O Renascimento
Da mesma forma como a Idade Média foi por muitos considerada a idade das trevas, o Renascimento foi visto como uma reedição da antiguidade. Embora seus representantes tenham se inspirado nas obras antigas, seus esforços resultaram em projetos e realizações originais - seu ideal foi retornar ao antigo, para poder ultrapassá-lo. O renascentista foi um homem do seu tempo: possuindo o sentido da história, sabia que o mundo antigo era diferente do seu e que, pretendendo reviver a antiguidade, procurava viver uma vida diversa da da Idade Média.Esse movimento filosófico e literário, iniciado na Itália, na segunda metade do século XIV e, depois, difundido no resto da Europa, tem no humanismo sua característica principal. O aspecto primordial do Humanismo renascentista é a liberdade do homem, que o faz capaz de estabelecer e desenvolver seu projeto de vida. Ao contrário do conceito medieval de homem, inteiramente submetido à Igreja e ao Sacro Império Romano-Germânico, o Humanismo o vê livre, em relação à natureza e à sociedade. Restaurou a dignidade humana, pela admissão da liberdade e capacidade de interagir com o mundo.O termo humanismo originou-se do latim humanitas, definida por Cícero como a cultura que distingue o homem civilizado da natureza e da barbárie. Assim, o retorno aos clássicos antigos, desenvolvendo a cultura, deveria permitir à humanidade a conquista de uma natureza humana mais de acordo com o ideal clássico greco-romano. O Humanismo e o Renascimento são apenas dois momentos do mesmo movimento, tendo, portanto, os mesmos fundamentos: 1) afirmação do valor e da dignidade da natureza humana; 2) livre investigação da natureza física, sem sujeição à autoridade de Aristóteles e à autoridade religiosa, em campos fora de sua alçada. Esses dois fundamentos são o naturalismo do Humanismo - que tem como objeto a natureza humana e o naturalismo do Renascentismo que tem como objeto a natureza física.A fé inabalável na natureza humana fez com que os renascentistas acreditassem que a inteligência e a liberdade do homem são ilimitadas e que a ele, sendo livre, para agir bem, basta seguir as leis da sua natureza. Leon Battista Alberti (1404-1472) ilustra muito bem essas idéias, quando diz ser o homem o artífice de seu próprio destino. Esse homem ideal, que procura realizar-se, reedita a idéia platônica de homem. Trata-se, sem dúvida, de um otimismo utópico, mas que propiciou grande progresso e fundamentou o surgimento da cultura moderna.Acreditando que o mundo natural é o domínio do homem, o movimento renascentista apregoou um naturalismo, que, ao lado da afirmativa do valor intelectual do homem e da sua liberdade, acentuou, também, o valor do corpo humano e seus prazeres. Em contraste com o ascetismo medieval, a ética volta às idéias epicuristas antigas - o bem é o prazer e a virtude é uma organização de prazeres.Do que até aqui foi dito, não se deve concluir que houve uma profunda ruptura cultural entre a Idade Média e a Renascença; em plena Idade Média, as cidades já possuíam estrutura econômica e social capitalista, propiciando, assim, o desenvolvimento da burguesia capitalista e da monarquia absoluta que condicionaram o Renascimento.Também não se conclua que, no aspecto religioso, se possa falar de uma cisão total com o conceito de religiosidade medieval. Na verdade, extrapolou-se o cristianismo em duas direções: 1) um humanismo com tendência antropocêntrica (o homem é o centro do universo), que deu origem às correntes racionalísticas, filosóficas e científicas que caracterizam o pensamento moderno; 2) um humanismo super-teológico, do qual surgiram os movimentos religiosos iniciados por Lutero e que chamamos de Reforma.O intrincamento de concordâncias e oposições gerou problemas que são considerados típicos do Humanismo, do Renascimento e da Reforma e que, até hoje, fazem parte dos questionamentos da cultura contemporânea. Os humanistas apresentavam, em sua maioria, bastante religiosidade e propensão para religiões misteriosas, astrologia, milagres e ocultismo; não foram nem anti-religiosos, nem anti-cristãos (pelo menos oficialmente), e deram prioridade a dois aspectos característicos dessa época: a tolerância religiosa e a função civíl da religião.Procuravam uma paz religiosa que deveria decorrer do estudo de várias correntes filosóficas e que fora destruída pelas disputas teológicas.A tolerância religiosa foi defendida por idéias que deixam entrever a aurora do pensamento moderno; dois pensadores representam com grandeza esse momento: