O GÊNERO DA REPRESENTAÇÃO:
Movimento de mulheres e representação política no Brasil
(Elisabeth Souza-Lobo)
Este texto foi escrito para a última palestra internacional feita pela autora, em 7 de fevereiro passado, cerca de um mês antes de sua morte. Nele, transparece o modo particular como Beth Lobo combinava teoria e prática para enfrentar a complexidade do tema - as relações sociais de gênero - que ocupou suas atividades de professora, pesquisadora e militante: a perspectiva multidisciplinar, a atenção aos condicionantes histórico-culturais e às inflexões da conjuntura, a sensibilidade às diferenças e interpenetrações da política institucional e da política do cotidiano. O vazio deixado por Beth Lobo nas ciências sociais talvez não seja preenchido com rapidez. Mas fica o exemplo de uma intelectual que percebeu que não basta saber. Para bem compreender, é preciso sentir e agir com paixão.
Este texto pretende analisar as relações existentes entre as formas de participação das mulheres nos movimentos sociais e as modalidades de sua representação política, tema que suscita várias questões. Em primeiro lugar, trata-se de repensar a significação dos movimentos de mulheres e da participação destas nos distintos movimentos sociais no Brasil a partir do fim dos anos 70 e durante os anos 80, na perspectiva das relações entre vida pública e vida privada, para responder à pergunta-chave: que fatores estão na origem da participação das mulheres nos movimentos? Em segundo lugar, trata-se de pensar a emergência de temas como igualdade e cidadania, sua relação com os movimentos e sua incidência sobre as formas de representação constituídas.
As mulheres nos movimentos.
Dentre os numerosos estudos sobre os movimentos sociais no Brasil, raros são os que se interrogam sobre o fato de que os atores principais desses movimentos fossem mulheres. Somente os movimentos centrados nas questões ‘femininas’ - isto é, aqueles correspondentes à esfera da reprodução -, ou os que agrupavam exclusivamente mulheres, foram chamados movimentos de mulheres. No entanto, as mulheres estão presentes também nas ocupações de terrenos urbanos, nos movimentos de saúde ou pela melhoria dos transportes, nas comunidades de base.(1)
Os movimentos sociais foram abordados na literatura brasileira a partir de três tipos de enfoque: (a) eles são respostas a demandas criadas por um modelo de urbanização cujo agente principal é o Estado (Jaccobi, 1989); (b) são modalidades de ação que substituem os espaços políticos tradicionais, restringidos durante o regime autoritário (Moisés et ali, 1982); (c) remetem a novas formas de organização das relações sociais (Scherrer-Warren e Kritscke, 1987). A análise da participação das mulheres nos movimentos privilegiou a relação entre reivindicações e necessidades ligadas à esfera da reprodução, a saber, aquelas especificamente ‘femininas’. Por outro lado, a participação das mulheres nos movimentos políticos foi determinada, ainda segundo as análises, pela necessidade de abrir novos espaços para a prática política, face aos limites institucionais impostos pela ditadura militar durante os anos 70. Teria sido na condição de mães, esposas, irmãs de prisioneiros políticos ou de desaparecidos que as mulheres participaram do movimento pela anistia ou das lutas pela democratização. Assim, na origem da mobilização das mulheres estariam suas identidades tradicionais. O lugar delas na esfera política não é objeto de questionamento.
Nos dois primeiros enfoques, os movimentos são analisados como agentes portadores de reivindicações. Sua formação refletiria necessidades sociais ou condições políticas. Esses estudos não abordam nem a morfologia da construção dos movimentos, nem a formação de um sujeito coletivo ou das identidades sociais. O terceiro enfoque trouxe para a discussão a problemática da formação dos sujeitos coletivos a partir das articulações particulares entre temas da vida privada e práticas políticas (Sader, 1989; Laclau,1986).
