O Amor é a base da Teologia de João
A maior parte dos críticos do Novo Testamento concorda em que as epístolas joaninas compartilham uma autoria comum com o quarto evangelho. Deste modo, a despeito das críticas levantadas por Holtzmann, Wilson e Dodd, podemos com segurança falar de uma teologia joanina que tem por Background as Epístolas, o Evangelho e o Apocalipse tradicionalmente atribuídos à sua pena. Assim, será a partir deste prisma que consideraremos a temática do amor conforme exposta em I João. O Problema do dualismo em João é reconhecidamente complexo, dispondo ainda hoje de pouquíssima literatura a respeito. O. Böcher, em Der johanneische Dualismus im Zusammenhang des nachbiblischen Judentus (1965), encontra o fundo contextual do dualismo joanino no Antigo Testamento, rejeitando assim qualquer possível influência de escritos judaicos posteriores e não considerando o dualismo helênico que, ao nosso ver não deveria estar descartado do cenário da teologia de João, ainda que seja tão somente em termos de uma refutatio.Pois bem, enquanto no evangelho e no Apocalipse parece haver o predomínio de um dualismo vertical - o mundo superior de cima e o inferior de baixo - a epístola insiste num dualismo horizontal já no presente tempo da redação. Os sinóticos também apresentavam tal forma dualista, porém, contrastando o mundo presente com o mundo vindouro. Em João, no entanto, não encontramos tal perspectiva extremamente dicotomista dividindo o hoje e o amanhã escatológico. Em sua primeira epístola, o mundo cósmico, embora representando tudo o que é contrário a Deus e a Cristo (2:15 e 16; 4:5; 5:4 e 5), torna-se ele mesmo o objeto maior do amor divino (2:2, 4:9 e 14) e ainda o ambiente no qual convivem juntos os "filhos de Deus e os filhos do Diabo"(3:10), ou, aqueles que andam na luz e na retidão (dikaiosunh) com os que amam as trevas (skotia) e a injustiça (adikia). É evidente que isto também espelha de modo adequado a cosmovisão exposta no evangelho e no Apocalipse, embora como dissemos, não é um dualismo horizontal o que predomina nos escritos originais.
Tomando tais alusões ao dualismo horizontal, presente na primeira epístola joanina, poderemos compreender que a problemática inserida em todo o escrito, especialmente no capítulo 4, é: "Como identificar os que procedem de Deus e os que não procedem?""Amados, não deis crédito a qualquer espírito, antes, provai os espíritos, se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo afora."(4:1).Ao que nos indica o texto, segundo o pensamento e a teologia joanina, seguir a um "falso profeta", ainda que por engano, equivale a romper relações com Deus e com a salvação por ele oferecida. A adesão a qualquer seguimento herético reflete a quebra da aliança e da adesão ao Deus verdadeiro. Sendo assim, o desmascaramento dos falsos mestres, com a conseguinte revelação dos legítimos Filhos da Luz se fazia mais do que urgente. Afinal, o anticristo, pai de todos os apóstatas, já estava operando em sua estratégia de engano (4:3). É mister, no entanto, lembrar ao leitor moderno que os recentes debates acerca do pluralismo religioso e o encontro das religiões não estavam em voga no contexto em que dita epístola foi produzida. Se pretendemos recuperar o pensamento original do autor, devemos ter em conta a imagem de um fiel pastor cuidando de um rebanho, cujas ovelhas já conheceram a Luz, mas correm o risco de se desviarem dela como outros o fizeram (4:2, 18 - 20).Qual é pois, segundo João, a característica básica dos verdadeiros cristãos? A resposta a esta pergunta perpassa primeiramente uma via contemplativa, firmando-se num esquema prático e empiricamente identificável. Em primeiro lugar, fala-se da permanência constante do homem em Deus, para que Deus, com tudo que lhe diz respeito possa permanecer no homem. Nas palavras do apóstolo: "Nisto conhecemos que permanecemos nele e ele em nós"(4:13), uma possível alusão ao discurso da videira e os ramos na segunda metade do evangelho.O tema do amor (Agaph) predomina na epístola, como predicativo daqueles que procedem de Deus. Tomando o amor a Deus como um pressuposto pacífico dos destinatários, a epístola não traz nenhum imperativo que sugira aos homens amarem ao Pai, ao Filho ou ao Espírito.. Pelo contrário, trabalha-se com a hipótese de que todos, de uma forma ou de outra, pretendem que amam a Deus e, desta forma, já pertencem a ele. Que o escrutínio, pois, em busca de uma pertença deveras eficaz, parta, em primeira instância de uma auto-análise individual que o autor então sugere: “Aquele que ama a Deus [ ou que julga amá-lo], ame também seu irmão” (4:21).Mas, seria o amor um atributo exclusivo daqueles que são da luz e da justiça? Uma análise sincera do texto somada a outras passagens parece indicar-nos que “não”.Enquanto sentimento inerente ao ser humano, o amor pode pertencer a todos os homens, quer sejam aliados do Cristo ou do Anticristo. Notemos que a teologia joanina possibilita a este amor-sentimento objetos que não coadunam com a permanência em Deus: pode-se amar ao mundo (2:15), as trevas (João 3:19) ou até mesmo as glórias mundanas (João 12:43). E confiando na historicidade do relato de Mateus 5:47, podemos imaginar João entre aqueles que ouviram Jesus dizer: “Se amais apenas os que vos amam, que fazeis de extraordinário? Não fazem os pagãos a mesma coisa?”. Em outras palavras, até mesmo os falsos profetas e os anticristos poderiam amar aos seus irmãos ou adeptos. A busca joanina pela diferença básica entre os de Deus e os do mundo não se vê, pois, satisfeita num único discurso sobre o “amar ao irmão”. Não que ele abandone o tema ou passe a considerá-lo de somenos importância, mas que desligado dos outros temas da justiça e da fé ele se torna incompleto. Embora nem todos os que amam procedam da luz, todos os que procedem da luz necessariamente amam. E não somente isto, mas praticam a justiça e mantêm a fé. Como vimos, o amor não pode por um lado ser um tema abandonado, nem por outro, um discurso isolado. Se somos cristãos de fato, a mais autêntica cristologia bíblica deverá acompanhar este amor e a importância dada aos demais mandamentos da lei de Deus deverá testemunhar de nossa fidelidade ao Bem Maior, que é Cristo Jesus. Não amamos porque somos naturalmente bons, mas porque nascemos da graça. Não cumpriremos a lei para fazer-nos justos, mas porque ele nos justificou com sua justiça. Não brilharemos porque temos luz própria, mas porque refletimos o Sol da Justiça.
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