Erasmo de Rotterdam (1465/1469-1536) e Thomas More (Morus, em latim-1478-1535). Estudaram juntos em Oxford, foram amigos por muitos anos, e conceberam, em conjunto, a idéia de restaurar a teologia através de novas edições dos textos bíblicos revolucionando, assim, pela hermenêutica (interpretação) bíblica, muitas idéias sobre as escrituras sagradas prevalecentes na época medieval. A partir daí, foram feitas muitas traduções dos textos originais, que modificaram, em muito, o cristianismo, tal como era pensado na Idade Média.Várias obras de Erasmo, que era frade, satirizavam costumes sociais e da Igreja, pessoas notáveis da época, descritas sob pseudônimos (mas facilmente identificáveis), a vida conventual como espiritualidade e a carreira militar. Mas a obra que o fez um autor celebrado por todos e que, por sua ousadia, foi das que mais abalou o seu tempo - e que é uma obra-prima da literatura universal - chama-se O Elogio da Loucura. Nesse livro, escrito em apenas sete dias e que foi dedicado a Thomas More, o autor faz a Loucura subir ao púlpito e auto-elogiar-se, tendo sempre, a seu lado, a Lisonja e o Amor Próprio. Dessa forma, criticou os filósofos escolásticos, os nobres arrogantes, os juristas detalhistas, os bispos luxuriosos, os negociantes desonestos e os militares estúpidos.Vejamos, em alguns parágrafos selecionados, como, através da ironia e da finura de espírito, Erasmo expõe as mazelas dos homens de sua época, que muito pouco ou nada diferem dos homens contemporâneos:- ... que mais poderia convir à Loucura do que ser o arauto do próprio mérito e fazer ecoar por toda parte os seus próprios louvores? ... Assim, pois, sigo aquele conhecido provérbio que diz: Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo.- ... pareceu-me igualmente oportuno imitar os retóricos de nossos dias, que se reputam outras tantas divindades, uma vez que podem gabar-se de outras línguas como a sanguessuga ( que teria a língua bifurcada) e consideram coisa maravilhosa inserir nos seus discursos, de cambulhada, mesmo fora de propósito, palavrinhas gregas, a fim de formarem belíssimos mosaicos.- Para nós, os tolos, um dos maiores prazeres não consistirá em admirar, com a máxima surpresa, tudo o que nos vem dos países ultramontanos?- Mas, afinal de contas, por que é que esse grande homem (Sócrates) foi acusado perante os magistrados? Por quê foi ele condenado a beber cicuta? Não seria talvez a sua sabedoria a causa de todos os seus males e, finalmente, de sua morte? Tendo passado toda a vida a raciocinar em torno das núvens e das idéias, ocupando-se em medir o pé de uma pulga e se perdendo em admirar o zumbido do pernilongo, descuidou-se esse filósofo do estudo e do conhecimento dos homens, bem como da arte sumamente necessária de se adaptar a eles. Aí tendes, nesse retrato, o que diz respeito a muitos dos nossos.- Que espécie de homem é um estóico? ... Eis o retrato de um estóico: surdo à voz dos sentidos, não sente paixão alguma; o amor e a piedade não impressionam absolutamente seu coração duro como o diamante; nada lhe escapa, nunca se perde, pois tem uma vista de lince; tudo pesa com a máxima exatidão, nada perdoa; encontra em si mesmo toda a felicidade e se julga o único rico da terra, o único sábio, o único livre, numa palavra, pensa que só ele é tudo e o mais interessante é que é o único a se julgar assim.- A ignorância tem, pois, dois grandes privilégios: um, que consiste em estar de acordo com o amor próprio e outro, que consiste em trazer em si a maior parte do gênero humano. Por conseguinte, seríeis duas vezes ingênuos, se quisésseis elevar-vos acima do nível comum, com toda vossa ciência filosófica.- ... Além disso, mostram as estátuas e os retratos dos antepassados, enumeram os bisavós e os tataravós; recordam os antigos sobrenomes e os feitos dos seus maiores. ... Esses idiotas fazem um alto conceito de si mesmos e estão sempre cheios da estéril idéia da sua ascendência.- Merecem ser incluídos nessa categoria os habitantes da caverna de Platão. Ao verem, os tolos, as sombras e as aparências de diversas coisas, admiram-nas e nada mais procuram, dando-se por satisfeitos.- Os sábios são em número tão escasso que nem vale a pena falar deles e eu desejaria saber se é possível descobrir algum.- ...vejamos o que são os filósofos. Não passam, também, de ridículos loucos: quem poderá conter o riso ao ouví-los sustentar seriamente a infinidade dos mundos? O sol, a lua, as estrelas... são por eles tão conhecidos como se os tivessem medido palmo a palmo ou com um fio.... vangloriam-se de distinguir as idéias, os universais, as formas separadas, os quid, os esse, em suma, todos os objetos que, de tão pequenos, só poderiam distinguir-se, se não me engano, com olhos de lince.