Na origem de toda essa discussão está a tese de Weffort (1967), segundo a qual, durante os anos de terror, a reconstrução da sociedade civil brasileira foi possível graças à existência de redes subterrâneas de sociabilidade. Weffort via nesses movimentos subterrâneos o verdadeiro milagre dos anos de ditadura (em oposição ao ‘milagre econômico’), o fator que subverteu totalmente as idéias tradicionais sobre as relações Estado-sociedade civil no Brasil.
Formulo aqui a hipótese de que a relação entre as formas moleculares de sociabilidade se desdobra em práticas públicas emergentes. Esta relação é produzida pela convergência de muitos fatores. Se, por um lado, os espaços públicos estavam bloqueados pelo Estado autoritário, é necessário, por outro lado, precaver-se para o fato de que na sociedade brasileira as formas de participação coletiva nas questões sociais e políticas obedeceram tradicionalmente a mecanismos que articulavam práticas clientelísticas e despolitização, privatização e dinâmicas autoritárias e burocráticas de tomadas de decisão.
O fio condutor desta análise dos movimentos parte da experiência cotidiana, vivida e pensada nas comunidades de base, nos clubes de mães, nos grupos informais, onde as reivindicações se confundem com o desejo de mudar a vida e as relações na família. Aqui, a formação do movimento não é vista como o resultado de uma relação causal entre miséria e demanda ou entre opressão e reivindicação. Não é vista tampouco como a conseqüência da expansão de serviços públicos que criam necessidades. A formulação das demandas, das reivindicações coletivas, passa pela construção de uma idéia de direitos, pelo reconhecimento dos direitos de um grupo, pela consideração a experiências coletivas que estão na origem dos grupos.
As pesquisas efetuadas sobre a formação dos clubes de mães mostram o processo de construção das identidades de grupo: as mulheres se reconhecem a partir de uma atividade tradicional, como o tricô ou a costura.
“No final, nós líamos a Bíblia e refletíamos. Cada uma lia um pequeno trecho e nós discutíamos, relacionando-o com nossas vidas. Hoje, nós lemos o Evangelho a partir das necessidades do bairro...” (GEP/ URPLA, 1985)
O bairro se transforma em espaço de sociabilidade das donas de casa que participam nos grupos organizados pela Igreja Católica. A maior parte dessas mulheres é formada de migrantes (Salete, 1990), e na organização de suas vidas na periferia da grande cidade se confundem a construção de um espaço privado, representado pela propriedade, e a construção de um espaço público, o bairro. A particularidade desta convergência entre construções de um espaço público e de um espaço privado é pensada através da representação da dignidade das pessoas. Para as mulheres, esta tem suas raízes no discurso religioso, que associa os direitos à dignidade da pessoa humana. As reivindicações de creches, habitação e transporte não expressam apenas necessidades, mas constituem um discurso coletivo de sujeitos que definem seus direitos (Telles, 1990).
Nas palavras das mulheres dos clubes de mães, o cotidiano aparece como um espaço de reconhecimento das experiências comuns, nas quais se enraíza sua participação. Não é a natureza dás reivindicações - remetendo à reprodução e, conseqüentemente, a uma situação ‘própria das mulheres’ - mas a forma de agenciamento coletivo que abre caminho para a construção de um campo social novo e para a reflexão sobre os atores, em particular sobre aqueles atores dominados, cujos “movimentos, ao mesmo tempo carregados de revolta e portadores de inovações, constroem nossas sociedades” (Wieworka, 1986; ver também Souza-Lobo, 1987).
As modalidades de construção dos movimentos esclarecem a articulação entre práticas privadas e públicas, que rompem os modelos de confinamento das mulheres na esfera privada. Dito de outra forma, para as mulheres de grupos populares a articulação entre vida privada e vida pública (2) se coloca em novos termos.
A ruptura com o papel feminino tradicional, limitado à esfera privada, se explicaria pelas relações particulares estabelecidas pelas mulheres nos espaços públicos em construção - os bairros da periferia - e em suas relações com a família, no âmbito da qual elas assumem as responsabilidades de manutenção, ainda que dando continuidade às relações tradicionais de submissão para com os maridos.
