia, mas acompanhados, em relação de testemunho e aprendizado, pelos fiéis de todas as tradições religiosas da humanidade. No processo de comunicação permanente com os outros, crescemos e ajudamos a crescer. Como bem lembrou H.Küng, ao final de sua teologia a caminho, a história permanece aberta ao futuro: Só uma coisa é certa a respeito do futuro: no final da vida humana e do curso do mundo, já não existirá Budismo ou Hinduísmo, tampouco o Islamismo e o judaísmo, nem o Cristianismo. No final não existirá nenhuma religião, mas se encontrará o próprio Inefável ao qual se dirigem todas as religiões. E só então, quando o imperfeito cede ao perfeito, os cristãos o conhecerão do mesmo modo como são conhecidos: a verdade face a face. No final não haverá mais profetas ou iluminados que dividam as religiões: nem Maomé nem Buda nem o próprio Jesus Cristo em quem os cristãos crêem, serão causa de divisão.
Este artigo apresenta uma reflexão aproximativa da experiência de Deus nas religiões, partindo da perspectiva localizada da teologia cristã das religiões, mormente de inspiração católico-romana. Com base na distinção estabelecida por R. C. Zaehner entre as religiões proféticas ou monoteístas e orientais ou místicas, busca-se apresentar de forma panorâmica e concisa o modo como as tradições judaica, cristã, islâmica e budista expressam a realidade do mistério fundamental. Em seguida, apontam-se os traços comuns e as tensões presentes entre o cristianismo e estas tradições religiosas. O objetivo é mostrar a viabilidade de uma perspectiva ecumênica planetária, que possa abarcar as diversas tradições religiosas em vista do bem-estar ecoumano, bem como defender teologicamente a plausibilidade de um pluralismo religioso de direito. Palavras-chave: Experiência; Deus; Religiões; Cristianismo; PluralismoNão constitui tarefa fácil desvendar o universo da experiência de Deus ou do sagrado nas diversas tradições religiosas. Embora convocado para falar sobre este tema tão amplo e complexo, gostaria de precisar de antemão o caminho que decidi traçar na abordagem desta questão. Em primeiro lugar, seria importante explicitar o lugar a partir do qual eu falarei sobre o tema. Minha reflexão se dá na perspectiva da teologia cristã das religiões e não de uma "teologia mundial" ou universal das religiões, proposta por certos autores, que transcenderia as identidades religiosas particulares ao mesmo tempo que as integraria. Não creio ser possível uma teologia mundial, pertinente a toda a humanidade e sem vinculação específica com uma comunidade religiosa particular. Em linha de sintonia com a reflexão de Jacques Dupuis, sublinharia que uma teologia que se pretendesse "supraconfessional" tornar-se-ia problemática na medida em que não há possibilidade de se fazer teologia a não ser a partir de uma fé específica. Diversas adesões de fé não podem convergir numa "teologia mundial" mas numa diversidade de teologias. Ao lado de uma teologia cristã das religiões há, assim, um legítimo lugar para outras teologias confessionais. O fato de ser confessional, não implica, necessariamente, uma restrição de horizontes. Isto só ocorre quando a reflexão se encerra numa perspectiva ensimesmada ou provincial. Não é esta a perspectiva que defendemos. O caminho que apontamos vai no sentido de uma teologia cristã aberta e sensível ao horizonte universal, que assume com otimismo uma "perspectiva global" disponível às várias contribuições e enriquecimentos advindos das outras tradições religiosas e que seja capaz de reconhecer e saudar o pluralismo religioso como um dado de princípio e não problemático. Esta teologia cristã do pluralismo religioso encontra na doutrina da trindade a chave hermenêutica fundamental para uma interpretação da experiência da "Realidade Absoluta" testemunhada pelas outras tradições religiosas. Trata-se de uma perspectiva teológica declaradamente cristã, e sua pertinência válida exclusivamente no âmbito cristão, não podendo ser imposta como objetividade válida para todas as outras tradições religiosas. Conforme a hermenêutica cristã, "onde quer que aconteça uma genuína experiência religiosa é seguramente o Deus revelado em Jesus Cristo que entra de maneira escondida e misteriosa na vida dos homens e das mulheres".Em segundo lugar, gostaria de precisar o campo religioso que será objeto desta reflexão. Com base na distinção estabelecida por R.C.Zaehner entre as religiões proféticas ou monoteístas e orientais e místicas, buscaremos apresentar de forma panorâmica e sucinta a forma como as tradições judaica, cristã, islâmica e budista expressam a realidade do mistério fundamental. Serão apontados em seguida os traços comuns e as tensões presentes entre o cristianismo e estas tradições religiosas. O objetivo é mostrar a viabilidade de uma perspectiva ecumênica planetária, que possa abarcar as diversas tradições religiosas em vista do bem estar eco-humano. 1 - A Acolhida do Pluralismo ReligiosoO reconhecimento teológico do valor do pluralismo religioso implica a assunção de uma nova perspectiva teológica, capaz de reconhecer o significado positivo das diversas religiões no plano da salvação. Neste limiar do terceiro milênio constata-se não apenas a vitalidade das grandes tradições religiosas, mas igualmente a consciência da particularidade histórica do cristianismo. Conforme dados recentes, cerca de dois terços da população mundial não conhecem Jesus Cristo; a população restante, constituída de cristãos, encontra-se dividida entre si. Os católicos constituem somente 18% da população mundial, sendo quase a metade na América Latina. Os muçulmanos já ultrapassaram os católicos em termos de presença mundial. Este quadro atual suscita maior realismo por parte das análises teológicas ou magisteriais ainda devedoras de certa mentalidade missionária de conquista, típicas do século anterior, segundo a qual a expansão geral do cristianismo e catolicismo seria uma questão de tempo. Nesse sentido, torna-se-ia difícil partilhar com João Paulo II a idéia de que estaremos todos reunidos no ano 2000 "sobre as margens deste grande rio: o Rio da Revelação, do Cristianismo e da Igreja, que corre através da humanidade a partir do que sucedeu em Nazaré e depois em Belém, há dois mil anos." A proposta de uma única religião mundial contraria a hipótese aqui defendida do pluralismo religioso de direito e, em termos concretos, não passa de uma ilusão deslocada da dinâmica religiosa atual. Carece hoje de plausibilidade efetiva os projetos teológicos ou pastorais que desconheçam o valor singular das outras tradições religiosas ou que se limitem a avaliá-las unicamente segundo os parâmetros do cristianismo. Há que "respeitar os encaminhamentos particulares que procedem do destino de cada ser humano, o qual, onde quer que se encontre, pode ser solicitado pela graça e pelo Espírito de Deus." O pluralismo religioso vem acolhido como um fator positivo em importantes trabalhos teológicos sobre o tema da relação do cristianismo com as outras religiões. Ganha a nível teológico uma plausibilidade "de direito", deixando de ser visto como um dado conjuntural passageiro, uma ameaça ou expressão da fragilidade missionária da Igreja . Trata-se de um fenômeno rico e fecundo, que haure sua razão de ser no próprio desígnio de Deus, favorecendo ainda a transparência de toda a "riqueza multiforme" de seu mistério. Enquanto fator positivo, o pluralismo religioso sinaliza a profunda generosidade com que Deus manifestou o seu mistério de modo diversificado à humanidade, bem como as "respostas pluriformes" dadas pelos seres humanos na diversidade de suas culturas à auto-revelação divina.O fundamento teológico primário para o reconhecimento deste pluralismo teológico de princípio é apontado na fecunda e "superabundante riqueza e variedade das auto-manifestações de Deus à humanidade." O Deus uno e trino, que é mistério de amor, não se encerra na solidão da incomunicabilidade, mas comunga o seu mistério plural ao gênero humano na história. Trata-se de uma comunicação transbordante e diversificada. As tradições religiosas da humanidade expressam estes "diversos modos" (Hb 1.1) com que Deus falou e se prodigalizou aos seres humanos, muitas vezes, em sua história. Nelas se faz presente, não simplesmente um "anseio" descaracterizado, impessoal de um Deus desconhecido, mas a presença real do Deus de amor e misericordioso em sua rica iniciativa de oferecimento salvífico. 