- A propósito de combate, parece-me que os cristãos deveriam mudar as suas tropas movidas contra os infiéis. Se, em vez da soldadesca, que há tanto tempo empregam inutilmente nas cruzadas, expedissem contra os turcos e os sarracenos os clamosos escotistas (de Duns Scotus), os obstinados occamistas (de Guilherme Occam), os invencíveis albertistas (de Alberto Magno) e toda milícia dos sofistas, quem poderia resistir ao assalto dessas tropas coligadas? - Demonstrou o pregador, mas com uma sutileza imperceptível, que tudo quanto se podia dizer para glorificar o Salvador, tudo se achava nas letras componentes do seu augustíssimo nome ... O velho bajoujo teve a felicidade de separar o vocábulo Jesus em duas partes iguais: Je-su. Mas, que faremos daquele s, que, tendo perdido o companheiro, está surpreso de se achar sozinho? Um pouco de paciência e logo repararemos o mal. Os hebreus, em lugar de s, pronunciam syn; ora, em bom escocês, syn quer dizer pecado. Pois bem! - exclamou o pregador - quem será tão incrédulo ao ponto de negar que o Salvador tirou os pecados do mundo? - O sistema do cristianismo, acerca da felicidade da vida, muito se avizinha do dos platônicos. Segundo o princípio fundamental desses dois sistemas, a alma está encarcerada no corpo, ligada pelos nós da matéria e de tal modo oprimida pelo peso da matéria orgânica que muito dificilmente pode descobrir e apreciar a verdade. Foi por essa razão que Platão definiu a filosofia como sendo a meditação da morte, porque tanto a filosofia como a morte destacam nossa alma das coisas visíveis e corporais.- Em lugar de um epílogo, quero oferecer-vos duas sentenças. A primeira, antiquíssima, é esta: Eu jamais desejaria beber com um homem que se lembrasse de tudo . E a segunda, nova, é a seguinte: Odeio o ouvinte de memória fiel demais.- E, por isso, sede sãos, aplaudi, vivei, bebei, ó celebérrimos iniciados nos mistérios da Loucura.Erasmo valeu-se de sua grande cultura clássica para produzir uma obra artística de estilo admirável, onde sua própria opinião permanece oculta; se se pretendesse discutir as opiniões e críticas contidas nesse livro, ele poderia tranquilamente alegar que fora a Loucura, e não ele, quem as expressara. E quem deveria levar a sério a Loucura?Esse livro, embora possa parecer uma brincadeira, teve grande influência na eclosão da Reforma protestante, porque criticava os costumes da Igreja, que contradiziam os ensinamentos do cristianismo original e aos quais se opunham os reformadores. Não se acredite, no entanto, que tenha havido concordância de pensamento nas idéias fundamentais entre Erasmo e Lutero; enquanto o primeiro quer reformar os costumes pela razão, o segundo acredita poder fazê-lo pela fé. Erasmo, como verdadeiro humanista que acredita na razão humana, achava ser possível fazer uma opção moral entre o bem e o mal, através do livre arbítrio; Lutero, vendo a humanidade pela lente de um agostinianismo extremado, considerava o homem perdido pelo pecado e incapaz de se salvar por suas próprias ações - apenas a graça divina poderia redimí-lo. Essa crença (a fé remove montanhas e a razão não), comum entre os camponeses da época, era interessante para os príncipes alemães que queriam livrar-se da autoridade do Vaticano e apossar-se de suas terras em solo alemão. Assim, apoiaram Lutero, que, em 1517, iniciou a Reforma. Os dois lados, isto é, Lutero e a Igreja Católica, tentaram atrair Erasmo, que, no entanto, se conservou independente, coerente com sua crença de que o homem, como ser inteligente e livre, deveria combater todos os fanatismos, achando seu caminho pela razão e fazendo suas escolhas pelo livre arbítrio. Erasmo, humanista universal no mais completo sentido do termo, situou o homem acima de todos os valores, dignificando-o como ser racional.Thomas More, nascido em Londres, foi Chanceler de Henrique VIII e juiz conpetentíssimo. Foi muito influenciado por Erasmo de Rotterdam, que era doze anos mais velho do que ele e que o conheceu aos vinte e um anos de idade. Ficaram muito amigos.Na Renascença, a filosofia clássica foi estudada de forma bem diferente dos estudos da filosofia medieval. A par das reinterpretações de Platão e Aristóteles, os humanistas voltaram-se para filósofos que tinham sido deixados de lado ou mesmo condenados na Idade Média.Em sua obra