Josefo, Homem Singular
numa Sociedade Plural
Neste artigo, sem grandes pretensões de originalidade, mas que tem como objetivo estimular a leitura da obra de Flávio Josefo, importante historiador judeu do século I d.C., gostaria de destacar 6 momentos fundamentais:
1. A origem aristocrática de Josefo, sua ligação com os asmoneus, seus estudos e sua formação.
2. A experiência do deserto na adolescência e a opção religiosa. Casamento e reintegração na vida da família em Jerusalém.
3. A viagem a Roma: o aristocrata provinciano que vê a grandeza e o poderio do Império. A influência deste fato no seu confronto posterior com Roma.
4. O comando da Galiléia, a contemporização, a derrota, a suspeita sobrevivência, a “profecia” feita a Vespasiano.
5. De prisioneiro a amigo dos romanos no cerco de Jerusalém. Ao lado de Tito, sua teologia é: Deus abandonou os judeus e agora está com os romanos (traição teológica).
6. Sua condição privilegiada em Roma, as rivalidades e os ciúmes, a obra histórica: encomenda e defesa.
Procurarei sempre olhar Flávio Josefo como ator e intérprete: participa dos acontecimentos e depois os interpreta. Objetivamente Josefo é um traidor de seu povo: este é o nosso olhar crítico hoje. Entretanto, subjetivamente, ele não se vê como traidor, mas modelo: a visão de si mesmo que aparece na sua obra será destacada.
Os textos de Flávio Josefo citados neste artigo estão em JOSEFO, F., História dos Hebreus. Obra Completa, tradução do grego de Vicente Pedroso, Rio de Janeiro, Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1992. Optei, para facilitar a consulta, por indicar apenas as páginas da referida obra e não, como classicamente se costuma, citar capítulos e parágrafos dos livros de Josefo. O leitor notará que o português desta tradução não é exatamente o que gostaríamos que fosse...
Alguns trechos de sua obra, em um português mais “amigável” podem ser lidos em AA.VV., Flávio Josefo: uma testemunha do tempo dos Apóstolos, São Paulo, Paulus, 1986.
Uma excelente edição das obras de Flávio Josefo, com o texto original, tradução inglesa e notas é a da Loeb Classsical Library: THACKERAY, H. St. J./MARCUS, R./WIKGREN, A.,/FELDMAN, L. H., Josephus I-X, Cambridge, Harvard University Press, 1926-1965.
1. Origem
Flávio Josefo nasceu em Jerusalém, em 37 ou 38 d.C., de uma rica família da aristocracia sacerdotal asmonéia. Eis como descreve em sua Autobiografia, com orgulho, sua origem aristocrática, para "desmanchar as calúnias de meus inimigos”:
“Como eu tenho a minha origem numa longa série de antepassados de família sacerdotal, eu poderia vangloriar-me da nobreza do meu nascimento, pois cada nação, estabelecendo a grandeza de uma família, em certos sinais de honra que a acompanham, entre nós um das mais notáveis, é ter-se a administração das coisas santas. Mas eu não sou somente oriundo da família dos sacrificadores, eu sou também da primeira das vinte e quatro linhas que a compõem e cuja dignidade está acima de todas. A isso eu posso acrescentar que, do lado de minha mãe eu tenho reis, entre meus antepassados. O ramo dos asmoneus, de que ela é proveniente, possuiu durante um longo tempo, entre os hebreus, o reino e a suprema sacrificadura.
[Nasci de] Matias no primeiro ano do reinado do imperador Caio César [o imperador romano Calígula, que reinou de 37 a 41 d.C.]. Quanto a mim, tenho três filhos, o primeiro dos quais, chamado Hircano, nasceu no quarto ano do reinado de Vespasiano [imperador romano que governou de 69 a 79 d.C.]. O segundo chama-se Justo, nasceu no sétimo e o terceiro, de nome Agripa, no nono ano de reinado do mesmo imperador”[1].
Flávio Josefo recebe uma formação judaica sofisticada. Diz ele em sua Autobiografia:
“Fui educado desde minha infância no estudo das letras, com um dos meus irmãos de pai e mãe, que tinha como ele o nome de Matias. Deus deu-me bastante memória e inteligência e eu fiz tão grande progresso que tendo então só catorze anos, os sacrificadores e os mais importantes de Jerusalém se dignaram perguntar minha opinião sobre o que se referia à interpretação das leis”[2].
Segundo Mireille Hadas-Lebel, “a natureza do ensino recebido [por Josefo] não deixa nenhuma dúvida: trata-se de um ensino puramente religioso, baseado na Torá. De fato, julga-se que os livros sagrados contêm o saber essencial ao homem para que conduza sua vida neste mundo. Neles, ele pode encontrar um código cultural, moral, social, político, assim como a história do universo e das gerações humanas, todas as coisas que ele sabe dever vincular a uma divindade única e onipresente”[3].
