O Pensamento de Jacob Boheme
Paul Tillich sempre reconheceu a influência do pensamento de Jacob Boheme em sua obra teológica muito mais claramente do que a influência de Eckhart. Mas esses dois pensadores estão presentes em sua teologia. Neste artigo, o autor explora esses relacionamentos e as conseqüências que teriam para o futuro desenvolvimento da ontoteologia de Tillich se ele tivesse tido tempo de superar "o Deus além do Deus do teísmo".Influências reconhecidasAo indicar com honestidade as influências intelectuais em sua obra, Paul Tillich reconhece a importância do pensamento de Jacob Boheme quando confessa sem rodeios "que Schleiermacher fora seu pai espiritual, Schelling, o intelectual e, nessas duas dimensões, Jacob Boheme como seu avô." (1) Carl Braaten reconhece a linhagem mística de Tillich quando identifica a "ontologia mística presente ao longo do seu pensamento". (2) Traça a fonte desse misticismo "examinando de trás para a frente a maneira como de Schelling, passando por Boheme, pelo misticismo germânico e pelo agostinianismo medieval ( da antiga tradição franciscana e de Boaventura) (3), parte do platonismo cristão primitivo."(4) Braaten entende que o platonismo de Tillich fundamenta-se em Agostinho e Origines, modificado significativamente por Jacob Boheme, presente entre Lutero e o próprio Tillich. O impacto produzido por esse misticismo deu à herança luterana de Tillich a substância mística bem como suas principais características. (5)A influência reconhecida por Tillich em sua formação teológica de Boheme e do misticismo germânico, leva-nos a perguntar por que quase não menciona Meister Eckhart em sua obra, cuja experiência precedeu Boheme por mais de dois séculos, muito embora tenha muita coisa em comum com este. Na sua História do pensamento cristão (6) e na discussão posterior com o pensador budista, Hisamatsu Shin´ichi, (7) Tillich mostra-se, embora de passagem, clara simpatia e conhecimento da experiência e do pensamento de Eckhart. Esse quase esquecimento do misticismo de Eckhart é de grande interesse em relação com a insistência de Tillich sobre a necessidade de se ir além das categorias de sujeito e objeto para a expressão adequada da experiência da relação divino/humana.(8) Tanto Eckhart como Boheme poderiam ter ajudado Tillich nessa tarefa porque a experiência mística de Eckhart culmina no estado de identidade com o divino no momento apofático da participação no nada. Nesse momento dissolve-se a distinção entre o divino e o humano e se torna impossível o relacionamento com o divino como se fosse o Outro em oposição ao sujeito humano.A superação mística da separação entre sujeito e objetoTillich acha que a concepção da relação divino/humana no âmbito das categorias de sujeito/objeto faz com que o ateísmo seja a reação teológica e espiritual adequada. (9) Ao insistir nesta afirmação, deixa que sua teologia seja considerada ateísta em relação com todas as formas de teísmo posto que o teísmo não pode escapar dessa dualidade. Tillich, no entanto, deixa poucas pistas, embora importantes, sobre o que significaria ontológica e epistemologicamente a superação dessas categorias. Apesar da necessidade religiosa e espiritual de ir além da dicotomia de sujeito e objeto, Tillich , por exemplo, afirma que apenas a revelação é capaz de sondar o abismo anterior a tal separação.(10) O conceito de "revelação" neste contexto significa, provavelmente, a experiência sem mediação do próprio abismo. A experiência mística seria, então, capaz de dar vida à consciência ou à falta necessitada pela superação das categorias de sujeito e objeto, levando-nos ao momento de identidade com o divino, única possibilidade de vitória sobre a alienação endêmica produzida pelo conceito de Deus como outro em relação ao ser humano. Como já sugeri, este momento de identidade é indicado por Tillich, embora raramente se torne explícito com suas implicações radicais. Seu conceito de profundidade da razão estabelece a dimensão racional onde coincidem o divino e o humano. É a partir desse ponto de coincidência que a humanidade e a divindade alcançam a distância imposta pela razão existencial entre o conhecimento do objeto e o objeto conhecido. A distância e a alienação aí implícitas são levadas ao extremo na convicção de que Deus é, de certa forma, o Totalmente Outro, espécie de entidade excepcional entre a totalidade dos