principal, a Utopia, podemos observar o retorno do epicurismo e da filosofia estoica. Entretanto, não se deve pensar que ele nada acrescentou às idéias antigas. Ao contrário, estabeleceu as bases do epicurismo cristão, acrescentando contribuições platônicas (Platão era seu filósofo favorito) que já haviam sido , por assim dizer, cristianizadas: crença na providência divina, na imortalidade da alma e na recompensa depois da morte. Epicuro, ao contrário, descreveu deuses que nada tinham a ver com os homens e que não poderiam ajudá-los a encontrar qualquer bem.Morus descreve uma ilha chamada Utopia, cujos habitantes consideram virtude procurar obter sempre o maior prazer; para eles, é absurdo sofrer voluntariamente, considerar virtude renunciar aos prazeres terrenos e não esperar recompensa após a morte pelos males que sofreram no mundo. A virtude consiste em procurar o prazer natural, seja ele dos sentidos ou da razão, compreendendo quais os bens que se pode ter sem injustiça e que não acarretem males. As idéias estoicas podem ser observadas na importância atribuída pelos utopianos ao viver de acordo com a natureza, ao espírito comunitário natural do ser humano e na extrema atenção dada ao problema da virtude. Thomas Morus revelou-se um perfeito humanista, enquanto associou, na Utopia, o paganismo epicurista e estoicista clássicos às idéias cristãs. Observando e criticando a estrutura econômica da Inglaterra, o autor propõe uma sociedade utópica, cujos habitantes vivem num regime de comunidade de bens. Os habitantes não possuem suas casas: a cada dez anos, as moradias são sorteadas e as pessoas trocam de casa, abolindo-se, assim, a idéia de propriedade privada. Tudo o que for produzido pelos cidadãos de um quarteirão é levado a um mercado nele existente, abastecendo gratuitamente as famílias locais. Ninguém se apropria de mais do que necessita, porque nada lhes é negado; assim, sendo garantida a subsistência, a ganância, tão comum aos homens, não se desenvolve entre essas pessoas.A forma de governo é a democracia: os magistrados são eleitos e as leis não podem ser votadas antes de três dias. É proibido reunir-se fora do senado e das assembléias populares e a pena para a desobediência a essa ordem é a morte.Procurando encontrar uma forma de sociedade melhor que as existentes na Europa, Morus descreveu instituições públicas que visavam impedir o abuso de autoridade, as leis tirânicas ou as mudanças de forma de governo.A religião da Utopia é permissiva, isto é, seus habitantes podem professar diferentes crenças, desde a adoração de forças da natureza até a crença em um único Deus. Todas as religiões são respeitadas e não existe conflito entre elas. Não há uma religião oficial do Estado e, assim, estabelece-se a tolerância religiosa. Embora haja preconizado a tolerância religiosa, Thomas More não foi adepto da Reforma e, por causa de suas firmes convicções e independência diante do poder, acabou sendo destituído do cargo de chanceler, quando discordou de Henrique VIII sobre a separação da igreja inglesa da autoridade do papa. Foi preso e decapitado quando discordou do divórcio do rei de Catarina de Aragão, para validar seu casamento com Ana Bolena. Foi canonizado em 1935, como mártir da Igreja Católica em defesa da liberdade de pensamento. Referências Bibliográficas:Sciacca,M.F. - História da Filosofia, vol. II, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1968.Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura e Thomas More, A Utopia, in Os Pensadores, vol. X, Abril S.A.Cultural e Industrial,São Paulo, 1972.Roland Mousnier, Os Séculos XVI e XVII, in História Geral das Civilizações, vol. IV, Difusão Européia do Livro, São Paulo,1957. MAQUIAVELMaquiavel (Niccolò Machiavelli - Florença, 1469-1527) inspirou-se na experiência política adquirida durante o exercício dos cargos públicos que ocupou e no seu espírito nacionalista, para explicar as causas da decadência italiana e encontrar-lhe salvação. Itália, no Renascimento, era fragmentada em pequenos reinos; sem um poder central, tornou-se presa fácil de aventureiros mercenários (os condottieri), a serviço do príncipe que lhes pagava melhor. Muitos conquistaram terras para si próprios e se aliaram a príncipes e papas. Algumas monarquias absolutas da Europa disputaram seus territórios e, no final da época feudal, sua economia entrou em crescente decadência.Nesse período de crise econômica e política, Maquiavel foi um marco na história das teorias políticas, indo além das especulações filosóficas