A formação de um sujeito coletivo é o resultado das práticas das mulheres reagrupadas nos clubes de mães. Destas práticas surgem também as ‘militantes’, em ruptura mais radical com as donas de casa, como decorrência de seu papel permanente nas práticas públicas (Fraisse, 1987).
Os movimentos oferecem uma configuração aos coletivos femininos e interpelam a questão da cidadania das mulheres, que também se coloca nos discursos feministas emergentes no final dos anos 70 e durante os anos 80 (Oliveira Costa, 1987).
Feminismo e cidadania
Até agora, os estudos sobre a emergência dos discursos e dos grupos feministas no Brasil durante os anos 70 e 80 só forneceram uma visão parcial. A partir deles se constata que as principais correntes teriam dado origem a três tipos de agrupamentos: (a) os grupos feministas formados no exílio por mulheres ligadas a organizações de esquerda; (b) os grupos de autoconsciência formados durante os anos de repressão, agrupando sobretudo intelectuais que exerciam distintas profissões; (c) os grupos formados por militantes, simpatizantes ou egressas das organizações de esquerda no Brasil, próximos do que na França é caracterizado como tendência ‘luta de classes’ (Oliveira Costa, op. cit.; Goldberg, 1987; Pontes, 1986).
Assim, na origem desses grupos se encontram misturadas a resistência ao regime autoritário, a busca de uma nova utopia, a experiência do exílio e as práticas políticas no masculino e a divisão entre vida privada e vida política.
Esses diferentes grupos e correntes formam um movimento social que se propõe a mudar as relações entre homens e mulheres. As questões feministas se transformam em questões sociais que interpelam um público mais amplo do que as próprias feministas: creches, aborto, direito à contracepção ligado ao tema da saúde, violência contra as mulheres. As trajetórias e as práticas feministas cruzam as dos movimentos populares nos congressos, nos bairros, nos sindicatos. A transversalidade dos movimentos mulheres remete a redes, pessoas e temas que tomam a forma de um sujeito coletivo: as mulheres nos movimentos (Melucci, 1980). As reivindicações, muitas vezes definidas como ‘específicas’, se articulam com problemáticas emergentes, como a cidadania e a igualdade.
A instalação da Assembléia Nacional Constituinte e as discussões suscitadas pelo bicentenário da Revolução Francesa, de um lado, e os movimentos, de outro, fazem emergir a questão dos direitos e da cidadania, mas também a da igualdade e da diferença na sociedade brasileira. Ora, captar a emergência de uma problemática é sempre um desafio, como lembrou Michel Foucault (Berten, 1988, p. 18): “Há um momento em que, de alguma maneira, as evidências se confundem, as luzes se apagam, faz-se noite e as pessoas começam a dar-se conta de que agem cegamente e que, em conseqüência, é necessário uma nova luz, novos enfoques, novas regras de comportamento. Eis que então um objeto aparece, um objeto aparece como problema.” Toda a aproximação, mesmo superficial, dos anos 80 no Brasil passa pela identificação de um movimento difuso de diferentes grupos sociais, de um debate mais ou menos articulado sobre os direitos da cidadania. Na medida em que os grupos se identificam como subjetivamente diferentes, eles oferecem ao observador um ângulo privilegiado para buscar a genealogia de relações ambíguas, quando não contraditórias, sobre as mulheres, entre igualdade e diferença (Varikas, 1989).
Se, no Brasil, o povo esteve ausente do movimento que levou à Proclamação da República (Carvalho, 1990), que dizer do povo feminino? No entanto, em 1900, A Mensageira, a “revista literária destinada às mulheres brasileiras”, trazia um artigo que destacava a importância da decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal, que reconhecera o direito da mulher ao exercício da profissão de advogada - uma justa aspiração à igualdade (Mensageira, 1987).
