Honra e Dignidade no dia 25 de Agosto
“Tenho saudade de uma época que não vivenciei, lembranças de um tempo que mesmo sem fazer parte do meu passado, marcou presença e deixou legado. Esse tempo, onde a palavra valia mais do que um contrato, onde a decência era reconhecida pelo olhar, onde as pessoas não tinham vergonha da honestidade, onde a justiça cega não se vendia nem esmolava, onde rir não era apenas um direito do rei..." (Rui Barbosa)
Neste dia do Soldado quero reproduzir, novamente, a mensagem que postei no dia 25.08.2009 depois ler e me emocionar com o texto de um grande amigo o Cap Eng Emerson Rogério de Oliveira (EsSA/1963), publicado no Jornal “O SUL”, de 04.10.2008. O Cap Emerson escreveu, na oportunidade, uma crônica intitulada “Atitudes Dignas” a respeito da conduta de um querido amigo comum durante a cerimônia de entrega de medalhas, realizada no dia 25.08.2005, em Brasília.
O corajoso ato do Coronel Cícero Novo Fornari, grande incentivador e colaborador do Projeto Aventura Desafiando o Rio-mar, fortaleceu, ainda mais, nossos laços de amizade e recorri a ele, quando escrevia o Livro do Rio Negro, para revelar “Uma Fraude Chamada Tatunca Nara” onde ele rebate a cada uma das falaciosas afirmações de Tatunca ou melhor Hans Gunther Hauck, fugitivo da justiça alemã.
- Atitudes Dignas
Fonte: Cap Eng Emerson Rogério de Oliveira
"Senhor, umas casas existem, no vosso reino onde homens vivem em comum, comendo do mesmo alimento, dormindo em leitos iguais. De manhã, a um toque de corneta, se levantam para obedecer. De noite, a outro toque de corneta, se deitam obedecendo. Da vontade fizeram renúncia como da vida. Seu nome é sacrifício. Por ofício desprezam a morte e o sofrimento físico. Seus pecados mesmo são generosos, facilmente esplêndidos. A beleza de suas ações é tão grande que os poetas não se cansam de a celebrar. Quando eles passam juntos, fazendo barulho, os corações mais cansados sentem estremecer alguma coisa dentro de si. A gente conhece-os por militares...
Corações mesquinhos lançam-lhes em rosto o pão que comem; como se os cobres do pré pudessem pagar a liberdade e a vida. Publicistas de vista curta acham-nos caros demais, como se alguma coisa houvesse mais cara que a servidão. Eles, porém, calados, continuam guardando a Nação do estrangeiro e de si mesma. Pelo preço de sua sujeição, eles compram a liberdade para todos e os defendem da invasão estranha e do jugo das paixões. Se a força das coisas os impede agora de fazer em rigor tudo isto, algum dia o fizeram, algum dia o farão. E, desde hoje, é como se o fizessem. Porque, por definição, o homem da guerra é nobre. E quando ele se põe em marcha, à sua esquerda vai coragem, e à sua direita a disciplina".
(Moniz Barreto - Carta a El-Rei de Portugal, 1893).
Relembro um fato inédito que chamou a atenção dos presentes à cerimônia de entrega de medalhas, realizada no dia 25.08.2005, por ocasião das comemorações do Dia do Soldado, em Brasília. Com a presença de Ministros de Estado, Comandantes das Forças Armadas, convidados e familiares, foi entregue a Medalha do Pacificador.
Depois do dispositivo pronto, um senhor idoso, apoiado em uma bengala, vestindo roupas escuras e gravata preta, portando em seu peito a Medalha do Pacificador, atravessou toda a frente do dispositivo até o local onde estava a autêntica espada do Duque de Caxias. Com lágrimas nos olhos, retirou a medalha do peito, elevou ao alto, à frente, à esquerda e à direita. Depois de beijá-la, colocou-a no seu antigo estojo e a depositou aos pés da coluna onde estava a espada de Caxias. Voltou, passou silenciosamente pela frente do dispositivo, indo sentar-se na arquibancada de cimento, diante do palanque.
Perguntado por que devolveu a medalha, respondeu que ela havia sido desonrada e desprezada, em flagrante desrespeito à figura do insigne patrono do Exército, o Duque de Caxias, por já ter sido distribuída a pessoas que não mereciam tal honra. Disse mais, que, se a recebeu num ato solene, seria justo devolvê-la também num ato solene.
