Se no meu momento definitivo de devolver ao pó esta ferramenta que dele veio, assistido da necessária lucidez para reesquadrinhar um existir futuro, certamente eu haveria de estabelecer profundas mudanças no modo de usufruí-lo.
Jamais reclamaria do tempo. Quando as nuvens vertessem do céu as lágrimas que o chão não sabe chorar em sua bruteza, eu apararia as mãos agradecidas pelo frescor da chuva. Jamais haveria de murmurar contra o rigor dos sóis arregalados de dezembro, a acrescentar mais luzes aos Natais que me fossem dados comemorar.
Nunca perderia uma noite de sono a pensar na realidade que poderia ter sido. Se arrependimento houvesse, fosse tão só pelo que deixei de fazer. Iria me contentar exclusivamente com as porções que a vida me trouxesse no seu milagre diário. Viveria em plenitude. Romperia a passos firmes quaisquer que fossem os trechos mais difíceis da estrada. Da mesma forma, acolheria de braços e coração abertos a saudade que me restasse de alguma paixão que valesse a pena.
Deixaria na garagem os muitos cavalos do carro. Trocaria-os por um único cavalo, de carne, crina e cascos, que me conduzisse por verdes pastos e aos remansos de águas serenas.
Frequentaria mais botecos do que frequentei. Principalmente os mais despojados, onde se afogam as mágoas das maiorias. Defronte a um balcão, preencheria o que me faltou nesta existência: as preciosas conversas que se jogam fora nesses recintos tão democráticos.
Aprenderia com os bêbados as verdades que deixei de aprender por minha condição de abstêmio convicto. O espírito requer esses espaços de lazer descompromissado. Pela porta de um bar entram e saem, sem pedir licença, as notícias feitas de carne e osso. As mentiras que consolam e, acima de tudo, é ali que nascem os versos e as canções que somente os boêmios sabem entoar e compor.
Assistiria menos televisão e por nada perderia os forrós, preferindo os mais animados pela gente do povo. A dança tem sua lição própria a nos ministrar ou, quando não, ensinar-nos a difícil arte de sentir os pés no chão.
A música, só ela, pode aliviar o imenso peso deste tempo rotulado por códigos de barra. Desta era que confiou a memória aos computadores e o coração à internet.
Se assim puder passar pelo mundo, no momento de recostar o novo corpo que for dado para dessa forma viver, por doação divina, por certo devolvê-lo-ei mais gasto do que o presente.
Se me fosse dada uma nova chance, como habitante deste mundo, eu haveria de amar com muito menos escrúpulos. Por conseguinte, minha alma requereria longo período de sono no travesseiro dos céus. Só assim esqueceria de todas as paixões que houvesse espontânea e conscientemente cultivado na Terra.
Em resumo, tudo em minha vida seria diferente em quase tudo. Mas a esta altura, como que moldado em chumbo, em nada posso mudar-me. Se eu vivesse uma outra vez, não escreveria uma só linha. Não tentaria aprisionar nenhum momento. Nem mesmo os mais felizes.
Deixaria cada minuto voar solto como um pássaro livre para que, alegre ou triste, pudesse ouvir a verdadeira canção da vida.
Geraldo Generoso
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