entes. (11) Sem o ponto de coincidência nas profundezas da humanidade, a única maneira de se chegar à divindade seria a partir de fora dela. Para Tillich, tal procedimento seria heterônomo e se constituiria no supremo insulto à autonomia e à dignidade da mente e da pessoa humanas. (12) A profundidade da razão relaciona-se, sem dúvida, ao prius divino que precede a razão e que é, segundo ele, a base universalidade da religião. (13) Tal profundidade e tal prioridade constituiriam o fundamento ontológico do panenteísmo presente no pensamento de Tillich sobre a participação natural do humano no divino. Tillich esperou até o fim do terceiro volume da Sistemática para reconhecer explicitamente esse panenteísmo, muito embora a idéia já estivesse presente a partir do primeiro volume como o poder que vivifica seu entendimento da relação entre o divino e o humano e sem o qual seu sistema seria ininteligível e sem alma.(14)Esse ponto de identidade entre o divino e o humano também aparece em seu "princípio de identidade", (15), nas várias formulações do "princípio de imediatez", (16) e no conceito de "mútua interpenetração" do "infinito e do finito". (17) Essas formulações referem-se ao ponto de coincidência no humano entre o finito e o infinito, base da sempre presente possibilidade e necessidade da experiência religiosa e, consequentemente, das assim chamadas "religiões do mundo". O ponto de coincidência entre o divino e o humano reaparece dramaticamente quando Tillich afirma que qualquer conhecimento humano de Deus é o conhecimento de Deus agindo por meio do humano. (18) Quando estende essa intimidade ao mundo espiritual e à oração, afirma que qualquer prece autêntica é como se Deus estivesse falando com ele mesmo por meio do ser humano. (19) Ele se aproxima, assim, da famosa afirmação de Eckhart de que Deus e o ser humano se vêem através do mesmo olho.(20)Parece, então, que a profunda preocupação de Tillich com a necessidade de superar as categorias de sujeito e objeto aplicadas à relação entre o divino e o humano, realizam-se plenamente na experiência mística. A consciência disso deveria ter dado à experiência mística lugar de maior proeminência em seu pensamento sistemático do que realmente se vê. Tillich, em geral, identifica o misticismo como uma das duas maiores reações iconoclastas à idolatria, gerada pela "revelação universal.... que se torna o pressuposto de todas as revelações concretas e particulares", (21) concretizada no cristianismo que é uma de suas variantes históricas. O iconoclastismo místico transcende a idolatria ao transcender quaisquer mediações, especialmente as dos clérigos ou da igreja, entre o indivíduo e o divino. Na tradição apofática germânica tal transcendência torna-se o momento de identidade onde o divino paira além de qualquer diferença. Por outro lado, o iconoclastismo profético, parte da crítica do profeta, apoiada, em geral, pela razão crítica e secular. (22), das pretensões do aparecimeno do sagrado como tal. (23) A conhecida relação feita por Tillich do princípio protestante com a substância católica, depende, grandemente, da negação profética de que qualquer expressão da substância católica, (24) base sacramental da religião, incluindo a figura religiosa de Jesus, (25) possa reivindicar caráter absoluto em assuntos religiosos. O problema da relação da reação iconoclasta às expressões históricas e concretas da "revelação universal", especialmente em suas formas teístas, aumenta consideravelmente nas páginas finais do livro, A coragem de ser, quando Tillich deineia o "Deus além do Deus do teísmo". (26) Essas páginas contêm a mais clara rejeição de Tillich do teísmo em todas as suas formas. Em primeiro lugar, ele rejeita a capacidade do teísmo popular de evocar sentimentos psicológicos cheios de substância grave e moral com a finalidade de permitir que "políticos" e "ditadores" utilizem o termo "Deus" para fundamentar sua credibilidade moral. (27) Este tipo de teísmo foi escandalosamente explorado durante a recente campanha eleitoral americana. Em segundo lugar, o teísmo pode ser usado para descrever o encontro divino/humano no contexto do esquema sujeito/objeto. (28) Em terceiro lugar, o teísmo , em continuidade com o segundo ponto, reduz a relação entre o divino e o humano ao nível de relacionamento entre duas pessoas, uma das quais, divina. O que leva Tillich a rejeitar