O casarão revive. E como ficou bonito. Não é casa fina, de
luxo, mas retrata a época e o arrojo de quem sabe o que quer e sabe querer. O
casarão está em festa. Vão-se as teias, os cupins, o mofo e as portas se abrem,
de par em par, como não acontecia há muito tempo, anos. As portas se abrem no
dia de minha mãe. Tento senti-la presente. Ah, só tentativa... Tanta gente,
falas, luzes, música não dão espaço para devaneios e visões. Já era sombra, na
minha memória, o velho sobrado, “o que o fogo lambeu”... “casa velha, triste e
escura”..., que “só a saudade ainda vive nela”... Hoje, nasce das cinzas. “A
casa no seu lugar”, como sonhei um dia. E como ficou bonita.
Sobradão de muitas portas e janelas alinhadas, em arcos,
detalhes em ferro e vidro. Pequenas sacadas dão graça e leveza à fachada.
Abacaxis, ao alto, imitam os de porcelana. Telhas de ardósia, vindas do velho
mundo, se perderam no tempo e já não fazem falta. Ontem: pela porta da entrada,
à esquerda do prédio, estamos na sala de visitas e dá-se de frente com a velha
e imponente escada em madeira. E me lembro da chapeleira, mobília austríaca, em
palhinha, cadeiras de balanço e o piano alemão. Sob a escada, depósito de
guardados. Nas paredes retratos de família e um painel pintado por Lídia. Nas
janelas cortinas de filé. No ar, acordes que emocionam, de La Madona, música do
senhor da morada, o meu avô. Ele emocionava-se ao ouvi-la tocada ao piano,
tocada pela filha Lídia. Hoje: espaço para exposições de artes plásticas. A
sala é grande, pé direito alto, piso com pequena sobra do antigo assoalho de
tábuas corridas. Desapareceram os móveis e o piano. As paredes brancas
receberão pinturas em telas, a sala vazia abrigará obras de arte que,
temporariamente, passarão por lá. A velha escada deu seu lugar a outra bonita e
moderna, de madeira e ferro. Ontem: A peça ao lado, que se assemelha à outra,
traz a presença da família. Foi sala de jantar. Mesa longa, cadeiras de
espaldares altos, cristaleira, cadeira de balanço, filtro bojudo em suporte de
ferro, relógio de parede, que hoje canta em minha sala. Na mesa, avó Amélia,
avô Baís, tia Lídia, tio Orfeu e eu, menina. Os outros filhos já possuíam suas
moradas. Amélia, embora envelhecida, mostrava feições delicadas, belos olhos,
doce sorriso. Foi a preferida. Povoei sua solidão com minhas brincadeiras, meus
livros, minha amizade. Gostava de vê-la alegre.
Avô Baís, na lembrança, me parecia figura idosa, cabelos
embranquecidos, calado, olhos azuis, pele clara. Era distante, solitário e
sobretudo misterioso. Orfeu, boa alma, simpática figura humana, se recolhera
num mun- do de mágoas, só seu. Lídia, inteligente e buliçosa, no seu peculiar
desequilíbrio, viveu a perseguir seus sonhos. Artista que era, tentava crescer.
Eu a via, de jaleco branco, boina preta, palheta em punho a pintar telas e
paredes, a tocar piano e a cantar com seu violão. Dedilhava ainda o acordeom e
a harpa. Eu, a menina que se transportava para o Sítio do Pica-pau-Amarelo, de
Lobato, quando corria pelo imenso quintal e convivia, com minha avó, a vida do
sobradão. Na cozinha, despensa, jardim ou quintal, eu a seguia e fazíamos
biscoitos, pães, colhíamos flores e frutos, legumes, ovos e coisas mais. Canto
de sabiá, algazarra de periquitos, grito de anhuma e de angolas, cacarejar de
galinhas, pio de outras aves, o latir de Milão – eram ruídos comuns no
dia-a-dia. Mas o som que mexia comigo, me enchia de alegria, na medida em que
crescia me fazia correr desabalada, ao seu encontro, era o apito da
maria-fumaça. Ciente de sua beleza, ela surgia na dobra do caminho e dominava o
espaço com aquele grito de dor e aflição. Gemido de quem se consome num eterno
incêndio. Defendia-se a jogar fogo e fumo para o alto, num espetáculo que me embevecia.
Momento de espanto e encantamento. Hoje: sala de jantar vira museu. Na sua
porta lê-se: Museu Lídia Baís e o ambiente é dela. Pequena cama onde passou
seus últimos momentos, ao lado cadeira de embalar de minha avó e filtro do
sobradão, no espaço nobre. À esquerda, seu lado de pintora e à direita o canto
da música: violão, harpa e duas cadeiras do casarão.
Nas paredes dois painéis: a santa Ceia e a alegoria de Joana
d’Arc, a guerreira, em seu cavalo branco. O rosto da santa é o rosto de Lídia.
Sete quadros da artista, nas paredes, fazem-na mais presente. Entre eles a
sagrada Ceia, na qual se vê: ela ao lado de Cristo. Na pequena chapeleira estão
os seus chapéus. Envolvida naquele espaço ouço sua voz: “Vocês vão ficar na história
por minha causa”. Todos se riam, faziam mofa dessa fala, que até hoje se repete
dentro de mim.
O ontem continua dentro de mim. A soma de ambos, ontem e
hoje, trazem-me equilíbrio inesperado. A saudade dói menos. Cada canto guarda
sua história.
(Nelly Martins)
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