2 - As Distintas Formas de Aproximação do Mistério FundamentalA teologia cristã das religiões busca hoje acentuar o significado das religiões como "caminhos de salvação". Esta nova perspectiva implica o reconhecimento da legitimidade de "diversos percursos religiosos", sempre direcionados para o horizonte da comunhão com o mistério fundamental. Cada um destes percursos guarda uma alteridade irredutível e irrevogável, que jamais será tematizado ou totalizado numa religião particular. Este caráter único e singular de cada religião não impede, mas exige uma dinâmica de abertura ao outro. O diálogo inter-religioso visa justamente apontar os traços de "complementaridade recíproca" que vigora entre as diversas tradições religiosas. Na experiência do encontro ocorre uma "troca e condivisão dos valores salvíficos" em favor de uma transformação e enriquecimento mútuos.Certos autores buscam fazer uma distinção entre as religiões monoteístas ou proféticas e as religiões orientais ou místicas. Pode-se admitir a relevância desta distinção desde que operada com cautela. Tem o mérito de sublinhar o fundamento comum das três religiões monoteístas de herança abraâmica, situadas como religiões proféticas e do livro, distinguindo-as das tradições orientais, que acentuam mais a dimensão da interioridade, da sabedoria e da gnose. Esta distinção, porém, não nos autoriza concluir em favor de uma separação rígida, que excluiria qualquer significado profético nas religiões orientais ou dimensão mística nas religiões proféticas.O caminho para se atingir a "Realidade Absoluta" nas religiões orientais é encontrado na interioridade. Trata-se de uma busca do Absoluto desconhecido na "gruta do coração" . Cultiva-se mais a mística do "entase": a descoberta do Absoluto no íntimo de si mesmo, ou a imersão na realidade de um Todo que nos inabita. A tradição oriental enfatiza mais o apofatismo teológico, excluindo, assim, a possibilidade de se alcançar o Absoluto mediante conceitos. A mediação para este encontro se dá através da experiência. Uma conhecida sentença zen afirma: "melhor ver a face do que ouvir o nome". Uma expressão desse apofatismo encontramos na experiência budista do sunyata (vazio). Este conceito vem empregado como expressão da inefabilidade e indizibilidade da realidade do Mistério Absoluto. Não indica relatividade ou vacuidade, mas a radical diversidade que separa este Mistério de todo e qualquer atributo possível de ser concretizado ou simbolizado. Na mística advaita hindu, a dinâmica religiosa vem concebida como uma experiência kenótica, de radical esvaziamento do sujeito humano e seu potenciamento para perceber a transparência do Absoluto transcendente (e inexprimível) no mundo dos fenômenos. Nesta experiência rompe-se toda dualidade (dvaita), dissolvendo-se tudo o que não é Absoluto. O sujeito, esvaziado de sua densidade ontológica, reencontra sua identidade com o Brahman. Em síntese, o cerne da espiritualidade nas tradições orientais relaciona-se com a busca da libertação mediante a purificação da consciência e a superação dos obstáculos que interditam a visão interior. Trata-se de uma piedade que se volta para o interior, aspirando a libertação dos desejos, a extinção da vida da vontade e dos afetos: um processo de auto-transformação que resulta em nova sabedoria; uma experiência de unidade adquirida mediante uma prática meditativa. O esforço aqui é pessoal. É o próprio sujeito que deve trilhar o seu caminho de aprofundamento espiritual, descobrindo por si mesmo o valor da realidade que o abarca, completa e liberta. Inexistem aqui profetas ou mediadores da palavra, salvadores ou messias que doam suas vidas por seus fiéis. A salvação é aqui fruto de um esforço pessoal. Nesta trajetória oriental, o ponto focal não está na "revelação pessoal de Deus ou no diálogo dual com o divino. O que chamamos Deus, como agente livre e definido, que sai ao encontro do humano, carece de importância central para a Índia. Mais que a existência de um Deus pessoal importa aqui a libertação do sofrimento, a descoberta da imortalidade ou salvação (moksa)." Nas religiões monoteístas ou proféticas o caminho de acesso à Realidade Absoluta é diverso. A ênfase recai agora no êxtase, ou seja, no encontro com o Deus "totalmente outro". No cristianismo e nas outras religiões proféticas, a experiência religiosa "toma a forma de um diálogo inter-pessoal de Deus - que assume a iniciativa manifestando-se - com o ser humano - que responde a tal iniciativa." Ao lado da compreensão de Deus como mistério inexprimível, a mística ocidental acentuará o conhecimento catafático (afirmativo), fazendo assim recurso ao conceito de analogia, que permite dizer algo sobre Deus mediante as vias da afirmação, da negação e da eminência. A mística profética será uma "mística da audição da Palavra". A salvação vem aqui entendida como encontro pessoal com um Deus transcendente que ao longo da história vai se manifestando através dos profetas, instaurando uma história de relações pessoais. Esta mística profética constitui a forma original da mística cristã: "uma mística que floresce no terreno da Palavra de Deus ouvida e obedecida (Rm 10.17-18) e que cresce até alcançar o caminho mais excelente (hyperbolén hodón, 1Cor 12.37), que dá realidade e consistência a todos os outros caminhos: o da fé, o da profecia, o do conhecimento dos mistérios, ou seja, o caminho da agápe (1Cor 13.2-3)." Para esclarecer ainda mais a peculiaridade tomada pelas tradições ocidental e oriental com respeito à aproximação do mistério fundamental podemos fazer menção à distinção traçada por Claude Geffré, com base nas análises de P.Ricouer e D.Tracy, entre "proclamação" e "manifestação". Enquanto que nas religiões proféticas Deus se revela mediante a proclamação de uma palavra, seja a Torah, Jesus Cristo ou o Corão; nas religiões orientais a ênfase recai na manifestação. A realidade divina não toca o ser humano a partir de fora, através de uma palavra ou lei exterior, mas apresenta-se como "o fundamento de seu próprio ser e de todo o cosmos."3 - Traços Comuns às Religiões Monoteístas ou ProféticasImportantes elementos comuns podem ser identificados nas três religiões proféticas caracterizadas pelo encontro entre Deus e o ser humano. Desde o início de suas trajetórias, o judaísmo, cristianismo e islamismo apresentam-se como religiões proféticas, distinguindo-se das religiões místicas indianas ou sapienciais chinesas. Para as religiões proféticas é Deus mesmo o sujeito da iniciativa decisiva com respeito ao evento salvífico. Este Deus entra em comunicação com o ser humano, que se coloca diante dele em atitude de escuta e confiança.Entre os traços