O tema da cidadania das excluídas esteve presente nas lutas dos operários e das operárias durante a Primeira República e fazia parte do discurso daquelas que, a partir do fim do século XIX, reclamavam o direito à educação para humanizar as mulheres. A partir dos anos 30, a ‘cidadania regulada’(3) prometia uma igualdade formal - direito de voto, acesso gradual às profissões, regulamentação dos direitos - cuja realização se inscrevia no horizonte do possível.
Efetivamente, a cidadania estava associada ao estatuto profissional, e os direitos dos cidadãos estavam definidos pelo lugar que eles ocupavam na atividade produtiva reconhecida por lei. Todos aqueles cuja profissão era legalmente ignorada não passavam de ‘pré-cidadãos’ (Santos, op. cit.). Às mulheres estavam reservadas a ‘pré-cidadania’ e a maternidade. Esta última determinava uma cidadania específica para a trabalhadora, protegida por uma legislação trabalhista que harmonizava maternidade e trabalho assalariado.
O acesso das mulheres à vida pública, por real que fosse, permanecia invisível. Só era problematizado quando algumas mulheres de vanguarda pretendiam romper a imagem tradicional da mulher do lar. Em 1934, as mulheres da União Feminina (ligada à Aliança Nacional Libertadora, versão brasileira das frentes populares dos anos 30) foram criticadas por seu comportamento ‘imoral’ - usavam cabelos curtos e fumavam charutos - e por sua defesa do amor livre (Levine, 1980, p. 117).
Durante o período republicano prevaleceu a imagem da mulher tradicional - mãe e esposa - a despeito da presença de mulheres no movimento operário, de intelectuais no movimento anarquista e de professoras. A imprensa operária descrevia as trabalhadoras através da imagem da ‘frágil costureira’, vítima das perseguições dos patrões, explorada e submissa.
A partir dos anos 20 e nas décadas que se seguiram, os direitos civis das mulheres - direito ao voto e à educação - foram objeto de discussões conduzidas por mulheres ‘excepcionais’, que se opunham à imagem da mulher tradicional, sempre confinada à esfera privada, mesmo que fosse trabalhadora. Mas a questão da igualdade e das diferenças ocultas sob a igualdade formal não foi problematizada pelos excluídos: mulheres, negros, índios.
Muitos pesquisadores tentaram compreender como, nas trevas da ditadura militar, grupos subalternos chegaram a construir uma idéia dos direitos e da igualdade (Sader, op. cit.). O movimento operário que se organizou durante os anos 70 é seguramente o ator mais importante nesse cenário. Os movimentos de mulheres constituem a novidade. No entanto, a não-problematização da presença das mulheres nos movimentos sociais é sintomática. Tanto as análises como os discursos políticos partiam de uma idéia de igualdade. Não havia nenhuma razão para introduzir uma diferença entre participação feminina e masculina. Mesmo se os modelos de participação na vida pública permaneciam masculinos, as imagens das mulheres nas ruas, suas vozes cheias de agressividade, sacudiam as idéias preconcebidas do machismo e da eterna submissão feminina. Um clichê do imaginário político brasileiro dos anos 80 fixará sem dúvida a figura de um operário metalúrgico, cercado possivelmente por algumas mulheres heróicas.
Mas esta imagem feminina é um estereótipo sem voz, como se tivesse sempre existido. Ela nada diz sobre a interpelação das mulheres aos discursos sobre os movimentos que constroem um objeto masculino mesmo do ponto de vista da linguagem. Nada foi dito nos textos acadêmicos, na fala dos dirigentes sindicais ou no discurso sobre as políticas públicas, sobre o crescimento da participação feminina no trabalho assalariado no curso dos anos 70-80 em condições de desigualdade salarial, de promoções, de reconhecimento de competências. Somente as próprias mulheres - as feministas e as militantes dos movimentos - colocaram o problema.