radicalmente o teísmo e afirmar o Deus além do Deus do teísmo é especialmente sua recusa da adequação teológica do personalismo religioso e bíblico em sua forma usual e dúbia quando pressupõe o relacionamento do indivíduo com um Deus também individual. Esse conceito de Deus, embora não inferior ao pessoal, corrói o relacionamento humano com o divino reduzindo-o ao mero encontro de uma pessoa com outra. Tillich mostra nessas páginas que o Deus além do Deus do teísmo transcende tanto "a experiência mística como o encontro divino-humano". (29) Pode-se facilmente perceber porque tal Deus transcenderia o encontro pessoal, significando, neste caso, a tradição profética, porque essa consciência só se expressa por meio das categorias de sujeito e objeto. O profeta fala em nome de um Deus que não é ele ( o profeta), vindo de fora e, na qualidade de agente externo, envia-o e lhe dá forças para falar. Em resumo, o profeta fala em nome de outro que não é ele. O esforço de Tillich para libertar esse discurso do contexto teísta permanece torturante e nada convincente. Em última análise, a argumentação de que o profeta escapa do teísmo depende da identificação do místico com o profeta à medida que ambos participam no que ele chama de "fé absoluta", derivada da experiência de " ser tomado pelo poder do ser em si". (30) O conteúdo dessa fé é o Deus acima do Deus do teísmo. Contudo, a afirmação de que a fé absoluta no Deus além do teísmo transcende tanto a experiência mística como a profética permanece altamente suspeita em relação à profecia por causa da inegável relação do profeta com o divino Outro.A compulsão de Tillich para livrar o profeta do teísmo eu tanto rejeita funda-se provavelmente na sua admissão de que o profético situa-se no coração de seu tão querido princípio protestante. (31)Seu Deus acima do Deus do teísmo é menos suspeito em relação com o misticismo. Na experiência de Eckhart e, até certo ponto, na de Boheme, não há dúvida de que ambos reconheciam-se fruindo um instante de identidade com o divino muito além do Deus do teísmo. Na verdade, apenas o místico (e dificilmente o profeta) pode transcender o Deus do teísmo. Se fosse possível, teríamos que situar a profecia na linha da experiência mística e na resposta conseqüente do místico à cultura civil e religiosa circundante bem como no impacto que produziria sobre ela. Frequentemente, tal impacto profético tem custado aos místicos a perda da paz e até mesmo da vida. Tillich teria gostado de dizer que a experiência vitoriosa da dúvida moderna e da falta de sentido seriam "mais radicais do que o misticismo" porque dissolveria até mesmo a base eclesial de onde, afinal, procedem os místicos. (32) Entretanto, o exame mais detido do custo em termos de sofrimento vivido pela alma no seu itinerário para a identidade de Eckhart com Deus e assumida por Boheme também em sofrimento em face da resolução da auto-contradição divina em sua humanidade, mostraria, pelo menos, que esse tipo de argumentação fica aberto à dúvida.Eckhart na pesquisa mais recenteAntes de examinarmos a maneira como Tillich se apropria de Eckhart faz-se necessário levar em conta certos desenvolvimentos posteriores aos escritos de Tillich que enfatizam a natureza radical da experiência de Eckhart. Existe certo consenso entre os estudiosos hoje em dia sobre a realidade de duas dimensões da vida divina a partir da distinção explícita feita por Eckhart quando afirma que "Deus (God) é tão diferente da divindade ( Godhead) como a terra é diferente do céu" e que "Deus e divindade são tão diferentes como o ativo é difrerente do inativo". (33) Nestas sentenças o termo Deus ( Gottes) refere-se à trindade na sua qualidade de criadora. Eckhart descreve a vida da trindade como bullitio, fervura,cujo dinamismo interior acaba em ebullitio, ebulição que resulta em criação. (34) Essa superabundância tem muitas conseqüências. Atribui necessidade à criação porque a trindade não podia resistir ao próprio impulso para se expressar além de si mesma. Afirma igualmente a eternidade do mundo. É o que afirma Eckhart quando diz que ouve duas coisas quando Deus fala sua única Palavra. (35) Isso significa que a expressão do Logos no interior da trindade e além dela são duas dimensões do mesmo dinamismo. Também quer dizer que nunca houve a situação na qual o Logos não se expressava e na qual a criação ainda não era criação. Além