partilhados pelas três religiões proféticas podemos assinalar a fé no único e mesmo Deus de Abraão. A origem comum das religiões monoteístas na fé de Abraão constitui a garantia da identidade pessoal do Deus que nelas vem adorado. A presença de uma "misteriosa complementaridade" entre estas três religiões abraâmicas foi sublinhada com vigor por Louis Massignon (1883-1962), um dos mais destacados orientalistas católicos. Jacques Dupuis menciona em particular a continuidade entre o Iahweh da religião hebraica e o Pai de Jesus Cristo celebrado no cristianismo, bem como a identidade pessoal que vigora entre o Deus hebraico-cristão e o Deus presente no Corão e no Islã. Isto não significa apagar as diferenças que permeiam o conceito de Deus presente nas escrituras destas três tradições. É o mesmo Deus que vem adorado, mas "segundo uma inteligência diferente de sua unidade"; diferença que nos convoca a uma "emulação recíproca" no sentido da busca da verdade transcendente do Deus sempre maior. A fé em Abraão constitui, portanto, uma referência normativa para as três religiões monoteístas e base para as propostas hoje em curso de uma "Ecumene abraâmica" que possa favorecer um retorno à autenticidade das tradições religiosas em questão e encontrar os caminhos de um novo ecumenismo, capaz de fomentar a paz e a compreensão, bem como transformar o espírito de rivalidade em entendimento recíproco no respeito às fidelidades singulares.Outros traços comuns podem ser igualmente sublinhados: uma visão da história direcionada a um fim, com início na dinâmica criacional de Deus e orientada para um horizonte querido por Deus; a presença de figuras proféticas como arautos da Palavra e da vontade de Deus; a presença da Revelação de Deus consignada num livro escrito, considerado como normativo e critério de autenticidade; um comum ethos fundamental, haurido da vontade do único Deus e expresso no decálogo hebraico-cristão (Ex 20.1-21) e no Código islâmico dos deveres (Sura 17.22-38). Uma convergência ainda mais radical ocorre a nível da fé vivida e expressa pelos místicos das respectivas tradições. Tanto na mística cristã, na tradição da kabala judaica e no sufismo islâmico, encontramos místicos de grande profundidade e que testemunham valores comuns de comunhão, manifestando "uma análoga e incansável busca de união com o Deus único para o qual tende o inteiro gênero humano". A atual sensibilidade em favor de um ecumenismo planetário tem buscado acentuar os traços comuns que unem judeus e cristãos. Com o Vaticano II, a Igreja católica manifesta uma nova sensibilidade dialogal, rompendo com antigos preconceitos que reforçavam um anti-judaísmo problemático. Com a Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs ( Nostra Aetate - NA), recorda-se o vínculo de união entre o povo do Novo Testamento com a linhagem de Abraão e o "patrimônio" comum que vincula as duas tradições religiosas (NA 4). A partir desta nova sensibilidade dialogal, novos estudos foram sendo desenvolvidos visando sublinhar estes elementos comuns. No campo cristão podem-se mencionar os aprofundamentos realizados em torno de uma teologia cristã do judaísmo, sintonizada com a explicitação da base judaica do cristianismo. Um trabalho importante realizado nesta direção foi apresentado por Hans Küng em seu livro sobre o judaísmo. Nesta obra, Hans Küng busca mostrar que o judaísmo, antes de ser um "Antigo Testamento" ultrapassado, constitui uma "realidade autônoma e dotada de estupefaciente continuidade, vitalidade e dinamismo." Este autor sublinha que o cristianismo não pode desconhecer sua base judaica: Jesus e Maria eram judeus , bem como seus discípulos e a primeira comunidade dos cristãos. Jesus cresceu e se formou em profundo contato com as Escrituras, orações, cultos e festas judaicos. Desta estreita ligação permanecem traços que são comuns: a fé no Deus único, de Abraão, Isaac e Jacó; as Sagradas Escrituras como fonte da fé comum (o Primeiro Testamento); a familiaridade partilhada na experiência litúrgica (salmos, orações e leituras); o ethos comum em favor da justiça, codificado nos dez mandamentos; a fé na continuação da história do povo de Deus, marcada pela esperança comum da comunhão plena em Deus.Assim como a abertura aos judeus, o Vaticano II sublinhou a sintonia do cristianismo com o islã. As duas tradições vinculam-se pela fé num único Deus criador. Este dato foi bem acentuado na Constituição sobre a Igreja ( Lumen Gentium - LG) : "Adoram conosco um Deus único e misericordioso, que há de julgar os homens no último dia" (LG 16) . O orientalista Louis Massignon já em 1947 sublinhara este dado: "O islã é a religião da fé, e não a religião de uma fé natural no Deus dos filósofos, mas a fé no Deus de Abraão, de Isaac e de Ismael , fé em nosso Deus".As duas tradições podem ser definidas como "religiões do livro", apresentando igualmente um acontecimento inaugurador, um texto original e uma comunidade interpretativa. As escrituras, porém, não conseguem traduzir de forma adequada o mistério inacessível da Palavra de Deus. Tanto na revelação cristã como na corânica, permanece resguardada a "distância" que interdita a objetivação perfeita desta Palavra. Analogias podem ser estabelecidas entre a Bíblia e o Corão, sobretudo com respeito à mensagem bíblica do Antigo Testamento, ou mesmo, em certos casos, do Novo Testamento. Estudiosos recentes têm buscado mostrar as afinidades e analogias entre a imagem corânica de Jesus e a cristologia judaico-cristã: a cristologia primitiva de Jesús, Servidor de Deus, presente na Igreja judaico-cristã, e que foi sendo progressivamente substituída pelas formulações gregas da Igreja helenista, que prevaleceram nas decisões dogmáticas de Éfeso e Calcedônia. 3.1 - A Experiência de Deus no JudaísmoA profissão de fé no Deus uno e único, que estabeleceu uma aliança permanente com os judeus, reconhecidos como povo de Deus, constitui "instância central do judaísmo." Foi em defesa do monoteísmo estrito que a tradição judaica reagiu permanentemente aos dogmas cristãos da Trindade e da Encarnação. A afirmação da unicidade de Deus vem expressa no início de uma das orações mais significativas da religião judaica, a Xemá: "Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh!" (Dt 6.4). As reações de estudiosos rabínicos contra as idéias metafísicas que introduziam divisões em Deus remontam aos século II e III d.C. A partir da Idade Média, e nos séculos sucessivos, o dogma trinitário vem afrontado com maior rigor. Atribuía-se ao mesmo uma atenuação do conceito de Deus uno e único de Israel. Aplica-se ao cristianismo o conceito religioso-jurídico de shittuf, ou seja, "associação ou coletivização". Para os judeus, o mistério da trindade significava uma "deformação ou enfraquecimento do monoteísmo puro." O conceito shittuf, atribuído aos cristãos, não se identificava, porém, com a noção de idolatria ou politeísmo. Considerava-se, antes, o cristianismo como um "monoteísmo atenuado e diluído". Em sua reflexão sobre a teologia cristã do pluralismo religioso, Jacques Dupuis recorda que apesar do mistério da trindade ter sido revelado em Jesus Cristo, conexões com este mesmo mistério encontraríamos já no judaísmo. Para este autor, o Antigo Testamento não excluiria a presença de uma economia universal, mediante a ação da Palavra de Deus (dabar), da Sabedoria de Deus (hokmah) e do Espírito de Deus (rûah). A Palavra de Deus diz respeito à lei divina que interpreta os significados das intervenções históricas de Iahweh (Ex 20.1-17 e Dt 5.6-22); A Sabedoria de Deus constitui