como as de Platão, Aristóteles e Santo Tomás; ele estudou a sociedade pela análise dos fatos - não procurou um Estado ideal, mas a compreensão de como as organizações políticas surgem, se desenvolvem e decaem. Para tanto, valeu-se da filosofia da história e da psicologia humana: a primeira, mostra como os fatos históricos se dão em ciclos, repetindo-se em linhas gerais; é preciso conhecê-los para compará-los com o presente e remediar o futuro; a segunda, ensina que os homens são egoístas e só agem bem quando obrigados.Tendo em vista esses fatos, Maquiavel escreveu Comentários sobre os Dez Livros de Tito Lívio, repletos de lembranças do passado romano glorioso e O Príncipe, que é uma espécie de roteiro ou conjunto de regras de bem governar para os dirigentes políticos. Como Platão e os juristas romanos, Maquiavel atribuiu ao poder político supremacia sobre o religioso e o social.O governante deve ser implacável, quando necessário, indiferente às considerações pessoais, sociais e morais que limitem seu poder e a ordem política; se for necessário, o dirigente poderá ser cruel, mandar assassinar e eliminar nomes e propriedades de família porque os fins justificam os meios. Diz Maquiavel em O Príncipe: Um príncipe, portanto, que deseje manter-se no poder, deve aprender a não ser bom, mas a sê-lo ou não, conforme o exija a necessidade. Robert Nisbet acredita que Platão e os juristas romanos teriam concordado com ele - Platão, porque teria considerado o bom e o moral intrínsecos ao ato político puro; os juristas romanos, porque acreditavam que o Direito Político deve estar acima da tradição moral. O fundador de Estados é, para o autor, um indivíduo de dotes éticos superiores que lhe facultam o uso de meios extraordinários para a organização de reinos ou repúblicas; o político de virtude é aquele que sabe qual a ocasião exata em que a ação se concretizará com êxito, adequando-se às circunstâncias do momento. Não são tiranos, mas criam a ordem e a coesão social para o povo.A obra de Maquiavel foi muito discutida e diversamente interpretada; ele foi assessor de papas e cardeais e o maior humanista político, tendo influenciado Erasmo e Thomas More. Com a contra-reforma, sua obra foi incluída no index dos livros proibidos pela Igreja, que não poderia tolerar a subordinação do religioso ao político. Na época do poder absoluto, O Príncipe foi visto como um manual do despotismo. Nos séculos XVIII e XIX o autor foi redimido e, modernamente, a tendência é a de analisá-lo como típico representante do pensamento do seu tempo. Maquiavel foi visto como cético, mas a verdade é que ele jamais pretendeu reforçar a moralidade tradicional ou enfeitar o poder absoluto com a moralidade convencional. FILOSOFIA E CIÊNCIA NO RENASCIMENTONos séculos XV e XVI, o aristotelismo, com sua dedução silogística e a indução por enumeração, ainda dominava o ambiente científico, que precisava de um método científico para suas elaborações. A hipótese heliocêntrica (o sol no centro do universo), de Nicolau Copérnico (1473-1543), comprovada científicamente por Kepler (1571-1630) e por Galileu (1564-1642), foi a grande conquista científica do século, porque contestou, com base científica, a cosmologia aristotélico-ptolomaica, que era geocêntrica ( a terra no centro do cosmos). Giordano Bruno (1584-1600) alargou o universo ao infinito.Na mesma época, procurou-se fundamentar o Estado em princípios universais, comuns à toda humanidade e não decorrentes de princípios religiosos: é o jusnaturalismo que organiza politicamente o Estado, a partir de princípios do direito natural ( imutável e eterno), que são a base do direito positivo (mutável conforme as circunstâncias históricas). O Estado nasceu do contrato social, segundo o qual os indivíduos concordam em limitar sua liberdade em prol do bem comum, para que o governante possa fazer valer as leis. Da doutrina do contrato social derivaram as teorias opostas do absolutismo e do liberalismo modernos.A razão é exaltada como única autoridade para reconhecer as realidades religiosas, jurídicas, políticas e científicas.A confirmação científica da hipótese de Copérnico por Kepler e Galileu, as grandes descobertas de Galileu e sua teorização e aplicação do método experimental fundaram a ciência moderna. Do ponto de vista filosófico, sua metodologia, isto é, o método experimental, constituiu-se em sua maior contribuição ao pensamento humano. Podemos resumir o método de Galileu assim: 1- Observação do fenômeno; 2- Análise dos seus elementos; 3- Indução ou relação