disso, o fluxo divino leva o pensamento de Eckhart para a identidade dialética da criação e da queda, antecipando a posição de Tillich por seis séculos. (36) Segundo o imaginário de Eckhart quando as coisas saíram de Deus todas falavam de Deus mas não eram abençoadas. (37) Isso porque a criação rompeu a identidade da criatura com Deus por meio da sujeição à ruptura entre sujeito e objeto, em conseqüência da qual a criatura caiu em alienação e distanciamento em relação ao criador. Na variante de Tillich a criação ocorre quando o indivíduo "sai" de Deus desejando sua própria existência e se alienando existencialmente de sua fonte. Como em Eckhart, também em Tillich: "criação e queda coincidem". (38)É neste ponto que entra em jogo a segunda dimensão da vida divina. Chama-se "divindaded" (Gottheit) distinta da trindaded nos escritos de Eckhart. Ele trata do assunto de diferentes maneiras. (39) Contudo, não afirma a emanação da trindade a partir da divindade porque a divindade não precisa de se expressar nem de agir além de sua própria essência. A serenidade auto-suficiente da divindade representa o decisivo papel de libertar a humanidade da alienação implícita no relacionamento com a trindade criadora como se fosse um outro ente. A prioridade da divindade torna-se evidente na oraçãoi de Eckhart: "Oro a Deus para que ele me livre de Deus". (40) Nesta oração enigmática ele reza à divindade para que ela lhe restaure a identidade que tinha com ela antes da separação entre criatura e criador. Eckhart preenche, assim, os vazios deixados por Tillich na superação da estrutura sujeito/objeto. Basta para isso o resgate do momento primevo de identidade com o divino. Mas esse momento, obviamente, não pode ser permanente posto que redundaria em estado catatônico. Mas, por outro lado, não pode ser evitado se quisermos alcançar o Deus além do teísmo bem como a "a negação da negação" desse outro além de Deus. (41)Os estudiosos atuais do pensamento de Eckhart e de outros místicos medievais reconhecem a distinção entre unitas indistinctionis (união de indistinção ou de identidade) em contraste com unitas spiritus (união que mantém a distinção entre o divino e o humano na relação mística com Deus). (42) O momento de identidade com a divindade, segundo Eckhaart, bem como de acordo com certos beguines de seu tempo, é, claramente, unitas indistinctionis, na qual se evaporam todas as diferenças entre o místico e a divindade no nada todo abrangedor. (43) Essa união de identidade situa-se no centro do misticismo de Eckhart e constitui, afinal, o momento mais importante do pensamento de Boheme.Os estudiosos contemporâneos de Eckhart fazem também importante distinção entre a experiência narrada por ele do nascimento de Deus (gottesgeburte) e a da sua irrupção (durchbruch) na alma. São experiências inter-relacionadas mas não idênticas. (44) A irrupção de Deus iria além do nascimento de Deus na alma para o resgate da identidade perdida com a divindade. A distinção entre esses dois eventos interiores não poda ser negada nem transformada em modelo, fazendo de uma requisito para a outra. O que se pode dizer com mais acuidade é que a indistinção entre o divino e o humano decorrente da irrupção de Deus acaba com qualquer compreensão desse relacionamento na base das categorias de sujeito e objeto e transcende todos os imaginários incluindo o do nascimento de Deus na alma. Permanece, então esta pergunta: "Se a experiência e a teologia de Eckhart bem como a de todos os místicos apofáticos culminam na identidade com o Deus além do Deus do teísmo e, portanto, vão além da estrutura sujeito/objeto, por que Tillich não explorou Eckhart como exemplo prioritário do que esse pensamento e experiência poderiam significar e ser expressos?" A resposta que me parece viável é que o compromisso de Tillich com o paradigma trinitário do cristianismo ortodoxo e com seu logocentrismo lhe impediu de se apropriar plenamente da experiência de identidade com o divino no nada antes de qualquer forma ou mesmo de qualquer tendência à forma. Tal experiência mística implica em inúmeras conseqüências teológica que perturbavam o pensamento de Tillich mesmo quando procurava delinear a natureza do Deus além do Deus do teísmo. A primeira dificuldade enfrentada por ele era o momento da identidade não qualificada do divino com o humano que reservava para a situação