terça-feira, 29 de julho de 2008

A Filosofia de Plotino - A/0039


Mística, Linguagem e Silêncio na Filosofia de Plotino

Este artigo tem como objetivo destacar alguns aspectos importantes da experiência mística plotiniana, evidenciando, sobretudo, o problema da linguagem que aparece na Filosofia de Plotino como um termo limítrofe entre a necessidade de comunicar a respeito do Uno e entre a impossibilidade de fazê-lo. A inefabilidade do primeiro Princípio plotiniano conduz, necessariamente, à questão do limite, ou seja, ao problema da linguagem. Nesse sentido, a linguagem aparece na Filosofia de Plotino como um termo limítrofe entre a necessidade de comunicar acerca do Uno e entre a impossibilidade de fazê-lo. Daí toda a recorrência à via da negação que vai culminar no silêncio de uma experiência vivida. É justamente nesse ponto, nesse contato que se dá de forma silenciosa, que guiaremos inicialmente nossas reflexões a respeito da experiência mística em Plotino. Comecemos, pois, pelo tratado VI 7 (38): Sobre como nasceu a multiplicidade das idéias - do Bem. Nesse tratado do segundo período, Plotino expõe, sobretudo a partir do parágrafo 15, a idéia da transcendência do Bem, acima de toda determinação, e a união da Alma com esta primeira hipóstase acima de todo conhecimento. Esse percurso da Alma que ultrapassa todo conhecimento vai desaguar no posicionamento do filósofo alexandrino de que o nosso raciocínio (representado pela linguagem) é insuficiente (limitado), tanto para narrar a experiência que temos do Uno, quanto, principalmente, para descrever a natureza Deste. Jorge Mehlis observa que o nosso conhecimento se verifica por meio de conceitos e os conceitos só podem conhecer o limitado, o que possui forma; porém, o Uno é o princípio indeterminado (1931: 102). Dessa forma, Plotino retoma as três vias abordadas em outros tratados: negação, analogia e transcendência - esta última, chamada no tratado VI 7, de gradação ascendente - para mostrar que esses caminhos fazem parte de um conhecimento raciocinado, cuja importância é a de nos instruir no caminho para o Bem. No entanto, essa instrução não consegue nos conduzir para o Bem. Esta condução é alcançada por outras vias, de uma ordem diferente da do raciocínio, nos diz Plotino: “(...) o que nos instrui (para o Bem), são as analogias, as negações, o conhecimento dos seres (...) e sua gradação ascendente; mas o que nos conduz até o Bem são nossas purificações, nossas virtudes, nossa ordem interior (...)” VI 7, 36: 5-10. As negações, as analogias e a transcendência são extremamente importantes para discorrermos sobre a processão. Entretanto, para fazermos o caminho inverso, ou seja, para abordarmos a questão do retorno, devemos nos utilizar não mais daquelas vias discursivas, e sim, procurarmos, através das nossas purificações, das nossas virtudes e da nossa ordem interior, nos afastar da multiplicidade do discurso e nos recolher na unidade de uma experiência inefável. É por esse motivo que Plotino afirma que a nossa condução para o Bem realiza-se, não pela via discursiva, mas pela via da experiência e, com esta, pelo silêncio. Não é exagero, portanto, falar de um esforço, por parte do filósofo alexandrino, uma vez que, apesar de ser avaro com as palavras (segundo o comentário de Porfírio), as Enéadas estão cheias de imagens das quais Plotino faz uso. Não se furtando de utilizar os recursos que a linguagem oferece, sobretudo as prosopopéias e as metáforas, para explicar da melhor maneira possível as idéias que o mesmo desenvolve. O seu esforço é tanto, que, para tentar dar conta da natureza do seu primeiro Princípio, Plotino recorre a três maneiras diferentes de dizê-lo e, mesmo assim, não consegue defini-lo (o Uno) satisfatoriamente. Mas, por que a linguagem, mesmo com todos os recursos lingüísticos de que dispõe, não consegue expressar em toda sua extensão o fundamento da metafísica plotiniana? Nos diz Plotino em VI 8, 13: 1-5: “Se é preciso, no entanto, empregar estas expressões, embora não sejam corretas, diremos ainda, que para falar rigorosamente, não se deve admitir aqui dualidade, nem mesmo lógica; mas o que quero dizer agora tem por alvo persuadir, e é preciso nos relaxar deste rigor nas nossas fórmulas.” As expressões que utilizamos não são corretas, o Uno, por ser extremamente simples, não pode admitir uma dualidade no seu interior, entretanto há uma necessidade, não só de persuadir (no caso específico da passagem citada, à qual Plotino se dirige ao discurso temerário) mas, sobretudo, de comunicar. Esta necessidade torna-se tão vital para o filósofo alexandrino que o mesmo vai abrir mão do rigor de suas fórmulas a respeito do fundamento de sua metafísica, para que este seja compreendido e para que esta compreensão possa nos instruir (assim como as três vias) em direção ao Uno. Ao final do parágrafo 13 do tratado VI 8, Plotino complementa a sua idéia afirmando que somos forçados a empregar nomes que nós não queremos empregar com todo rigor e que é preciso sempre os entender como um como se. René Arnou faz a seguinte observação, a respeito da inefabilidade do Uno: “Do Uno não podemos ter nem gnósis?