terça-feira, 25 de março de 2014

Crônica: O Casarão - Nelly Martins

O casarão da Afonso Pena

O casarão revive. E como ficou bonito. Não é casa fina, de luxo, mas retrata a época e o arrojo de quem sabe o que quer e sabe querer. O casarão está em festa. Vão-se as teias, os cupins, o mofo e as portas se abrem, de par em par, como não acontecia há muito tempo, anos. As portas se abrem no dia de minha mãe. Tento senti-la presente. Ah, só tentativa... Tanta gente, falas, luzes, música não dão espaço para devaneios e visões. Já era sombra, na minha memória, o velho sobrado, “o que o fogo lambeu”... “casa velha, triste e escura”..., que “só a saudade ainda vive nela”... Hoje, nasce das cinzas. “A casa no seu lugar”, como sonhei um dia. E como ficou bonita.
Sobradão de muitas portas e janelas alinhadas, em arcos, detalhes em ferro e vidro. Pequenas sacadas dão graça e leveza à fachada. Abacaxis, ao alto, imitam os de porcelana. Telhas de ardósia, vindas do velho mundo, se perderam no tempo e já não fazem falta. Ontem: pela porta da entrada, à esquerda do prédio, estamos na sala de visitas e dá-se de frente com a velha e imponente escada em madeira. E me lembro da chapeleira, mobília austríaca, em palhinha, cadeiras de balanço e o piano alemão. Sob a escada, depósito de guardados. Nas paredes retratos de família e um painel pintado por Lídia. Nas janelas cortinas de filé. No ar, acordes que emocionam, de La Madona, música do senhor da morada, o meu avô. Ele emocionava-se ao ouvi-la tocada ao piano, tocada pela filha Lídia. Hoje: espaço para exposições de artes plásticas. A sala é grande, pé direito alto, piso com pequena sobra do antigo assoalho de tábuas corridas. Desapareceram os móveis e o piano. As paredes brancas receberão pinturas em telas, a sala vazia abrigará obras de arte que, temporariamente, passarão por lá. A velha escada deu seu lugar a outra bonita e moderna, de madeira e ferro. Ontem: A peça ao lado, que se assemelha à outra, traz a presença da família. Foi sala de jantar. Mesa longa, cadeiras de espaldares altos, cristaleira, cadeira de balanço, filtro bojudo em suporte de ferro, relógio de parede, que hoje canta em minha sala. Na mesa, avó Amélia, avô Baís, tia Lídia, tio Orfeu e eu, menina. Os outros filhos já possuíam suas moradas. Amélia, embora envelhecida, mostrava feições delicadas, belos olhos, doce sorriso. Foi a preferida. Povoei sua solidão com minhas brincadeiras, meus livros, minha amizade. Gostava de vê-la alegre.

Avô Baís, na lembrança, me parecia figura idosa, cabelos embranquecidos, calado, olhos azuis, pele clara. Era distante, solitário e sobretudo misterioso. Orfeu, boa alma, simpática figura humana, se recolhera num mun- do de mágoas, só seu. Lídia, inteligente e buliçosa, no seu peculiar desequilíbrio, viveu a perseguir seus sonhos. Artista que era, tentava crescer. Eu a via, de jaleco branco, boina preta, palheta em punho a pintar telas e paredes, a tocar piano e a cantar com seu violão. Dedilhava ainda o acordeom e a harpa. Eu, a menina que se transportava para o Sítio do Pica-pau-Amarelo, de Lobato, quando corria pelo imenso quintal e convivia, com minha avó, a vida do sobradão. Na cozinha, despensa, jardim ou quintal, eu a seguia e fazíamos biscoitos, pães, colhíamos flores e frutos, legumes, ovos e coisas mais. Canto de sabiá, algazarra de periquitos, grito de anhuma e de angolas, cacarejar de galinhas, pio de outras aves, o latir de Milão – eram ruídos comuns no dia-a-dia. Mas o som que mexia comigo, me enchia de alegria, na medida em que crescia me fazia correr desabalada, ao seu encontro, era o apito da maria-fumaça. Ciente de sua beleza, ela surgia na dobra do caminho e dominava o espaço com aquele grito de dor e aflição. Gemido de quem se consome num eterno incêndio. Defendia-se a jogar fogo e fumo para o alto, num espetáculo que me embevecia. Momento de espanto e encantamento. Hoje: sala de jantar vira museu. Na sua porta lê-se: Museu Lídia Baís e o ambiente é dela. Pequena cama onde passou seus últimos momentos, ao lado cadeira de embalar de minha avó e filtro do sobradão, no espaço nobre. À esquerda, seu lado de pintora e à direita o canto da música: violão, harpa e duas cadeiras do casarão.
Nas paredes dois painéis: a santa Ceia e a alegoria de Joana d’Arc, a guerreira, em seu cavalo branco. O rosto da santa é o rosto de Lídia. Sete quadros da artista, nas paredes, fazem-na mais presente. Entre eles a sagrada Ceia, na qual se vê: ela ao lado de Cristo. Na pequena chapeleira estão os seus chapéus. Envolvida naquele espaço ouço sua voz: “Vocês vão ficar na história por minha causa”. Todos se riam, faziam mofa dessa fala, que até hoje se repete dentro de mim.

O ontem continua dentro de mim. A soma de ambos, ontem e hoje, trazem-me equilíbrio inesperado. A saudade dói menos. Cada canto guarda sua história.
(Nelly Martins)

 

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