pós-temporal, mesmo quando afirmava com ênfase a intuição humana imediata e imperfeita dos movimentos da vida trinitária. (45) A segunda dificuldade relaciona-se com as implicações quaternárias da experiência de Eckhart incapazes de reduzir a divindade à natureza ou função da trindade criadora. Ao indagar sobre a revitalização contemporânea do símbolo da trindade, Tillich joga com a idéia da quaternidade mas não se compromete com ela. (46) É provável que tivesse entendido e temido o poder de um nada que não apenas precede e dá nascimento à forma e à vida mas que também as pode devorar. (47) A apropriação tillichiana de EckhartPode-se apreciar com certa clareza a reticência de Tillich para incorporar em sua teologia o pensamento de Eckhart ao se examinar os dois principais momentos em que se refere a ele. Na sua História do pensamento cristão, estuda Eckhart no contexto do misticismo germânico medieval de maneira incisiva mas não menciona explicitamente o tema principal do envolvimento do místico no caminho da identidade com o divino. (48) Considera os temas principais relacionados com a distinção feita por Eckhart entre o Deus fundamento e o Deus trindade, reconhecendo indiretamente a idéia da quaternidade divina. Leva em consideração a posição de Eckhart de que a geração do Logos no interior da vida divina e além dela na criação relacionam-se intimamente mas não conclui que tais atos sejam idênticos conferindo à criação, ao mesmo tempo, necessidade e eternidade. Refere-se ao panteísmo de Eckhart, bastante próximo do seu, em termos da divindade da centelha na alma de todos os seres humanos. Tillich ver ela nessas passagens que a presença natural de Deus sentida por Eckhart como fundamento da alma antecipa a idéia do "eterno agora" de sua teologia e pregação. (49) Em decorrência do conceito da intimidade divina, Tillich acuradamente cita Eckhart ao afirmar que a divindade natural da humanidade é a base do nascimento potencial de Deus na alma de qualquer um, nascimento esse que relativiza o nascimento literal e histórico de Jesus por sua mãe, Maria, estendendo-o à humanidade toda como possibilidade e exigência religiosas universais. Ao assim proceder, Tillich reconhece o universalismo de Eckhart baseado na divindade natural da humanidade e na subordinação de sua cristologia à antropologia religiosa que esse universalismo implica. Coerente com sua própria teologia que nega a possibilidade humana do ateísmo e a impossibilidade do secularismo sem valor cultural supremo, (50) abandona "a diferença entre os mundos sagrado e secular", (51) nos passos de Echkart. Em certo sentido, Tillich reconhece o apofatismo radical de Eckhart, indicado por ele no uso da palavra alemã entwerden, que significa o não tornar-se ou o anti-tornar-se na perda do eu descrito pelo místico na imersão no nada divino. (52) Entretanto Tillich nõ emprega o termo inglês "breakthrough" ao discorrer sobre Eckhart em sua obra histórica, calando-se a respeito da fusão total do humano e do divino no Deus além da trindade como resultado final da alienação intimamente ligado à relação da criatura com o Deus outro. A razão do silêncio de Tillich sobre este tema torna-se mais evidente no seu diálogo em Harvard com o monge e filósofo zen Hisamatsu Shin´ichi. (53) O budista começou a conversa com a idéia zen do "eu calmo" ou "eu sem forma". (54) Tillich admite que gostaria de passar por essa experiência em sua vida agitada ms quer saber de que maneira isso seria possível. (55) No decurso do debate, Tillich sugere que o eu sem forma situar-se-ia além do esquema sujeito/objeto, coisa com que seu interlocutor concorda. (56) Mas quando Tillich pela segunda vez pergunta como se chega a isso, Hisamatsu refere-se à experiência de Eckhart de desinteresse e prossegue falando a respeito do conceito de pobreza do místico medieval. (57) O conceito de pobreza de Eckhart é rico e radical livrando o indivíduo não apenas do excesso de bens pessoais mas também dos dons intelectuais e da vontade e até mesmo da existência autônoma para alcançar a identidade com a divindade.