um "reflexo da luz eterna" e "eflúvio do poder de Deus" (Sb 7.25-26). Criada por Iahweh "antes de seus feitos mais antigos" (Pr 8.22), é esta Sabedoria que aponta o caminho da vida, da inteligência e do favor de Iahweh. O Espírito de Deus, por sua vez, representa a vitalidade, energia e potência divina em ação desde o ato criador. Trata-se do Espírito que dá vida ao caos, renova a face da terra e ativa os seres humanos com sua energia criadora. A Palavra, a Sabedoria e o Espírito não representam pessoas distintas de Iahweh, mas atributos dinâmicos de Deus. Esta tríade revela, segundo Dupuis, as relações de Deus com a humanidade no processo da história da salvação e apresentam de forma antecipada "as principais categorias que a auto-revelação de Deus em Jesus Cristo e a sua elaboração no contexto da tradição cristã iriam colocar posteriormente em ação." A afirmação de Deus defendida pelos judeus não pode, porém, ser identificada com um monoteísmo transcendente rigoroso. Não há como sustentar esta hipótese com base na Bíblia vetero ou neo-testamentária, nem na literatura talmúdica ou judaico-esotérica. O que transparece em toda a tradição judaica é a ideia do Deus da aliança, de um Deus terno e compassivo, que se insere nas situações de seu povo e condivide com ele a sua trajetória. O Deus judaico é animado de um "pathos atual", que deixa ser visitado em sua intimidade pelos profetas bíblicos e outros destinatários de seu amor. Trata-se de um Deus que ama os seres humanos, que sofre com os seres humanos, que precisa dos seres humanos e se revela com muitos "rostos".No judaísmo percebemos a presença de uma dialética que articula os conceitos de Deus como infinito e transcendente e, ao mesmo tempo, profundamente próximo e vizinho ao ser humano. O livro do Êxodo aponta a distância que separa Deus do ser humano: "Não poderás ver a minha face..." (Ex 33. 20). Já o livro de Isaías descreve de forma muito feliz a idéia da proximidade: "Eu habito em lugar alto e santo, mas estou junto ao abatido e humilde..." (Is 57.15). O Deus de Israel está sempre muito próximo de seu povo, como o Deus clemente e misericordioso: "Qual a grande nação cujos deuses lhe estejam tão próximos como Iahweh nosso Deus, todas as vezes que o invocamos ?" (Dt 4.7). Esta proximidade e presença de Deus junto aos seres humanos foi descrita de forma particular na teologia da shekinah, presente no judaísmo rabínico, que sublinha a inabitação, enquanto modo particular de existir e agir de Deus. O Deus da aliança não se faz unicamente presente na tenda da aliança ou no templo, mas acompanha sempre a comunidade de seu povo, mesmo no exílio: é o Deus Emanuel, o Deus-conosco. A afirmação da proximidade de Deus junto aos seres humanos não significa, entretanto, uma pura e simples identificação. O traço de distinção vem sempre acentuado com vigor pelos judeus. Daí a grande dificuldade em aceitar, nos meios judaicos, a idéia de que numa certa época da história humana Deus tenha se encarnado num ser humano. A doutrina da encarnação vem igualmente identificada pelos judeus como "mistura", "união" ou "associação" indevida de algo criado com Deus (shittuf). A tradição judaica manterá sempre acesa a reserva contra a perspectiva cristã que situa num mesmo plano ontológico Jesus e o Pai, o que ocorreu sobretudo após sua difusão no universo helenista.A divergência entre judeus e cristãos, como bem acentuou David Flusser, não situa-se no âmbito das doutrinas de Jesus, mas no âmbito da cristologia. Importantes autores da tradição judaica reconhecem em Jesus um "judeu exemplar". O filósofo Martin Buber define Jesus como o "irmão maior", portador de uma mensagem autenticamente judaica. Igualmente o seu discípulo, Schalom Bem Chorin, retoma esta idéia de Jesus como judeu exemplar, reconhecendo nele alguém animado por uma fé incondicionada em Deus e radicalmente fiel à sua vontade. No exemplo de Jesus identifica o elo de união entre judeus e cristãos. No campo católico, ocorre similar reconhecimento. Como afirmado no documento da Conferência Episcopal Alemã, "quem encontra Jesus Cristo, encontra o judaísmo." Os autores da tradição judaica reconhecem em Jesus uma personalidade exemplar, mas nada além de um homem exemplar. Na expressão de Bem Chorin, "a fé de Jesus nos une, mas a fé em Jesus nos divide". A dificuldade maior está em aceitar Jesus Cristo como a segunda pessoa da trindade divina. Para os judeus isto é inaceitável, e justamente pelo fato de Jesus ter sido um judeu. Segundo o estudioso judeu, Pinchas Lapide, os caminhos de diálogo entre judeus e cristãos devem tomar como base não a elevada cristologia dos concílios (a partir do alto), mas a trajetória histórica de Jesus (a partir de baixo). Partindo do olhar com que os discípulos de Jesus puderam identificá-lo e perceber o conteúdo de sua mensagem na história, é que se abrem novas pistas para o diálogo com os judeus que, igualmente, podem levantar a questão: "quem foi propriamente ele ?"3.2 - A Experiência de Deus no CristianismoO cristianismo encontra-se fundado numa compreensão de um Deus que é comunhão, de um Deus que integra as diferenças: de um Deus que é Trindade e não solidão. Ele suscita a diferença, não por estar marcado pela insuficiência, mas justamente por ser comunhão. Por ocasião do Encontro de Puebla, João Paulo II afirmara: "Já se disse de forma bela e profunda, que nosso Deus em seu mistério mais íntimo não é uma solidão, mas uma família, pois leva em si mesmo a paternidade, a filiação e a essência da família que é o amor" . A concepção cristã de Deus descarta, por si mesma, toda perspectiva monolítica e fechada de Deus: Existe, pois, uma "dimensão 'plural' em Deus" . Rico em sua unidade de relações, o Deus cristão não é nem o "Um" do monoteísmo estrito (de tipo plotiniano ), nem o "Vários" do politeísmo. Trata-se de um Deus que "integra o plural. Um monoteísmo que integra, ousaria dizer, a inquietude, o sussurro, a riqueza do plural." Como bem sabemos, mediante a perspectiva trinitária, o plural, o múltiplo não podem, absolutamente, ser identificados como algo negativo. Esta identificação foi fruto da tradição grega e filosófica que, com poucas exceções, ponderou unicamente a glória e a nobreza do "Um" encerrado em si mesmo, como o de Plotino. O monoteísmo presente no cristianismo revela-nos que o "Um" é rico de uma multiplicidade interna. A riqueza da composição de vários em um foi observada por muitos pensadores, teólogos e poetas. Pascal dizia: "Toda a verdade é feita de verdades contrárias que parecem excluí-la e que subsistem numa ordem admirável." Este monoteísmo original e aberto foi fruto da "audácia" das primeiras gerações cristãs, que souberam "transgredir" a compreensão do monoteísmo comum. Deus não se encontra na solidão, Deus não é solidão: "Non in solitudine Deus", diz Ilario de Poitiers. Já Orígenes, em sua homilia sobre Ezequiel, rompia o bloqueio do conceito filosófico grego do Deus impassível, ao sublinhar que o Deus cristão é alguém que tem piedade, que se compadece, que experimenta uma paixão de caridade. Salienta que "nem mesmo o Pai é impassível. Ao se colocar diante dele em oração, ele manifesta piedade e se compadece, experimenta uma paixão de caridade, colocando-se numa condição incompatível com a grandeza de sua natureza." Essa "kenosis" de Deus, esse "descensus": esse vir ao encontro do humano era algo de inimaginável para aquele tempo e em viva contradição com o paganismo. Como sublinha Gesché, Deus não seria a rigor monoteísta. É, de fato, a partir do "três" que aprendemos