sexta-feira, 27 de março de 2009

Utopia versus Realidade - A/0288

Utopia versus Realidade

Rodrigo C. A. Lima*

O debate sobre transgênicos é um caso típico da relação entre o universo utópico e o plano da realidade. A questão regulatória dentro do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, que visa criar regras para o movimento entre países de organismos vivos modificados (OVMs), como sementes, grãos, enzimas, bactérias e outros microorganismos, é um exemplo interessante de como os países, organizações não-governamentais, entidades do setor privado e organizações da sociedade civil se movimentam em torno de um assunto tão polêmico.

Um dos temas discutidos nas reuniões do Protocolo é a criação de um regime de responsabilidade e compensação por danos causados pelos OVMs ao uso e a conservação da diversidade biológica. Dentro dessa negociação, muitas vezes parte-se do pressuposto de que todo e qualquer produto derivado da biotecnologia impõe um perigo iminente, como se representassem um risco potencial para a biodiversidade, para a saúde humana, para os animais e para a sociedade. Por essa razão, algumas propostas defendem que é preciso tratar dos OVMs considerando os potenciais riscos que podem trazer, quando na realidade, a possibilidade de responsabilização depende da efetiva ocorrência de um dano sério, passível de ser mensurado e quantificado.

No último dia 6 de fevereiro o Itamaraty reuniu os Ministérios envolvidos no debate sobre biotecnologia e a sociedade civil para tratar da posição brasileira que será defendida na reunião do Protocolo que ocorrerá na cidade do México durante a semana do Carnaval. Quatro pontos ficaram claros em relação à posição brasileira: 1) nenhuma regra deve ser criada com o objetivo de barrar o desenvolvimento da biotecnologia; 2) a criação de seguros com vistas a cobrir possíveis danos dos OVMs não é necessária para atingir os objetivos do Protocolo e poderá criar novos custos para produtores, transportadores, traders, importadores e consumidores, o que deve ser rejeitado; 3) somente danos à biodiversidade, levando-se em conta possíveis danos à saúde humana podem ser considerados; 4) as regras não devem ensejar barreiras desnecessárias ao comércio.

Apesar das críticas a essa posição, que no entender de muitas pessoas coloca o Brasil na contramão da biossegurança, é possível enxergar que felizmente o governo brasileiro passou a tratar essa negociação com uma visão realista. É sempre bom enfatizar que os OVMs sujeitos a movimentos transfronteiriços são produtos que passaram por rigorosos processos de análise de risco. Além disso, todos os países têm acesso às informações sobre quais OVMs foram aprovados nos países exportadores, o que é uma ferramenta de transparência importante.

A demanda por seguros denota o quanto as discussões no contexto do Protocolo ganharam contornos irrealistas. Discute-se, por exemplo, que os produtores, transportadores, armazenadores, exportadores, desenvolvedores da tecnologia e importadores teriam que fazer seguros contra possíveis danos dos OVMs. Considerando que não é fácil rastrear cada grão de soja vendido no mundo, ou as enzimas e bactérias microscópicas que provavelmente serão utilizadas na fabricação de queijos, como exigir seguros de todas essas pessoas, lembrando que se discute um período de até 20 anos para que o dano seja reclamado?

É realmente necessário criar seguros para proteger a biodiversidade? Esses seguros não trariam aumento de custos de produção e dos alimentos? Seria simplesmente impossível operacionalizar um seguro nesses moldes, sem contar que até hoje não existem apólices dessa natureza, mesmo porque não se sabe quais danos deveriam ser cobertos.

Partindo-se do cenário acima, é muito confortante observar que o Itamaraty passou a defender uma negociação equilibrada. Não foi a postura adotada pelo Brasil que evitou uma decisão na reunião de Bonn em 2008, mas sim, o intenso debate entre o Japão, que passou a defender regras ponderadas sobre o tema, e a Malásia, que luta por decisões rigorosas. O sentimento claro no final daquela reunião era de que a negociação estava desbalanceada, e é preciso rever certos pontos para não ir além dos propósitos do Protocolo, criando barreiras à biotecnologia e tornando-o um tratado de difícil cumprimento.

A reunião do México certamente dará espaço para as propostas idealistas e realistas. Se as propostas contrárias aos OVMs forem mais fortes, é muito provável que anos e anos de discussões e negociações levem a mais um tratado ambiental sem aplicabilidade, não pelo fato de ser pouco importante, mas porque no mundo em constante movimento no qual vivemos, prevaleceu o viés utópico, desmerecendo as realidades de nosso dia a dia. Espera-se, no entanto, que predomine o bom senso e a clareza quanto ao grande objetivo que é preservar a biodiversidade por meio de regras que permitam reparar danos quando eles sejam efetivamente sérios, mensuráveis e quantificáveis.

* Advogado, gerente geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE) e membro do Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB).

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