(58) Tillich reconhece que tal pobreza esvazia, de fato, o indivíduo do "dualismo sujeito-objeto". (59) Hisamatsu sente-se obviamente à vontade com a correlação entre o conceito zen do eu sem forma e o ungrund de Eckhart, à medida que não haja nenhum dualismo entre o ungrund e sua realização concreta nas coisas finitas. (60)Tillich consegue aceitar parcialmente essas idéias mas a maneira como fala a respeito do sem forma e o desconforto que sente com o conceito do nada que isso envolve vão aparecendo à medida que o diálogo prossegue. Essas reservas já haviam aparecido anteriormente de maneira preliminar quando afirmava que a centelha residual da centelha divina presente por meio do logos na interioridade humana jamais poderia ser apagada. (61) Hisamatsu concorda com Tillich ao afirmar que essa centelha residual pode se entendida como a potencialidade para o despertamento do eu sem forma. Mas, por sua vez, Tillich insiste na afirmação de que a atualização dessa centelha, que ele relaciona intimamente com a idéia de Eckhart do nascimento de Deus na alma, toma a forma do nascimento do logos, dizendo que se trata da "forma por meio da qual o sem forma se transforma em forma". (62) No debate, bem como ao longo de sua teologia, o termo logos refere-se ao princípio da forma estruturadora da mente divina, da mente humana e da natureza. (63) Em resumo, diríamos que Tillich não aceita a idéia disso que não tem forma nem o nada além de qualquer necessidade de expressão formal, acima das antinomias da mente. Nesse caso, diverge da experiência sem forma do zen, de Eckhart e de Boheme. A incapacidade de Tillich para apreciar os estados sem forma anteriores ao impulso para a forma e, até mesmo, sem esse impulso, não nos deve surpreender uma vez que tais recusas fazem parte de sua teologia trinitária. Para ele, a dimensão do abismo de Deus e o fogo caótico e escuro de Boheme precisam se expressar e se completar no Logos considerado luz e momento comunicável da vida divina. (64) Somente assim a antinomia entre escuridão e luz pode ser equilibrada em mútua completação por meio do Espírito no interior da trindade e ser precondição e possibilidade de síntese na vida criada. Este conceito perfeitamente equilibrado da divindade leva Tillich a rejeitar o quarto momento precedente da vida divina que, poderia ser chamado de quarto elemento. A ausência desse elemento dificulta-lhe a plena apreciação da experiência religiosa do nada, livre de qualquer expressão, em oposição às tradições orientais bem como às tradições ocidentais apofáticas das quais, até certo ponto, sua teologia depende. No contexto dos esforços de Tillich para delinear o Deus além do Deus do teísmo, sua incapacidade de aceitar o sem forma priva-o do recurso teológico que lhe facilitaria a tarefa de identificar a dimensão do divino além da trindade sem a compulsão pela forma tanto no interior da vida divina como fora dela. Sem dúvida, a teologia trinitária de Tillich é uma construção poderosa e atraente. Fundamenta-se na experiência humana imediata da vida trinitária. Contudo, se o momento preliminar da divindade, se o abismo que deseja a forma para se realizar, pudessem dar lugar ao abismo mais profundo que não precisa dessas coisas, a experiência da alma nesse abismo aliviaria as exigências trinitárias e nos daria aqui e agora certa bemaventurança realizada. Esse descanso estaria além da alegada proliferação fragmentária da vida humana na vida trinitária vivida no tempo e contribuiria para a bemavenurança da vida humana e divina na eternidade. A perda momentária presente da distinção entre o humano e o divino no precedente nada ofereceria ao místico a mais profunda perspectiva religiosa possível e lhe faria sensível ao seu engajamento em seu ambiente religioso e cultural, decorrente, pois, dessa identidade com sua fonte.Tillich, Eckhart, Boheme e a quaternidade duplaO pensamento trinitário de Tillich não lhe permite adotar a experiência de Jacob Boheme. (65) Boheme fruía o momento de identidade com o que chamava de "o Uno" ou o ungrund além da antinomia viva da trindade com suas "causas e fundamento". (66)Quando, porém, retornava à aridez do mundo saindo daquela unidade que antecedia a trindade, (67) Boheme levava consigo a desconfiança de que os conflitantes opostos divinos não haviam sido eternanemente superados no interior da vida divina, em oposição ao que Tillich pensava ter achado na sua trindade equilibrada. No mundo particular do Pai considerado poder masculino e escuro e no inferno onde se confinavam os anjos decaídos continuava o conflito residual com o Logos, poder do calor, da luz e da comunicação.