o significado do "um".O cristianismo não fecha, assim, caminho a uma concepção mais flexível da unidade. Neste sentido, introduz em sua própria linguagem uma abertura que felizmente impossibilita qualquer raciocínio excludente. Assim, podemos nos aproximar da intimidade de Deus, um Deus que integra a diferença e que convoca o cristianismo a dar direito à diferença. Trata-se, igualmente, de um Deus que é mistério que sempre advém. Um Deus que é mistério do mundo, mas cuja visibilidade é provisória: se dá nas condições do mundo. "O mundo não pode tornar manifesto o Deus eterno de modo eterno, divino." O ser de Deus guarda surpresas inauditas para cada um de nós. Sua substância mais íntima constitui "evento do vir-a-ser": é o Deus que era, que é e que vem.O Deus da Bíblia é um Deus que "bendiz o múltiplo". Já no livro do Gênesis a multiplicidade das famílias da terra e a variedade de suas línguas vêm acolhidas e celebradas positivamente (Gn 10.31-32). E todas as nações da terra benditas (Gn 12.3). O episódio da torre da babel, no capítulo 11 do mesmo livro, narra a condenação divina da ambição humana idolátrica de colocar no lugar de Deus uma humanidade monolítica. A pluralidade vem, assim, acolhida por Deus. No Novo Testamento, o episódio de Pentecostes constitui a real consagração do plural e de sua cidadania. A efusão do Espírito indica que "a pluralidade das línguas e das culturas é necessária para traduzir a riqueza multiforme do mistério de Deus." O Deus de Jesus é alguém que comunga com o ser humano: um Deus "de ternura e de piedade, lento para a cólera, rico em amor e fidelidade" (Ex 34.6). Como bem sublinhou W.Pannenberg, o Deus de Jesus não se difere do Deus testemunhado no Antigo Testamento e reverenciado na fé judaica: o mesmo Deus de Abraão, Isaac e Jacó (Mt 12.26s). É um Deus de misericórdia (rahamim ) e de bondade (hanum), rico em graça (hesed) e fidelidade ('emet). "Estas são imagens tomadas das emoções e atitudes que mais intimamente comprometem a vida pessoal dos seres humanos, as que serão aplicadas a Javé com particular realismo pelos profetas." Como recorda Ronaldo Muñoz, 'rahum' é a ternura, o carinho e a compaixão que sente a mãe pelo seu filho pequeno; 'hanun', a benevolência ou favor dedicado por alguém para com os seus prediletos; 'hesed', o amor de solidariedade e a confiança mútua dos que estão intimamente ligados. O Deus de Jesus não é o Deus da ataraxia estóica, da impassibilidade platônica, da imobilidade aristotélica, mas um Deus que cuida do ser humano, alguém atento e preocupado. E assim se manifesta desde a primeira página da Bíblia: "Não é bom que o homem esteja só" (Gn 2.18), até a sua última página, com o livro do Apocalipse: "Eis que eu venho em breve" (Ap 22.7). Um Deus que "cuida de cada cabelo de nossa cabeça" (cf. Lc 21.18), que faz o sol nascer indistintamente para todos e a chuva jorrar sobre justos e injustos (Mt 5.45). Os Evangelhos testemunham de forma muito clara como Jesus retoma esta dinâmica de alteridade, suscitada pela sua profunda relação com o Pai. Trata-se de alguém que se afirmou e cresceu como um "judeu fiel" mas ao mesmo tempo crítico diante das rigorosas observâncias religiosas mantidas pelos judeus como expressão da vontade de Deus. Esta relação de alteridade foi descrita de forma primorosa pelo biblista Carlos Mesters em trabalhos recentes. Ao conviver 30 anos no interior da Galiléia, Jesus se dá conta da dura realidade da exclusão sofrida por segmentos simples da população: os leprosos, os doentes, os publicanos, as mulheres, os pagãos, os pobres e outros. Excluídos ou renegados em nome das normas vigentes da cultura e da religião. Um dos traços peculiares da prática de Jesus é a acolhida dada aos excluídos: sua ternura e o amor receptivo para com os pobres e os excluídos de seu tempo, sobretudo para com os samaritanos. Para os judeus daquele tempo, os samaritanos eram postos, do ponto de vista cultual e ritual , "em pé de igualdade com os pagãos." Como sublinha Mesters, o povo dos terreiros de candomblé é hoje, para muitos de nós católicos, o que os samaritanos eram para os judeus no tempo de Jesus. Aos samaritanos Jesus dedica de modo preferencial a sua ternura e amor acolhedor. Jesus não condena a aproximação com o diferente. Ele faz o contrário. Na parábola do bom samaritano coloca um samaritano como exemplo para o sacerdote e o levita (Lc 10.29-37). Em bela passagem de sua clássica obra sobre a teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez sublinha que o samaritano acerca-se do ferido que está à beira do caminho, não por um frio cumprimento de obrigação religiosa, mas porque 'se lhe removem as entranhas', porque seu amor por esse homem se fez carne nele." Jesus não evita o território "impuro" dos samaritanos, como o faziam os judeus observantes da época. Ele entra nas cidades e nos povoados da Samaria, mesmo sem ser bem recebido (Lc 9.52-53). No episódio dos dez leprosos, descrito por Lucas, será justamente o samaritano aquele que o reconhecerá e o agradecerá pela graça recebida (Lc 17.15-16). "Jesus puxa conversa com a mulher samaritana, o que era proibido pelos costumes da época (Jo 4.7) . E conversando com ela, não a condenou. Pelo contrário, foi a esta mulher da Samaria que ele, por primeiro, se revelou como o Messias (Jo 4.25-26). Na conversa com a samaritana, Jesus colocou os pingos nos "is" (Jo 4.21-22), mas não disse que ela devia abandonar a sua religião."Jesus não fazia acepção de pessoas: convivia e partilhava a comida com pecadores e publicanos (Mc 2.15-16 e Lc 5.30). Escandaliza os poderosos de então ao afirmar que os publicanos e as prostitutas teriam precedência no Reino de Deus (Mt 21.31). Os excluídos tinham um lugar destacado em seu coração. Não reage com repulsa, como o fariseu, ao gesto acolhedor da prostituta que derrama o frasco de alabastro com perfume em seus pés, enxugando-os com os cabelos. Ao contrário, reconhece neste gesto a demonstração de um grande amor (Lc 7.36-47). Jesus tocava em pessoas impuras, abraçava as crianças, chamava as mulheres para seguí-lo. Jesus é capaz de acolher a mulher cananéia, que era de outra raça e religião; o oficial romano, pagão e dizer: "Nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé" (Lc 7.9); de aceitar o desconhecido que expulsa demônios em nome de Jesus, mesmo não pertencendo à sua comunidade (Mc 9.38-40); de reconhecer o valor e fé em todos aqueles que se comprometem na solidariedade para com os necessitados, independentemente da religião professada (Mt 25.31-46). A misericórdia era a "chave de sua ética" e, para ele, o canal privilegiado de acesso ao Reino da Vida.A missão que Jesus confere a seus discípulos e discípulas era uma missão de paz. Ao contrário de outros missionários descritos no Evangelho (Mt 23.15), os seguidores de Jesus não podiam levar nada em sua missão: nem ouro, nem prata, nem cobre, nem duas túnicas ou sandálias. Deviam ser portadores de paz: "ao entrar na casa, saudai-a". E que a paz desça sobre ela (Mt 10.9-13). Nem sequer comida deviam levar. Jesus recomendou-lhes que "nada levassem para o caminho", nem mesmo o pão (Mc 6.8), e que partilhassem a comida do povo. O missionário devia confiar na hospitalidade do povo e aceitar a comunhão de mesa: "comei o que vos servirem" (Lc 10.8). Em sua missão, deviam cuidar dos excluídos, doentes e estigmatizados. Somente ao cumprir as exigência de afirmação de vida é que podiam, então, saudar e se alegrar com a chegada do Reino (Lc 10.1-12; 9.1-6; Mc 6.7-13; Mt 10.6-16). O objetivo decisivo da missão não