entre os elementos e elaboração de hipótese explicativa do fenômeno; 4- Dedução ou verificação da hipótese com o cálculo e o experimento. Se o resultado do cálculo concordar com o do experimento, a hipótese poderá ser considerada lei científica. A física de Galileu é a física da quantidade, como a moderna, enquanto que a de Francis Bacon é uma física da qualidade, porque procura a essência ou qualidade, como faziam os escolásticos, só que não do ponto de vista metafísico, senão que de uma ótica puramente física.O problema do método caracterizou o pensamento moderno, como poderemos ver com Bacon, que se valeu da indução experimental e com René Descartes, que tomou o caminho da dedução matemática. Começa nesse ponto a discussão entre o empirismo e o racionalismo - ambos preocupados em solucionar o problema do conhecimento, ou seja, em responder as questões da epistemologia ou gnosiologia.Francis Bacon nasceu em Londres (1561-1626) e ocupou altos cargos nos reinados de Elizabeth I e James I. Sua frase saber é poder sintetiza muito bem seu pensamento: o homem é capaz de dominar a natureza através do progresso da ciência. A ele interessaram mais as aplicações práticas da ciência, a que chamamos técnica, que o saber teórico. Para ele, o método silogístico ou dedutivo de Aristóteles não se presta à descoberta das coisas; somente a indução, que parte da observação dos fatos particulares e concretos, pode levar à verdade e ao estabelecimento de leis gerais. Preconiza o uso da observação e da experimentação para conhecermos as causas das coisas e, assim, dominarmos a natureza em proveito dos homens - o fim da ciência é, portanto, segundo ele, pragmático e instrumental.Em sua obra mais importante o Novum Organum, Bacon, além de expor sua teoria sobre como destruir as falsas idéias que temos da realidade, para, depois, através da indução, chegar as causas e leis das coisas, demonstrou sua fé na técnica, quando afirmou que as descobertas da pólvora, da bússula e da imprensa mudaram o aspecto das coisas em todo mundo. Em 1626, Bacon fez experiências para saber quanto tempo a carne fica preservada pelo frio, recheando uma galinha com neve; já velho e fraco, expôs-se ao frio do inverno. Teve uma bronquite e morreu.Em seus últimos anos de vida, Bacon escreveu uma utopia sobre um Estado imaginário, onde todos são felizes porque os sábios que a governam se preocupam mais com a técnica e a ciência, que podem oferecer vida boa aos cidadãos, do que com os problemas econômicos e sociais. A Nova Atlântida - que recebeu esse nome para se contrapor à Atlântida mencionada por Platão na República (contrapondo ainda o rei-cientista ao rei-filósofo de Platão), como o Novo Organum, se contrapôs ao Organum de Aristóteles - é um clássico da língua inglesa e oferece uma visão profética: a ciência é uma obra coletiva, necessitando de muitos pesquisadores que recolham material para ser analisado pelos especialistas; a ciência não pode ser feita a priori, a partir de afirmações teóricas, mas sim, a partir de contato com os fenômenos reais, através da investigação empírica; a ciência tem finalidade essencialmente prática, como curar doenças e aumentar a longevidade e fabricar máquinas de vários tipos, inclusive para voar e navegar sob a água.Vejamos como o autor descreve os trabalhos na Casa de Salomão, onde vivem e trabalham os sábios que governam a Nova Atlântida, adquirindo seus conhecimentos pelo método experimental: Com respeito aos encargos e ofícios dos nossos discípulos, passa-se o seguinte: doze navegam por países estrangeiros ... trazendo-nos livros, súmulas e modelos de experimentos de todas as outras partes do mundo. Nós os chamamos de mercadores da luz. Temos três que recolhem os experimentos que se encontram em todos os livros. A esses chamamos depredadores. Temos três que reúnem os experimentos de todas as artes mecânicas, das ciências liberais e, ainda, das práticas que não chegaram a artes. A estes chamamos de homens do mistério. Temos três que tentam novos experimentos considerados úteis. A esses chamamos de pioneiros ou mineiros. Temos três que recolhem os experimentos dos quatro grupos precedentes, organizando-os em títulos e tábuas, para levar luz à dedução das observações e axiomas deles extraídos. A esses chamamos de compiladores. Temos três que examinam os experimentos dos seus condiscípulos, procurando uma forma de extrair coisas de utilidade para a vida humana, para a ciência, ... a esses chamamos de doadores ou benfeitores. Então, depois de diversos encontros