terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Carlos Drumont de Andadde: o Adeus às Sete Quedas

Adeus a Sete Quedas

Em 1982, às vésperas dos 80 anos, o poeta expressa sua inconformidade com a destruição do Salto de Sete Quedas, um patrimônio natural do Brasil e da humanidade.

Na edição de 9 de setembro, quando afinal se anunciava o fechamento das comportas para a criação do lago da hidrelétrica de Itaipu, Drummond publicou este poema no Jornal do Brasil. Em letras grandes, os versos ocuparam uma página inteira, a capa do Caderno B.

O sentimento ecológico do poeta reverberou em todo o país. Um mês depois, ele voltaria à carga, com a crônica "Sete Quedas poderia ser salva" (JB, 07/10/1982). Nesse texto, Drummond transcreve una carta do engenheiro Octavio Marcondes Ferraz — o projetista da hidrelétrica de Paulo Afonso. A carta fora enviada ao poeta exatamente a propósito do poema "Adeus a Sete Quedas".

Ferraz revela que em 1963 apresentara projeto intitulado "Aproveitamento do Potencial do Salto de Sete Quedas". A idéia do engenheiro era preservacionista. "Em Paulo Afonso", diz ele, "projetei a usina preservando a catarata que Deus nos deu."

"Aproveitamento, em vez de imolação", destaca Drummond. O argumento do governo militar para a destruição é que seria necessário considerar uma "solução simétrica" em relação ao Paraguai.

No final, diz Drummond, os paraguaios não ficaram tão satisfeitos e Sete Quedas vai passar às novas gerações apenas como uma pálida notícia, um cartão postal de longínquo passado. "Sete quedas por nós passaram,/ e não soubemos, ah, não soubemos amá-las".
Sete quedas por mim passaram,
e todas sete se esvaíram.
Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele
a memória dos índios, pulverizada,
já não desperta o mínimo arrepio.
Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,
aos apagados fogos
de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se
os sete fantasmas das águas assassinadas
por mão do homem, dono do planeta.

Aqui outrora retumbaram vozes
da natureza imaginosa, fértil
em teatrais encenações de sonhos
aos homens ofertadas sem contrato.
Uma beleza-em-si, fantástico desenho
corporizado em cachões e bulcões de aéreo contorno
mostrava-se, despia-se, doava-se
em livre coito à humana vista extasiada.
Toda a arquitetura, toda a engenharia
de remotos egípcios e assírios
em vão ousaria criar tal monumento.

E desfaz-se
por ingrata intervenção de tecnocratas.
Aqui sete visões, sete esculturas
de líquido perfil
dissolvem-se entre cálculos computadorizados
de um país que vai deixando de ser humano
para tornar-se empresa gélida, mais nada.

Faz-se do movimento uma represa,
da agitação faz-se um silêncio
empresarial, de hidrelétrico projeto.
Vamos oferecer todo o conforto
que luz e força tarifadas geram
à custa de outro bem que não tem preço
nem resgate, empobrecendo a vida
na feroz ilusão de enriquecê-la.
Sete boiadas de água, sete touros brancos,
de bilhões de touros brancos integrados,
afundam-se em lagoa, e no vazio
que forma alguma ocupará, que resta
senão da natureza a dor sem gesto,
a calada censura
e a maldição que o tempo irá trazendo?

Vinde povos estranhos, vinde irmãos
brasileiros de todos os semblantes,
vinde ver e guardar
não mais a obra de arte natural
hoje cartão-postal a cores, melancólico,
mas seu espectro ainda rorejante
de irisadas pérolas de espuma e raiva,
passando, circunvoando,
entre pontes pênseis destruídas
e o inútil pranto das coisas,
sem acordar nenhum remorso,
nenhuma culpa ardente e confessada.
(“Assumimos a responsabilidade!
Estamos construindo o Brasil grande!”)
E patati patati patatá...

Sete quedas por nós passaram,
e não soubemos, ah, não soubemos amá-las,
e todas sete foram mortas,
e todas sete somem no ar,
sete fantasmas, sete crimes
dos vivos golpeando a vida
que nunca mais renascerá.

http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond%20-%20assina.gif
Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002
 
Carlos Drummond de Andrade
In Jornal do Brasil, Caderno B
09/09/1982
© Graña Drummond

 

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