era, em primeiro lugar, "anunciar uma nova doutrina, mas sim testemunhar uma nova maneira de viver e de conviver. Deviam recriar e reforçar a comunidade local, o clã, a casa, para que esta pudesse ser novamente uma expressão do Reino, uma expressão do amor de Deus como Pai que faz de todos irmãos e irmãs." A missão dos discípulos e discípulas de Jesus revela que o Reino começa a acontecer quando as pessoas, tocadas pela vida e mensagem de Jesus, passam a acolher e partilhar as riquezas e valores que possuem; quando assumem em toda a sua radicalidade a dinâmica da filiação e da fraternidade: criaturas e filhos de Deus e irmãos e irmãs uns dos outros. O anúncio da Boa Nova de Jesus consiste justamente em tirar o véu e revelar que o Reino de Deus está em nosso meio (Lc 17.21) e acontece "onde quer que Deus esteja reinando mediante sua graça, seu amor, vencendo o pecado e ajudando os homens a crescer" 3.3 - A Experiência de Deus no Islã Para a tradição do Islã, a grande teofania está presente num livro: o Corão. A Palavra ocupa nesta tradição religiosa uma importância fundamental. Trata-se de um "ditado sobrenatural, registrado por um profeta inspirado." Para os muçulmanos, o Corão traduz a Revelação mesma de Deus descida sob a forma de Livro. Para a espiritualidade muçulmana, é o Corão e não o profeta Maomé que ocupa o lugar fenomenologicamente análogo ao de Jesus Cristo para os cristão. Nesse sentido, ele pode ser corretamente definido como o "Verbo enlivrado." Enquanto Palavra de Deus (Kalam Allah), o Corão nos abre pistas importantes para a compreensão de Deus na tradição islâmica. A tradição islâmica não cessa de recordar os 99 nomes de Deus presentes no Corão. Para a exegese muçulmana, estes nomes representam símbolos ou qualificativos da realidade divina, jamais alcançada pelos limites humanos. Para Deus são reservados os "mais belos nomes" (7.180; 17.110). Com base na descrição corânica de Deus pode-se acentuar, em primeiro lugar, a afirmação decisiva da transcendência de Deus e a total dependência de todas as criaturas para com Ele. A própria raiz da palavra islã refere-se à "submissão" a Deus, sendo o muçulmano (muslin) aquele que se submete a Deus. O fato de ser transcendente, grandioso e altíssmo (13.9), para além do que é transitório e efêmero, não significa que esteja distante e insensível aos caminhos do humano. Embora distinto do ser humano, Deus dele se aproxima com grande intimidade. Deus é portador das "chaves do incognoscível"(6.59), mas também Aquele do qual "estamos mais perto do que a [sua] artéria jugular (50.16). O Deus de que fala o Corão é o criador de todas as coisas (13.16; 6.102), exercendo sobre as mesmas uma soberania absoluta. É também o Deus único e uno professado com grande devoção pelos muçulmanos na profissão de fé (shahadah): "Não há outro Deus senão Deus" (lâ ilâha illâ Allâh). Declaração explícita desta unidade de Deus encontraremos na Sura 112: "Dize: Ele é o Deus único; Deus é eterno. Jamais gerou ou foi gerado e ninguém é comparável a Ele". Esta surata, de grande importância na liturgia, e uma das mais apreciadas pelos muçulmanos, confirma a profissão de fé monoteista do islã. Com ela reafirma-se a polêmica tradicional entre cristãos e muçulmanos a propósito do dogma da trindade. Esta profissão de fé muçulmana vem confirmar a fé inicial de Israel: "Tu adorarás um só Deus". Na descrição corânica, Deus emerge igualmente como onipotente e misericordioso. Com o qualificativo do Deus onipotente busca-se enfatizar o dado fundamental da adoração e submissão do ser humano a Deus. Por sua vez, o qualificativo da misericórdia vem confirmar a extrema bondade de Deus. Em linha de sintonia com o Deus bíblico (Ex 34.6-7), o Deus do Corão é animado por uma misericórdia que "abraça todas as coisas" (7.156). O qualificativo al-rahman (misericordioso) aparece inúmeras vezes no Corão, como um dos importantes nomes atribuídos a Deus.Uma série de outros nomes são atribuídos a Deus no Corão, alguns com posição de maior destaque, outros com menor número de menções no Livro. Todos eles, porém, conhecidos e recitados de memória nas orações dos fiéis. Alguns deles vem agrupados em suratas importantes (57.1 e 59.22-24), outros aparecem na chamada de cada surata (clemente e misericordioso). Todos eles relacionam-se, em síntese, com os seguintes temas: "unicidade de Deus, santidade e transcendência, criação e soberania, justiça e retribuição, misericórdia e mansidão, vida e eternidade." Há na reflexão muçulmana a presença de uma "teologia negativa" que mantém sempre inacessível o mistério de Deus. Esta teologia estará presente sobretudo na tradição mística sufi. O grande mestre Al-Ghazali sublinhou com ênfase a impossibilidade do conhecimento de Deus por parte dos iniciados. A única certeza que podem estar animados, é a certeza da incapacidade de tal conhecimento, pois "conhecer realmente Deus é impossível a quem quer que esteja fora de Deus mesmo." Aos 99 "belos nomes de Deus", a especulação dos místicos acrescentou um centésimo nome: al-ism. Este seria o "nome máximo", desconhecido e impronunciável, mas portador de enormes virtudes. Trata-se de um nome só acessível aos místicos mais iluminados. Quando evocamos anteriormente os traços que unem o cristianismo e o islã, mencionamos o dado da fé no único Deus criador. Não é incorreto afirmar esta comunhão de fé na transcendência pessoal do Deus único. É o mesmo Deus que vem adorado, mas segundo uma "inteligência diferente de sua unidade". A tradição muçulmana tem grande dificuldade de aceitar um monoteísmo que reconcilie a imutabilidade inalterável de Deus com a sua encarnação em Jesus Cristo; bem como a unicidade de Deus com a trindade de pessoas. Esta é a grande questão e o ponto nodal de diferenciação das duas tradições. A tradição islâmica reconhece valores excepcionais na pessoa de Jesus ('Îsâ). Este vem reconhecido no Corão como um sinal e exemplo para os homens (19.21 e 43.59) um profeta e enviado, perfeito "servidor de Deus" (19.30). Sua descrição ganha no Corão prerrogativas excepcionais: o caráter singular de seu nascimento da virgem (19.9), o reconhecimento de sua vizinhança e proximidade com Deus, o seu traço messiânico, os seus prodígios e milagres. Este reconhecimento não leva, porém, a uma afirmação da sua divindade. O Corão é claro ao afirmar que Deus não teve nem cônjuge nem filho (72.3); que não gerou nem foi gerado (112.3); e todos aqueles que afirmam a divindade de Jesus são identificados como "descrentes" (5.17); bem como os que dizem que "Deus é o terceiro dos três" (5.73).A resistência à doutrina da trindade cristã é menor no circuito da mística sufi e no esoterismo islâmico. No século XIX, o poeta sufi persa Hatif Isfahani reconheceu no cristianismo a afirmação da Unidade Divina, mesmo com a presença da doutrina trinitária, desde que a trindade pudesse ser reconhecida em seu sentido metafísico. Em poema de rara beleza ele descreve a resposta de uma "encantadora de coração cristã" às indagações críticas à sua crença na trindade: "Se tu sabes o Segredo da Divina Unidade, não jogues sobre nós o estigma da infidelidade. A beleza eterna lançou um raio de seu refulgente semblante em três espelhos. A seda não se converte em três coisas se tu as chamas parniyan, harir e parandn." Em semelhante linha de reflexão, o estudioso Frithjof Schuon sublinha que a restrição feita à Trindade no Corão é "extrínseca e condicional". Argumenta que a afirmação da Trindade não significa necessariamente a ruptura com a Unidade: "O conceito de uma Trindade enquanto 