(68) A consciência humana torna-se, então, o único agente no universo capaz de primeiramente perceber e, depois, de resolver na história a auto contradição que a divindade não conseguira resolver na eternidade. (69) O sentido da história e do sofrimento humano em seu contexto acaba sendo o processo de redenção mútua e de crescimento entre o divino e o humano por insistência da própria divindade. Essa cosmologia significa também que a divindade criou a consciência humana a partir das necessidades de sua própria inconsciência como única agência por meio da qual seus próprios opostos poderiam alcançar a harmonia redentora. Boheme não nega a experiência suprema da dependência da divindade em face da humanidade com a finalidade de sua integração que seria, afinal, a integração da própria humanidade. O Deus criador dependeria enormemente da humanidade.Conquanto Tillich tenha grandemente dependido do pensamento de Boheme para a formulação de sua teologia trinitária, mostrou-se nos seus primeiros escritos oposto à idéia de qualquer mudança na divindade provocada por sua relação com a humanidade. Sua rejeição de todas as formas de teologia do processo baseava-se na convicção de que um Deus predestinado ou condicionado não seria Deus. (70) O Deus de Boheme está destinado a resolver seu problema interno no âmbito humano e, assim, depende do êxito da humanidade para operar o acordo entre os opostos divinos na história, coisa que completaria tanto a história como a divindade num processo orgânico unificado. Enquanto predecessor de Hegel, o pensamento de Boheme surge como forma radical de teologia do processo. (71) É preciso reconhecer que Tillich, no final de sua sistemática, introduz a idéia de essencialização. (72) Concordava com a teologia do processo e com Boheme dizendo que a divindade dependia da humanidade para a plenitude de sua riqueza e bem-aventurança. As coisas que se tornam essenciais no tempo somam-se ao ser e à substância do divino e se transformam em bem-aventurança além do tempo. Na verdade, "essa essencialização é o conteúdo da bênção divina". (73) Já no final de sua obra, Tillich admite que se a divindade nada tivesse a ganhar na dimensão do tempo, a empresa humana seria "um jogo divino sem nenhum interesse para Deus". (74) Em termos do paradigma quaternário, Tillich percebe que Boheme completa Eckhart ao fazer da interioridade humana o local onde a divindade se completa no tempo e se preserva na eternidade.Essa alteração substancial em relação à primeira fase de sua teologia levou-o a abandonar o provincianismo cristão aí presente. O sinal dessa reviravolta mostra-se na negação da necessidade cristã de afirmar a realização definitiva do kairos dentro da história. (75) Essa afirmação relativiza a sua cristologia à medida que considera importante o evento Cristo mas não a realização plena e final do essencial na história. Ao mesmo tempo amplia o mandato do teólogo cristão a fim de que veja nas outras religiões manifestações e variantes essenciais do que ocorre na sua própria experiência. Se o pensamento de Tillich tivesse continuado a se desenvolver nesta linha liberalizadora, sua apropriação do pensamento quaternário de Eckhart e de Boheme teria produzido uma teologia muito mais abrangente a respeito das relações entre o divino e o humano superando as dificuldades existentes em seu pensamento trinitário e logocêntrico. Essa abrangência precisaria levar em conta o mito da quaternidade dupla.A aceitação do pensamento de Eckhart a respeito da identidade com o quarto elemento no Deus além do Deus do teísmo e da trindade produziria o tipo de compaixão capaz de levar a humanidade a realizar o papel que Boheme imaginava, ou seja, a realização do humano e do divino por meio da resolução da eterna auto-contradição divina no âmbito da história humana. Em resumo, a dupla quaternidade relacionaria o ingresso mais profundo na vida divina com a aceitação mais graciosa da divindade por meio da encarnação histórica na consciência humana de maneira universal. Nesta época em que a humanidade cheia de temores não quer saber de que maneira poderia ser salva por suas religiões, mas como se livrar delas, o aprofundamento e a extensão do sentido do sagrado poderia ser valioso recurso para a aceitação de uma redenção mais graciosa da divindade dentro da história humana, se é que tal história vai ainda continuar a existir.
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