A questão dos direitos sociais suscitou a da igualdade destes direitos. Mas, mais além da representação da universalidade dos direitos, permanece o problema das ambigüidades e das repressões, das contradições e dos silêncios “ocultos no sistema político, que se pretende universal porque sustentado por princípios naturais e científicos” (Scott, 1989).
Na emergência dos sujeitos coletivos, as imagens universais foram reconstruídas, introduzindo as desigualdades sociais e as diferenças, freqüentemente tratadas como ‘especificidades’. Sabe-se que o termo ‘específico’, mesmo utilizado para qualificar as reivindicações das mulheres, supõe uma universalidade neutra que se oporia ao feminino. Tais foram os discursos sobre os movimentos e, muitas vezes, dos próprios movimentos.
As diferenças em uma sociedade de desigualdade
A fim de captar as mudanças - e seus limites na representação das mulheres no seio da sociedade brasileira dos anos 80 - analisei até aqui as relações entre participação nos movimentos e representação: No entanto, a problemática das mulheres como sujeito coletivo, diferente mas não específico, corresponde em muito a uma tentativa de conceituação da diferença construída a partir de um questionamento das desigualdades e do papel da maternidade.
Essa discussão, que permaneceu subjacente às práticas sindicais, foi precipitada pelo processo da Constituinte, que abriu o caminho para a expressão dos diferentes discursos dos movimentos sociais e, em particular, para os discursos sobre a cidadania dos excluídos. O questionamento da igualdade formal dos direitos e da especificidade das mulheres revelou-se singularmente rico a propósito do trabalho e da saúde (incluídos a contracepção e o aborto).
Numa sociedade marcada pela desigualdade, o texto constitucional propõe uma igualdade de princípios entre homens e mulheres. Se a igualdade na família permanece um problema do Código Civil, a Constituição mostrou-se bem tímida em um domínio sobre o qual se ocupa: as relações de trabalho. Contenta-se em enunciar a necessidade de garantir um mercado de trabalho para as mulheres, em ampliar a licença maternidade e prever uma licença paternidade. .Assim, a paternidade, como encargo não somente financeiro, intervém na definição dos direitos sociais dos homens. Da mesma forma, as exigências da maternidade integram os direitos das trabalhadoras. As duas situações são reconhecidas como diferentes; permanecem desiguais, reforçando a paternidade.
O fantasma da especificidade não se esvai, no entanto. Se a lei legitima o direito das trabalhadoras à maternidade, as práticas patronais introduzem formas de controle sobre a fertilidade das mulheres, de modo a tentar subtrair destas o benefício das licenças. A maternidade e o trabalho assalariado continuam a se opor.
Outras diferenças entre homens e mulheres mereceriam um exame mais aprofundado a fim de precisar as desigualdades econômicas, (4) mas também outras desigualdades ainda não formalizadas, a despeito do direito teoricamente igual à cidadania. Por exemplo, uma pesquisa recente, que se debruçou sobre os recursos junto às instituições judiciárias, indica que os homens recorrem à Justiça em conflitos de trabalho, enquanto as mulheres o fazem para resolver conflitos conjugais. A pesquisa também revela que a violência contra as mulheres é majoritariamente provocada por familiares (IBGE, 1990). As mulheres permanecem, pois, enfurnadas em redes privadas.
O lugar das mulheres: movimentos e representação política
Em uma sociedade marcada pela desigualdade e pela exclusão, os movimentos de mulheres desempenham um papel importante no questionamento do problema da desigualdade.
Em um primeiro momento eles permanecem à margem de toda institucionalização. A partir de 1982 foram criados o Conselho da Condição Feminina em São Paulo e, posteriormente, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Em seguida, surgiram outros Conselhos da Condição Feminina. Finalmente, comissões de mulheres se formaram em sindicatos e partidos políticos.