'desenvolvimento' (tajalli) da Unidade ou do Absoluto em nada se opõe à doutrina unitária do Islão. Aquilo que se lhe opõe é tão-só a atribuição do caráter absoluto à Trindade pura e simples...". Como estamos observando, a doutrina da Trindade permanece uma pedra de tropeço seja para os judeus como para os muçulmanos, embora devamos reconhecer os esforços presentes na busca de um entendimento mútuo. No campo da teologia cristã, podemos mencionar o trabalho realizado por importantes teólogos no sentido de uma formulação da doutrina trinitária didaticamente assimilável fora da esfera cristã. Em artigo sobre a unicidade e trindade de Deus no diálogo com o Islã, Karl Rahner sugere uma formulação sobre a Trindade assimilável nos espaços extra-cristãos. Rahner acreditava num diálogo verdadeiro entre teólogos cristãos e islamitas em base à comum confissão no Deus uno e único. Sem desrespeitar as "regras linguísticas" da doutrina trinitária clássica, este autor afirma que "um discurso das 'três pessoas' e da mesma 'Trindade' (não encontrada no Novo Testamento) não é incondicionalmente necessário para expressar aquilo que o cristianismo entende apropriadamente dizer com tal doutrina trinitária." Toda esta complexa discussão suscita um duplo desafio, para cristãos e muçulmanos. De um lado, a importância dos cristãos estarem mais atentos ao significado e valor do monoteísmo, bem como da transcendência inviolável de Deus; por outro, a necessária abertura dos muçulmanos no sentido de uma maior "dinamização" da unicidade de Deus, rompendo com o risco de uma compreensão da divindade como perfeição auto-suficiente, de forma a poder reconhecer o valor de uma identidade permeável à diferença. Esta mútua interpelação abrirá, certamente, novos caminhos para o diálogo. 4 - A Questão de Deus nas Religiões Místicas do Oriente Destacar a questão de Deus ou da Realidade Absoluta nas religiões místicas do Oriente é uma tarefa extremamente complexa e intrincada, sobretudo em razão da diversidade de experiências existentes, das visões de mundo na qual se baseiam e das nuances distintas que apresentam. Mas não há como seguir tratando a questão de Deus ou de Jesus Cristo hoje em dia desconhecendo a importância e o valor das outras tradições religiosas. A concepção de Deus presente no Ocidente não esgota a complexidade que envolve a reflexão sobre o tema. "As experiências, formas, modelações e idéias religiosas da humanidade são infinitamente ricas, e infinitamente complexa é sua problemática." O teólogo cristão é convidado a buscar uma aproximação a tais experiências, com espírito desarmado, e tentar captar a importante questão da relação que vigora entre a Realidade Absoluta afirmada por tais tradições e o Deus das religiões monoteístas. O desafio teológico de compreensão desta importante relação vem sendo objeto de reflexão de muitos autores hoje em dia. Gostaria de sublinhar, de modo especial, o grandioso esforço realizado por Jacques Dupuis em sua obra sobre a teologia cristã do pluralismo religioso. Este autor busca enfrentar num dos capítulos de seu livro a questão do mistério absoluto de Deus, enquanto horizonte transcendental da experiência religiosa humana que ocorre nas diversas tradições religiosas. Sustenta em sua reflexão ser "legítimo encontrar nas tradições místicas do Oriente aproximações e prefigurações do mistério Último do Ser assim como vem revelado e manifestado de forma decisiva, embora ainda incompleta em Jesus Cristo." Em razão da complexidade que envolve o tema das religiões místicas do Oriente, bem como da delimitação da reflexão proposta neste artigo, nos restringiremos a apontar alguns dos traços que caracterizam a experiência da Realidade Absoluta no budismo e os traços de sua relação com o cristianismo. 4.1 - A Experiência da Realidade Absoluta no Budismo A grande dificuldade que interdita o acesso do ocidental à experiência singular do budismo diz respeito à questão da linguagem. Deve-se sublinhar que alguns termos que são utilizados nas duas tradições religiosas ganham um conteúdo diferenciado: é o caso de "ateísmo-teísmo", "religião-fé", "materialismo-espiritualismo" etc. Termos utilizados pelos cristãos para designarem a realidade de Deus são motivo de escândalo para os budistas e outros orientais, como é caso dos aplicativos: "pessoa" , "espírito", "criador". Por sua vez, termos empregados na tradição budista permanecem misteriosos ou impenetráveis para a sensibilidade ocidental: "sunyata" (vazio) "anatta" (não-eu) e outros. Estes últimos termos, em particular, adquirem um sentido radicalmente distinto no Ocidente e Oriente. Na tradição original, não estão marcados pelo acento negativo atribuído aos mesmos no Ocidente. Impõe-se, assim, o importante trabalho hermenêutico capaz de favorecer a real compreensão dos eixos essenciais da religião que se busca compreender e dialogar. O estudo comparado das religiões tem mostrado de forma precisa como cada linguagem "é reveladora de um sentido 'contextualizado' e de uma experiência determinada. Julgar a linguagem dos outros no interior da própria tradição, constitui uma armadilha muito perigosa para o trabalho de compreensão da alteridade." O caminho mais indicado para o acesso do ocidental à compreensão da Realidade Absoluta no budismo é o da teologia negativa. A teologia ocidental conheceu igualmente este traço da afirmação da transcendência pela sua negação, com a qual os orientais estão mais habituados. No Ocidente, as raízes da teologia negativa (ou apofática) encontram-se no neo-platonismo. Dentre os seus representantes podemos assinalar: Pseudo-Dionisio, Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa e Tomás de Aquino. O importante estudioso do budismo, Heinrich Dumoulin, ressaltou em sua reflexão sobre o tema a dimensão transcendente das experiências religiosas no budismo, fato reconhecido por budistas e não budistas. O autor assinala, todavia, que a religião budista não visa diretamente a Realidade transcendente. Isto significa que "nenhuma concepção religiosa particular do Budismo pode encontrar equivalência perfeita com a Realidade absoluta indicada pelo cristianismo com o nome de Deus." Seria um equívoco atribuir simplesmente ao budismo o qualificativo de "ateísmo". Os estudiosos atuais são mais cuidadosos quando refletem sobre o tema, evitando os enquadramentos peremptórios. É verdade que o conceito de um Deus pessoal e criador não existe no budismo. A dificuldade para os budistas está em conceber o Absoluto como um ser pessoal, pois o conceito de pessoa significa para eles individualidade, apego a si etc. Não há, porém, dificuldade de se aceitar no budismo o conceito impessoal ou supra-pessoal de divindade. A forma como os budistas expressam o Absoluto é distinta dos ocidentais; fazem recurso a termos como "vazio", "nada" ("sunyata"), "extinção" ("nirvana"). O significado de "vazio" ou "nada" não indica para eles relatividade ou nihilismo, mas sobretudo a "completa diversidade de tudo o que existe ou de tudo o que se refere à consciência lógica." De forma semelhante, a compreensão de nirvana no budismo não pode ser concebida de forma negativa. Trata-se da "extinção" dos desejos e sofrimentos e a imersão na quietude eterna; de um "estado" de supressão de todas as dores. Ao refletir sobre esta questão, Edward Conze, estudioso do budismo sublinhou: "Se consideramos os atributos da divindade assim como são compreendidos na tradição mística cristã e depois os relacionamos com os atributos do Nirvana, quase não encontraremos nenhuma diferença a nível de