(o conhecimento em geral), nem aísthesis? (o conhecimento sensível), nem nóesis? nem epistéme, nem conhecimento intelectual, nem ciência; pois há em todas estas formas do conhecer, mesmo as mais elevadas, uma oposição essencial, uma dualidade, um impedimento à assimilação perfeita com o Princípio que é pura simplicidade” (1967: 235). Nesse sentido, a linguagem não consegue expressar a natureza do Uno, pois, sendo este infinito e inefável, não pode ser expresso (“em toda sua riqueza”) por uma linguagem finita e limitada. A linguagem escrita e falada desempenha o seu papel muito bem, quando diz respeito às realidades inferiores ao primeiro Princípio, mas, quando se trata deste último ou da experiência que temos Dele, a linguagem torna-se insuficiente. Essa idéia recai sobre o sentido da unidade do Uno, ou seja, o Uno enquanto unidade não pode admitir uma dualidade, pois admitir isto é quebrar, de alguma maneira, a sua unidade. A mesma forma de pensar vale também para a experiência mística, pois, sendo esta uma assimilação perfeita com o Princípio que é pura simplicidade, deve reinar neste momento somente uma indescritível unidade. O rigor da unidade da primeira hipóstase faz Plotino não atribuir a esta nem mesmo o pensamento que, segundo ele, nasce de um desejo e de uma procura, e a primeira hipóstase não procura, nem deseja nada, pois ela basta-se a si mesma. Além do que, atribuir ao Uno um pensamento é introduzir nele uma dualidade, visto que a nossa capacidade de pensar é sempre dual. Para o filósofo pagão, o Uno é perfeito por ele mesmo e não pelo pensamento, do contrário, o pensamento tiraria do Uno a sua perfeição, a sua unidade. A linguagem, pois, enquanto representação do pensamento, coloca-se como um limite entre aquilo que eu quero e tenho necessidade de dizer e aquilo que eu não consigo representar através da linguagem falada e escrita. A linguagem é, nesse sentido, um instrumento do qual fazemos uso para formar todo um sistema filosófico. A via discursiva, construída através da linguagem, é válida e importante, na medida que nos serve de instrução. No entanto, essa instrução por si só não nos conduz ao Uno. No caminho entre a linguagem e o Uno aparece uma via diferente da via discursiva: a experiência e, com esta, o silêncio. Vejamos, pois, como relacioná-los e, posteriormente, estender essa relação a mística. Plotino recorre à experiência, sempre que a linguagem não consegue expressar o que ele pretende comunicar. Vejamos sobre isto duas passagens importantes: “A maior dificuldade resulta de que não o conhecemos pela ciência nem por uma intelecção semelhante às demais, senão por uma presença superior à ciência. Pelo contrário, a Alma se distancia do Uno e não é inteiramente una quando conhece algo cientificamente, porque a ciência é discurso, e o discurso é múltiplo. / Sobrepassa, pois, a unidade, e cai no número e na multiplicidade /Se alguém o experimentou compreenderá o que digo (...)” (VI 9, 4: 1-8 e 9: 45) A primeira citação diz respeito à tentativa de Plotino em definir o primeiro Princípio, ou seja, depois de várias tentativas, depois da utilização das três vias, Plotino reconhece a dificuldade de defini-lo (o Uno) e afirma que este só pode ser conhecido por uma presença (parousia, e, nesse sentido, ele coloca a ciência (conhecer cientificamente), a intelecção e o discurso como algo muito distante desta presença em que não existe dualidade daquele que vê e do que é visto. Desse modo, a presença mística em Plotino requer uma unidade que a ciência, a intelecção e o discurso não possuem, pois, como ele mesmo afirma, conhecer algo cientificamente é cair na multiplicidade. Assim, a presença em Plotino é uma experiência e, nesse sentido, só quem experimentou compreende o que ele diz. Na segunda citação, o filósofo alexandrino, depois de utilizar-se de todos os recursos lingüísticos de que dispunha para narrar o êxtase místico, “apela” para experiência numa última tentativa de expressar silenciosamente o que ele precisa comunicar. O silêncio surge, pois, como um calar essencial que pode ser visto no pensamento de Plotino como a linguagem da Alma, ele não a