Assim, os movimentos passam a contar com instâncias de representação institucional das mulheres nos espaços políticos. Ainda que fragmentários, os dados indicam claramente um crescimento desta representação. As mulheres somam apenas 1/3 dos inscritos nas associações profissionais e nos sindicatos de empregados. No entanto, 12,8% das mulheres destas associações manifestam interesse pela participação política, contra 8,4% dos homens, que revelam grande interesse (36,1%) por atividades esportivas e culturais (IBGE, op. cit.). Se estes dados podem ser interpretados como sinal de ‘politização’ das mulheres, eles deixam margem para que se pense que as mulheres que participam são militantes, quer dizer, mulheres em ruptura com as práticas femininas tradicionais.
A questão da participação das mulheres mereceria um estudo particular, pois me parece ligada às formas de constituição e de representação das mulheres na vida pública. Ela seria o elemento explicativo das relações entre vida pública e vida privada, problemática à qual voltarei na conclusão.
No nível da representação das mulheres nas centrais sindicais, os dados disponíveis para a Central única dos Trabalhadores (CUT) indicam que, em 1988, mais de 1/4 dos filiados eram mulheres. Mas as eleitas para a Direção Nacional não ultrapassavam 10%, e apenas uma delas estava na Executiva (Castro, 1990).
Na Assembléia Nacional Constituinte, 26 parlamentares eram mulheres, o que corresponde a 5%. Nas eleições anteriores para o Congresso (Tabak,1989), apenas nove mulheres tinham sido eleitas, cabendo destacar que elas estavam proporcionalmente mais bem representadas nas bancadas dos partidos menos fortes.(5)
Assim, o enraizamento profundo das mulheres nos movimentos sociais não se traduz em legitimidade política. Alguns autores destacaram que as modalidades de organização da própria sociedade brasileira não se expressam em um enraizamento social mais forte dos partidos políticos (Almeida, 1989). Esta tese é discutível. Dos 487 deputados eleitos, 18 eram dirigentes sindicais, aos quais se juntavam dois profissionais que trabalhavam para sindicatos. É necessário assinalar, no entanto, que muitas mulheres eleitas se beneficiaram do prestígio político dos homens de sua família (em particular, pai ou marido).
A exemplo de outros grupos sociais, as mulheres formaram um lobby na Constituinte, na maioria das vezes articulado em torno do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, sob o tema ‘Viva a diferença dos direitos iguais’. Elas apresentaram a Carta das Mulheres, agrupando proposições relativas a propriedade, terra, trabalho, discriminação, violência, educação, cultura e saúde (Tabak, s/d). A propósito do aborto, os deputados conseguiram impedir a ratificação de posições mais conservadoras, propondo que este problema seja discutido o mais rapidamente possível pela sociedade brasileira como um todo.
A título de conclusão
Para caracterizar os anos 80, eu diria que assistimos uma ‘cidadania emergente’ de mulheres, construída a partir de três correntes -distintas: as práticas das mulheres nos movimentos, os discursos sobre a dignidade, elaborados nos movimentos populares., e os discursos feministas (Tahon, 1988).
Esta cidadania emergente remete a noções difusas na sociedade, como a discriminação das mulheres, em particular no que se refere a seus direitos sociais e políticos. Os temas das mulheres coincidem com as questões sociais debatidas na sociedade brasileira. Isto explica a transversalidade da problemática da igualdade e dos direitos das mulheres, assim como uma consciência frágil e difusa a respeito da discriminação. A questão democrática, hoje o centro dos debates, está atravessada pela problemática da extensão da cidadania. Durante os anos 80, e em particular quando da Constituinte, as mulheres conseguiram ser interlocutores visíveis.
Esta cidadania emergente apresenta, no entanto, limites. Sua aspiração à liberdade é contrarrestada pelas formas institucionalizadas que, em nome da legalidade formal, obscurecem os mecanismos que fundam as diferenças. A participação decisiva das mulheres nos movimentos não se traduz - ou o faz de modo insuficiente - no nível da representação institucional. O gênero da representação permanece masculino na sua forma clássica, e a representação das mulheres na vida pública permanece periférica.
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