e consultas entre todos os membros para considerar e avaliar os trabalhos e coleções antes levados a efeito, temos três que se encarregam de orientar novos experimentos, estabelecidos a partir dos precedentes e são eles dotados de um grau mais alto de luzes para penetrarem mais a fundo na natureza. A esses chamamos de lâmpadas. Temos três que executam os experimentos assim orientados e mantêm informados os orientadores. A esses chamamos de inoculadores. Por último, temos três que sintetizam as descobertas anteriores, feitas por experimentos, em observações, axiomas e aforismos de maior generalidade. A esses chamamos de intérpretes da natureza. Galileu havia descrito as duas etapas do método experimental: indução e dedução; Bacon dedicou-se à indução subordinando à ela a dedução - a ciência deve ser feita pela observação e pela experimentação, isto é, deve partir de casos particulares para chegar às generalizações; Descartes considera a dedução superior à indução, buscando na razão a certeza científica. O que nada mais era do que dois momentos do método experimental, foi visto como dois métodos, duas fontes de conhecimento. Encontramos aí a origem das duas correntes do pensamento moderno: o empirismo inglês (Hobbes, Locke, Berkeley e Hume) e o racionalismo (Dercartes, Malebranche, Espinosa e Leibniz). René Descartes (1596-1650) nasceu na França e iniciou o racionalismo moderno. O século XVII foi um século de incertezas - urgia que se encontrasse um método que levasse a certezas científicas, isto é, o método para a ciência. Descartes voltou-se para a matemática, porque as humanidades não traziam certezas e, ainda pautadas nos comentários dos antigos, especialmente Aristóteles, não ofereciam utilidade prática.As propostas da matemática lhe pareceram estar acima do ceticismo, porque tratavam de resultados que se mantinham válidos através do espaço e do tempo. Constatou, porém, que se aplicavam mais à mecânica e não traziam nada de fundamental para a vida humana. Resolveu, então, como Demócrito, dedicar-se a submeter o universo aos números, porque acreditava existir uma correspondência entre as leis do universo e as da matemática.Utilizou-se do método dedutivo, para, através da razão, construir a ciência: como descreveu em seu Discurso sobre o Método, começou por duvidar de tudo, mesmo das idéias que nos parecem evidentes, as idéias claras e distintas, aquelas que são iguais para todos - é a dúvida metódica: todos os conhecimentos são considerados provisoriamente falsos. Daí nasce uma certeza cintilante: se eu não existisse, não poderia estar enganado sobre tudo; eu penso, me engano e duvido - se duvido, penso e, se penso, existo - Cogito, ergo sum - penso, logo existo. Tenho a intuição clara e distinta do meu ser, este ser que existe separado do meu ato de pensar. O pensar, ou cogito, me dá o critério da evidência, isto é, que é verdadeiro tudo aquilo de que eu tenho um conhecimento claro e distinto como o conhecimento do meu eu. Não se deduz a existência pelo raciocínio, mas ela é captada imediatamente no pensar. Como nos diz Descartes ...enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa, que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava. A dúvida inicial e metódica, que invalida todo conhecimento não investigado pela razão, é a marca do racionalismo moderno. Para entender todo o desenvolvimento ulterior do pensamento europeu é fundamental que entendamos seu ponto de cisão com o pensamento anterior: a filosofia deixa de ser a ciência do ser (metafísica) e se transforma na ciência do pensar e do conhecer (gnosiologia ou epistemologia). Do cogito, Descartes parte para a idéia de Deus, que, para o autor, é inata, é como uma marca que Deus gravou na consciência do homem. Se sou imperfeito e limitado, não posso ser a causa do meu ser, ou teria dado a ele todas as perfeições - se tenho a idéia de um ser perfeitíssimo, infinito e criador, não O posso ter criado eu, ser finito e imperfeito, nem mesmo posso ter criado a idéia que tenho dele: foi Ele quem a gravou em mim; donde, Deus existe. Se temos a idéia de um Deus perfeitíssimo é porque Ele existe, uma vez que a idéia de perfeição absoluta inclui a existência, como perfeição. Quando penso num ser perfeitíssimo, automaticamente, penso nele como existente.Além da idéia de Deus, Descartes considera inatas todas as idéias originárias, como os princípios lógico-matemáticos, as noções morais, etc. Quando o homem erra, é porque sua vontade livre o leva a emitir julgamentos, quando o que está sendo