define, mas podemos afirmar com base na leitura das Enéadas e, como extensão desta leitura, na influência exercida por estas em Mestre Eckhart - sobretudo o Sermão 57 intitulado O Silêncio da Criação, e, em Pseudo-Dionísio - incisivamente em A Teologia Mística, que se trata do silêncio; não do silêncio enquanto forma de ficar calado, mas enquanto possibilidade de toda e qualquer linguagem. Enquanto possibilidade da linguagem é possível uma expressão silenciosa e essa expressão é representada pela experiência, experiência que em Plotino está mais próxima do silêncio do que do discurso; pois, sempre que o discurso (a linguagem falada ou escrita) chega ao seu limite, Plotino faz um apelo à experiência. Com a via da negação, ocorre o mesmo processo, quando ela chega, através das negações, ao seu ápice, triunfa o silêncio. Nesse sentido, experiência e silêncio coincidem, ou seja, eles são colocados sempre, na Filosofia de Plotino, como uma possibilidade de ultrapassar os limites da linguagem escrita ou falada. A experiência rompe, portanto, com a linguagem, na medida em que, quando falamos sobre o Uno ou sobre o contato com ele, se impõe uma transcendência que não pode ser alcançada pela linguagem, e ao mesmo tempo essa transcendência é cercada por uma unidade, uma simplicidade que a linguagem enquanto discurso não possui; é necessário, desse modo, que se abandone a via discursiva, em detrimento de uma outra via: a mística. Mística deriva do verbo grego mýô e significa fechar-se; especialmente fechar os olhos, recolher-se. Por isso, mystikón é o oposto de phanerón (aberto, manifesto). Em Plotino, a mística é pensada como háplosis, isto é, como máxima simplificação da Alma racional, quando ela se retrai para o fundamento do seu ser. Para que se dê tal união, misteriosa, secreta e indizível com o Uno, é mister deixar atrás de si a matéria. A mística plotiniana não é deificação, mas assemelhação com o divino (ULLMANN, 1995: 368). Dessa forma, a mística pode ser definida como uma experiência imediata e indescritível do divino. Assim, experiência, silêncio e mística se inter-relacionam, uma vez que a mística nada mais é do que uma experiência silenciosa do divino. Porém, no momento dessa experiência é preciso que abandonemos tudo, até mesmo a nossa linguagem e o nosso raciocínio, pois, por mais que a metafísica plotiniana queira refletir sobre algo infinito (o Uno), torna-se finita, devido à limitação da linguagem. Surge, então, o problema da publicidade da linguagem que procura ensinar o caminho de uma experiência que, além de ser misteriosa, é secreta. A consciência desta dificuldade é reconhecida por Plotino, quando ele afirma em VI 9, 4: 10-15: “Não se pode dizê-lo nem escrevê-lo, senão que falamos e escrevemos enquanto vamos em direção a ele, acordando-nos pelas palavras para a contemplação, e como mostrando o caminho ao que queria contemplar. O ensino chega até a rota e o caminho: quanto à visão, essa já é trabalho daquele que quer contemplar.” Nesse contexto, a metafísica oferece-nos o itinerário a ser seguido para alcançarmos o contato com o Uno, e, nesse sentido, metafísica e mística estão bem próximas. Porém, quanto à visão (a experiência mística), esta depende de uma vontade, de uma disposição daquele que quer alcançá-la e, nesse sentido, é possível falar de uma auto-salvação ou de uma superação do homem que só pode ser realizada plenamente através da mística. Dessa forma, metafísica e mística se aproximam, mas, estão em planos diferentes: enquanto a primeira se mantém, na medida do possível, na ordem do conhecimento, a segunda ultrapassa, em muito, esta ordem; não se trata mais de um conhecimento, mas de um contato, de uma visão. Plotino mais uma vez tem dificuldade para descrever este contato, esta visão e mais uma vez recorre à experiência, como em VI 9, 9: 45-60: “Se alguém o experimentou compreenderá o que digo: a Alma vive outra vida quando se aproxima dele e está junto a ele e dele participa, de tal modo que sabe ter presente o verdadeiro dom da vida; e já nada necessita, senão que há de renunciar a todo o resto e manter-se só nele e fazer-se um com ele, suprimindo toda adição, de tal maneira que consiga sair de tudo isso e ver-se livre de tudo que possa atá-la às outras coisas, para voltar-se ao seu próprio ser e não ter em si parte alguma que não se una com o divino. Então é possível vê-lo e ver-se a si mesmo, se é que realmente se pode ver, iluminado, pleno de luz inteligível, ou melhor, como se ele mesmo fosse uma luz pura, imponderável, leve; como se estivesse convertido em deus, suspenso até que, voltando outra vez a sentir o próprio peso, se sente