2. Formação
Aos 13 anos entra em contato com as três principais tendências do judaísmo do século I d.C., desenvolvidas pelos saduceus, fariseus e essênios, mas ainda não decide abraçar nenhuma delas.
“Quando fiz treze anos desejei aprender as diversas opiniões dos fariseus, dos saduceus e dos essênios, três seitas que existem entre nós, a fim de, conhecendo-as, eu pudesse adotar a que melhor me parecesse. Assim, estudei-as todas e experimentei-as com muitas dificuldades e muita austeridade”[4].
Observa João Batista Madeira que “num ambiente como o que se vivia então é de se esperar que houvesse uma preocupação muito grande com a espiritualidade. Ainda mais em se tratando de um povo cuja religião era determinante para os assuntos tanto sociais quanto individuais. A pluralidade de opções era outra característica marcante do povo judeu daquela época. Não havia autoridade suprema a nível de interpretação dos escritos sagrados, nem da tradição oral e nem com relação à moral (...) Para entender a pluralidade de escolas espirituais é preciso saber que cada uma reivindicava para si a autenticidade na vivência fiel da Lei. Numa religião sem uma autoridade central e legitimadora em si e sem dogmas fica uma certa amplitude de interpretação o que garante a grupos que podem até se opor, desfrutar da mesma herança religiosa”[5].
Mas, não satisfeito com esta experiência, Josefo vai viver três anos, dos 16 aos 19 anos de idade, junto a um asceta chamado Bano, que
“vivia tão austeramente no deserto que só se vestia da casca das árvores e só se alimentava com o que a mesma terra produz; para se conservar casto banhava-se várias vezes por dia e de noite, na água fria; resolvi imitá-lo”[6].
Mireille Hadas-Lebel vê nesta temporada no deserto junto a Bano, uma “tentação essênia” no jovem Josefo e chega mesmo a dizer, creio que sem maior fundamentação, que “somente uma estada entre os essênios pode explicar a abundância dos detalhes que ele nos dá tanto sobre a doutrina quanto sobre o seu modo de vida”; além de acrescentar que, embora o anacoreta Bano não seja conhecido a não ser por esta menção de Josefo, ele nos “faz irresistivelmente pensar em João Batista, que também vivia no deserto, vestido com uma túnica de pêlo de camelo, um cinto de couro ao redor da cintura, e se alimentava de gafanhotos e mel selvagem”[7].
Após estes três anos no deserto, Josefo volta a Jerusalém, provavelmente para se casar, e opta pela linha teológica farisaica, como nos diz ele em sua Autobiografia:
“Depois de ter passado três anos com ele, voltei, aos dezenove anos, a Jerusalém. Iniciei-me então nos trabalhos da vida civil e abracei a seita dos fariseus, que se aproxima mais que qualquer outra da dos estóicos, entre os gregos”[8].
Apesar de dizer que optou pelos fariseus, alguns especialistas defendem que Josefo é, na verdade, um saduceu. Só que após a guerra judaica, já em Roma, vivendo à sombra do Imperador, e acusado por seu rival judeu Justo de Tiberíades de ser anti-romano, Josefo diz ser adepto dos moderados fariseus[9].
3. A Viagem a Roma
No ano 64 d.C., com 26 anos de idade, Josefo vai numa embaixada a Roma para interceder junto a Nero por alguns sacerdotes judeus ali retidos não se sabe bem por que, já que Josefo é muito sucinto na sua Autobiografia:
“Na idade de vinte e seis anos fiz uma viagem a Roma, por esta razão. Félix, governador da Judéia, mandou por um motivo qualquer alguns sacrificadores, homens de bem e meus amigos particulares, para se justificarem perante o imperador; eu desejei, com muito entusiasmo, ajudá-los, quando soube que sua infelicidade em nada havia diminuído sua piedade e eles se contentavam em viver com nozes e figos”. Através da imperatriz Popéia, esposa de Nero, Josefo obteve “sem dificuldade a absolvição e a liberdade daqueles sacrificadores por intermédio dessa princesa, que me deu grandes presentes, também, com os quais regressei ao meu país”[10]
O brilhante sucesso desta missão colocou Josefo em respeitável posição frente aos seus conterrâneos. Mas não é apenas este o efeito da viagem a Roma. O jovem aristocrata provinciano viu, pela primeira vez, a grandeza e o poderio de Roma, a maior e mais poderosa cidade do mundo de então. Isto vai influenciar sua avaliação da guerra que se seguirá. Diz o nosso personagem a propósito:
“Lá [em Roma] encontrei alguns espíritos inclinados às mudanças que começavam a lançar as raízes de uma revolta contra os romanos. Procurei dissuadir os sediciosos e lhes fiz ver, entre outras coisas, como tão poderosos inimigos lhes deviam ser temíveis, quer pela sua ciência na guerra, quer pela grande prosperidade e eles não deviam expor temerariamente a tão grande perigo suas mulheres, seus filhos e sua pátria”[11].
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