conteúdo." Na experiência zen budista enfatiza-se sobretudo "a base inexprimível e inexplicável da experiência direta" . Não necessariamente da experiência de Deus como designada no Ocidente, mas da experiência da vida. Como afirma Suzuki, Deus não vem nem negado nem afirmado; o que se busca é a "mente livre", e para tanto, é necessário transpor um "abismo sem fundo" e chegar ao radical desapego de si. O misticismo revelado pelo zen é o encontro com a simplicidade da realidade. O que ele busca é abrir "os olhos do homem para o grande mistério que diariamente é representado. Alarga o coração para que ele abranja a eternidade do tempo e o infinito do espaço em cada palpitação e faz-nos viver no mundo como se estivéssemos andando no Jardim do Édem." A ênfase recai não sobre a explicação, sempre acidental para a tradição zen, mas sobre a experiência, para ela essencial. Dentre os pensadores cristãos, talvez tenha sido Mestre Eckhart quem melhor alcançou o significado do zen budismo, ao apontar o radical sentido de esvaziamento como condição para a experiência do mistério de Deus: "Deveria o homem ser tão pobre que não possuísse nem mesmo um lugar onde Deus pudesse atuar. Reservar um lugar seria manter distinções." Para Mestre Eckhart, só quando o eu está totalmente despojado, livre de qualquer "vestígio", ou "espaço" para a ação de Deus, é que se recobra o "verdadeiro eu". O encontro com a meta proposta pelo zen implica em superar todas as idéias, inclusive a "idéia de não ter nada": "Buda revela-se a si mesmo quando não é mais afirmado. Para encontrar o Buda temos de renunciar ao Buda. Este é o único caminho para obter a verdade do Zen."Encontramos de fato em toda a tradição budista um "silêncio de Deus", uma reticência em dar nome à realidade absoluta e transcendente. Isto não significa uma ausência da questão religiosa ou do sentido, profundamente presentes em todas as suas expressões. Trata-se da negação como "cifra da transcendência". O silêncio de Deus praticado no budismo não reflete um ateísmo nihilista, mas constitui "a forma mais radical de preservar a condição misteriosa de Deus, o supremo, a que toda religião aponta, embora nem sempre de forma conseqüente." O caminho enfatizado pelo budismo relaciona-se com o exercício prático da libertação da dor, que passa pela interiorização e pelo desapego. Como bem sublinhou o Dalai Lama, o budismo "não se volta para algo externo e sim para a responsabilidade pessoal do desenvolvimento interior." Os passos desta viagem interior estão presentes nas 4 nobres verdades contidas nos ensinamentos de Buda e que representam o núcleo mesmo do budismo. Esta verdades podem ser assim sintetizadas: a verdade do sofrimento, a verdade da origem do sofrimento (a ilusão do apego, do orgulho, das visões errôneas ou equivocadas do ego), a verdade da cessação do sofrimento e a verdade do caminho de superação do sofrimento (que pressupõe moralidade, concentração e a sabedoria do desprendimento). 5 - Em Favor de Um Ecumenismo Planetário: Desdobramentos e Desafios Um dos fundamentais desafios enfrentados hoje pelas religiões diz respeito ao diálogo de obras, de mútua colaboração em favor de um mundo melhor e mais justo. Um diálogo de responsabilidade comum por todos os povos da terra, mas que garanta a singularidade das religiões. Um diálogo, portanto, animado pelo equilíbrio entre a consciência da diversidade e o imperativo da responsabilidade. A alteridade irredutível de cada tradição religiosa deverá estar sempre garantida no processo dialogal, e isto significa ser capaz de perceber o outro como "mysterium tremendum", que jamais pode ser completado ou reduzido em seu significado único. Ao mesmo tempo, percebê-lo como "mysterium fascinans", ou seja, um mistério que igualmente convida ao encontro e que se abre ao aprendizado da diferença. O encontro e cooperação entre as religiões constitui hoje um requisito essencial para a paz entre as nações: "Não haverá paz entre as religiões sem um diálogo entre as religiões." O ecumenismo planetário constitui uma ampliação da "ecumene abraâmica", na medida em que busca envolver todas as religiões da terra em favor de uma comum responsabilidade eco-humana. Os passos para o diálogo envolvem não somente uma responsabilidade prática, mas igualmente uma abertura aos enriquecimentos múltiplos que o encontro desarmado pode e deve favorecer. No caso específico do cristianismo emergem desafios muito importantes. Com respeito ao diálogo com o judaísmo, exige-se, em primeiro lugar, a superação de todo e qualquer sentimento de hostilidade que caracterizou o passado das relações entre as duas tradições. Impõe-se o reconhecimento dos profundos laços de dependência que vinculam o cristianismo ao judaísmo ; igualmente a abertura e disponibilidade para "escutar o testemunho dos judeus, a aprender com a sua experiência de vida e de fé e, portanto, colher novos aspectos da tradição bíblica." Com respeito ao diálogo com o islã, impõe-se a necessidade de um maior respeito e abertura ao valor do Corão, enquanto Palavra de Deus diferente e autêntica, bem como o reconhecimento de Maomé como profeta verdadeiro. A teologia cristã da criação sairá igualmente enriquecida quando animada pelo contato com o Corão, que favorece perceber com grande riqueza o "admirável sentido da beleza e estabilidade do mundo criado" testemunhado neste Livro. O budismo, por sua vez, favorece aos cristãos grandes inspirações éticas e religiosas, tão bem sinalizadas por João Paulo II em ocasiões diversas: o caminho de renovação do indivíduo, o estilo de vida fundado na compaixão, bondade e desejo de paz, prosperidade e harmonia para com todos os seres viventes, o profundo respeito pela vida e a natureza, a renegação de si, a busca da verdade e o incessante esforço de transcendência. Durante a jornada mundial de oração pela paz, realizada em 1986 na cidade de Assis, João Paulo II fez menção à "viagem fraterna" que os fiéis das diversas tradições religiosas realizam em comum em direção à meta transcendente de Deus. Somos todos nesta história convidados por Deus mesmo a entrar no "mistério de sua paciência" e a buscarmos juntos os valores da verdade transcendente. Só Deus conhece a forma como esta etapa histórica será coroada no fim dos tempos. Nenhuma religião pode pretender esgotar toda a verdade, pois só Deus é senhor da verdade plena. Estamos todos sob o mistério do inescrutável da transcendência amorosa de Deus. Somos todos "homines viatores", sempre a caminho. A Igreja cristã é igualmente peregrina: "Ecclesia peregrinans". E não estamos sozinhos nesta travessia, mas acompanhados, em relação de testemunho e aprendizado, pelos fiéis de todas as tradições religiosas da humanidade. No processo de comunicação permanente com os outros, crescemos e ajudamos a crescer. Como bem lembrou H.Küng, ao final de sua teologia a caminho, a história permanece aberta ao futuro: Só uma coisa é certa a respeito do futuro: no final da vida humana e do curso do mundo, já não existirá Budismo ou Hinduísmo, tampouco o Islamismo e o judaísmo, nem o Cristianismo. No final não existirá nenhuma religião, mas se encontrará o próprio Inefável ao qual se dirigem todas as religiões. E só então, quando o imperfeito cede ao perfeito, os cristãos o conhecerão do mesmo modo como são conhecidos: a verdade face a face. No final não haverá mais profetas ou iluminados que dividam as religiões: nem Maomé nem Buda nem o próprio Jesus Cristo em quem os cristãos crêem, serão causa de divisão.
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