murcho”. Temos, nessa passagem, os três aspectos da experiência mística: visão, união e contato. A Alma parece passar por uma espécie de arrebatamento, onde abandona-se a si própria, despojando-se de tudo (áphele pánta) Mas, se esse estado de êxtase é tão maravilhoso ao ponto de nos sentirmos murchos ou vazios, quando este momento termina, por que não permanecemos lá, na quietude dessa experiência? Esta mesma pergunta é colocada por Plotino, ao que ele nos responde: “Porém chegará um momento em que a contemplação será contínua, nua, sem nenhum obstáculo corporal que a impeça” (VI 9, 10: 1-3). Embora o êxtase possa ser alcançado, ainda em vida, por todos os homens que queiram e se esforçam para isso, o máximo que estes homens conseguem são contatos momentâneos, instantes de abandono (talvez nem seja correto falarmos em momento ou instante, pois o êxtase realiza-se de forma atemporal). No entanto, chegará um momento em que a contemplação será contínua e este momento é o momento da morte, ou seja, para Plotino, assim como para Platão, a morte significa tão-somente a separação da Alma do corpo e como tal não deve ser temida, uma vez que “o valor consiste em não temer a morte, e como a morte é a separação da Alma do corpo, não temerá essa separação aquele que deseja estar separado do corpo” (I 6, 6: 8-12). A separação efetiva da Alma do corpo não pode realizar-se em vida, mas a purificação sim. Esta é parte integrante da preparação interior que como tal, realiza-se como um aprofundamento das preparações anteriores. Nesse aprofundamento faz-se necessário olhar por cima da própria beleza (preparação intelectual) e deixar para trás o coro das virtudes (preparação moral). A purificação da Alma é coroada pela contemplação do Uno que corresponde, na Filosofia de Plotino, ao êxtase (simplificação, abandono de si, quietude). É interessante notar que, na descrição do êxtase, ou pelo menos na tentativa de descrevê-lo, Plotino utiliza-se de vários termos ao mesmo tempo, como nos mostra a passagem VI 9, 11: 21-25: ékstasis, háplosis, epidoses, stásis ou seja, ele narra a contemplação do Uno (o retorno) enquanto saída de si, simplificação, dom ou abandono de si, quietude. Dos termos utilizados o ékstasis parece o menos apropriado para descrição da contemplação, já que esta se apresenta como uma “entrada em si” e não como uma “saída” como sugere o termo êxtase. Por outro lado, a “saída de si” pode ser compreendida como áphele, pánta? como despojamento de tudo: a saída representa, pois, o abandono da Alma a tudo que a relaciona com a matéria e, nesse sentido, a saída, assim como a fuga, devem ser entendidas como um ensimesmamento. Para atingirmos esse estado, é preciso percorrer um caminho ascendente; no entanto, essa ascensão não é local, nem tampouco dirige-se ao exterior. Pelo contrário, trata-se antes de uma ascensão psíquica e não física cuja direção aponta para o interior. Logo, a fuga deste mundo, por mais paradoxal que possa parecer, significa uma interiorização, ou seja, fugir é na verdade entrarmos em nós mesmos, perscrutando a nossa Alma (o nosso verdadeiro “eu”) e descobrindo, no contato com o divino, que nós também temos uma origem divina, e por meio desta, pelo menos por um instante de eternidade (a contemplação do Uno) nós podemos superar os nossos limites: “Tal é a vida das Almas e dos homens divinos e felizes; distanciar-se das coisas deste mundo, sentir desgosto por elas, e fugir, só, ao encontro do Só” (VI 9, 11: 48-52). Este é o verdadeiro sentido de toda mística: a superação do homem. Essa superação, por sua vez, realiza-se em Plotino através do retorno (epistrophé, aliás o retorno ele mesmo é a condição sine qua non de realização da mística. Retornar significa, antes de mais nada, recolhimento e reflexão: recolhimento do disperso no Uno e reflexão do que somos e do que queremos ser na nossa relação com o mundo e com os outros. Por este motivo, a unidade exigida no êxtase místico, que aparece como último porto contemplativo do retorno, representa, mais do que um assemelhação ao divino, uma autoconsciência – embora essa reflexão discursiva só apareça posteriormente à experiência - dos nossos limites e das condições de superação desses limites. Esse autoconhecimento termina por nos revelar uma nova visão de mundo e, com isso a transformação da vida. O retorno pois, efetua-se na unidade da mística e revela-se, assim como o Uno, eterno, uma vez que a vida está em constante transformação, e cada transformação surge como graus contemplativos, no afã de atingirmos o divino e de nos realizarmos a partir deste princípio.

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