Esse senhor idoso é o Coronel de Infantaria Reformado Cícero Novo Fornari. Na época tinha 74 anos, desses, 43 de serviços prestados ao Exército e à Pátria.
A imprensa divulgou o fato em poucas linhas, mas eu o destaquei pela sua atitude digna e corajosa em meu livro Trincheiras Abertas, que lhe chegou às mãos por um amigo. Em dia recente, ligou-me de Brasília, onde mora, para agradecer-me e perguntar-me se eu tomara conhecimento do que lhe aconteceu depois daquele fato. Respondido que não, contou-me que, durante um passeio com a esposa pelas ruas de Brasília, resolveu entrar em uma loja de antiguidades - uma mistura de velhos objetos com brechó. Apoiado pela bengala, visitava prateleiras e balcões, olhando as mais variadas quinquilharias e artigos ali expostos, parando em frente a uma redoma de vidro onde estavam diversas medalhas militares, cuidadosamente alinhadas num feltro verde. Atento, o dono da loja aproximou-se, cumprimentou-o e passou a discorrer sobre o histórico das medalhas, as suas origens, quem as mereciam..., e, por fim, perguntou se ele desejava comprar uma. Apesar de não ter obtido resposta, sabia que iria negociar com aquele homem calado, pois já vira aquele brilho nos olhos de muitos clientes. Abriu a tampa da redoma e continuou com a explicação, mostrando-lhe a medalha da Primeira Guerra Mundial, da Segunda, do Serviço Amazônico...
Tentava cativar aquele cliente que parecia paralisado, que ainda não abrira a boca, mas também não tirara o brilho dos olhos, e, então, o vendedor apontou o dedo para uma Medalha do Pacificador e perguntou se ele lembrava do caso daquele Coronel do Exército que devolveu a sua Medalha do Pacificador numa cerimônia em Brasília, depositando-a junto à espada de Caxias, sob o olhar e o silêncio dos presentes.
O Coronel levou um choque. Ergueu a cabeça para aquele homem gentil e educado, que evocava lembranças de um fato da sua vida. Valeu-se da bengala para melhor firmar as pernas trêmulas das muitas jornadas, e contendo a emoção falou pela primeira vez desde que entrara naquela loja:
“Não me lembro, mas deve ter sido um velho ‘gagá’, meio maluco, pra fazer isso!”
Surpreso, o dono da loja retrucou-lhe com veemência, dizendo que ele estava enganado, pois o Coronel era um homem honrado e tomou uma atitude digna naquele dia, uma vez que essa medalha passou a ser concedida a pessoas que não preenchiam os requisitos para tal, perdendo, assim, o seu valor.
O Coronel sorriu, mostrou-lhe a identidade, e disse-lhe:
“Pois saiba o senhor que esse Coronel está à sua frente. Fui eu quem devolveu a medalha”.
O coitado do homem ficou pasmo, olhou para a identidade, olhou para o Coronel e, num gesto largo e espontâneo, abraçou-o. Imediatamente pegou a medalha, empertigou-se, esboçou um gesto solene e prendeu-a no peito do Coronel, dizendo-lhe:
“Ela é sua! Estou devolvendo-a para o lugar de onde nunca deveria ter saído”.
A surpresa agora era do velho e experiente militar. Quis impedir-lhe o gesto, mas não conseguiu. Tentou pagar-lhe o valor da medalha, também não conseguiu... E o vendedor, com um sorriso largo, disse-lhe:
“Coronel, o senhor mereceu essa medalha pelo seu trabalho e dedicação à Pátria. Estou feliz por devolvê-la”.
Os dois velhos emocionados se abraçaram. O Coronel agradeceu-lhe, juntou-se à mulher e, com passos lentos, auxiliados pela bengala, retirou-se da loja, levando a sua Medalha do Pacificador no peito. Certamente também levava os olhos marejados.
Atrás dele, um homem feliz pelo resgate que fizera naquela tarde observava-o partir, tendo a certeza de que aquele foi o seu melhor negócio do dia.
Gesto isolado, sem pompa e sem testemunhas. Mas nobre e grandioso, porque esculpido na dignidade das suas atitudes, provando que os valores morais são cultuados por homens, não por sombras.
Nem tudo está perdido.
(Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 25 de agosto de 2013)
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