julgado não é racionalmente evidente. Assim, o erro nunca deriva de Deus ou do intelecto humano.Para provar a realidade do mundo físico, Descartes torna a apelar para Deus: se vejo a realidade sensível é porque ela existe, porque Deus não iria me enganar, uma vez que Ele é a verdade e a bondade (le bon Dieu). Isso não quer dizer, porém, que as coisas são tal e qual eu as percebo pelos sentidos; estes só têm utilidade prática, dando a conhecer o que é útil e prático e não, necessariamente, o que é real; as idéias das coisas devem ser captadas pelo intelecto - além de por suas qualidades sensíveis, por suas qualidades inteligíveis.A alma distingue o homem dos animais; apenas ele possue corpo e alma. A alma é capaz de ações e paixões - o homem deve aprender a superar as paixões pela razão (sabedoria) para ser dono de sua liberdade. Embora a idéia de uma matemática universal supusesse o ideal de uma sabedoria racional, que pudesse orientar a vida, Descartes achou necessário propor uma moral provisória, que ensinasse a ser feliz. Assim, apresenta três regras para o bom comportamento: 1) Obedecer às leis e costumes do país, conservar a religião tradicional e vincular-se às opiniões mais moderadas; 2) ser firmes e resolutos na ação, mantendo sua opinião, desde que resolvidos a tanto; 3) esforçar-se por vencer-se a si mesmo mais do que submeter-se ao destino e por modificar seus próprios pensamentos mais do que a ordem do mundo. Somos livres, quando, para afirmar ou negar, seguir ou fugir das coisas que o intelecto nos propõe, agimos de modo a não seguir nenhuma força exterior que nos obriga. É fácil notar a influência estoica na moral cartesiana.Descartes abraça o dualismo metafísico que levanta problemas de difícil resolução: de como espírito e matéria, duas substâncias heterogêneas, se relacionam e interagem e de como as substâncias finitas têm realidade frente a Deus, que é substância infinita.No que diz respeito à metafísica, Descartes, supondo a existência das idéias inatas, inclina-se para o idealismo e, em consequência, aproxima-se de Platão e Santo Agostinho; por isso, muitos autores de influência agostiniana se dizem cartesianos. Quanto ao método dedutivo, é inegável sua herança aristotélica.A filosofia de Descartes teve ampla aceitação na Europa, foi o pensamento mais importante do século e influenciou todo o pensamento subsequente. O cogito cartesiano está na raiz de uma filosofia da consciência - compreender o mundo partindo da consciência como dado evidente, ou, ao contrário, ver a consciência como um dos aspectos do mundo objetivo é o dilema da Filosofia contemporânea.(Gilles-Gaston Granger). Ler Descartes e repensá-lo nos introduz à contemporaneidade. Referências Bibliográficas: Bacon, Francis - Novum Organum e Nova Atlântida, in Os Pensadores, vol XIII, Abril Cultural, São Paulo, 1973.Descartes, René - Discurso do Método, in Os Pensadores, vol.XV, Abril Cultural, São Paulo, 1973. Sciacca, Michele F. - História da Filosofia, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1968.A Difusão do Cartesianismo: Malebranche e Pascal; Espinosa.As idéias de Descartes, ainda durante sua vida, suscitaram muita polêmica. Seu pensamento foi o mais importante do século: repercutiu por toda Europa e transformou-se em moda na alta sociedade da França.Apesar da oposição dos jesuítas e dos protestantes, que acreditavam ser a liberdade de investigação perigosa para a religião, o cartesianismo influenciou o desenvolvimento do pensamento subsequente, destacadamente com Malebranche, Pascal e Espinosa.O francês Nicolas Malebranche (1638-1715) foi o sistematizador do chamado ocasionalismo - o corpo e a alma não interagem - o corpo, nas sensações, não age sobre a alma, assim como ela, nos atos de vontade (volições), não age sobre o corpo; ambos não produzem a sensação e a volição, mas são ocasiões para que Deus (única causa eficiente) as produza. Uma bola em movimento, que bate noutra, não é a causa do movimento da primeira (seria preciso algo que lhe tivesse imprimido movimento e assim por diante), mas apenas ocasião para que Deus faça acontecer sua vontade. Em sua obra principal - Recherche de la Verité - ensina que não há comunicação entre a mente e o corpo e que, portanto, a mente não pode conhecer diretamente o mundo. Em Deus existem as idéias de todos os seres; como estamos diretamente unidos a Ele pela nossa alma, é através da intuição da mente de Deus que vemos os modelos das coisas criadas por Ele, que se ordenam por leis. Como nos diz Malebranche, se não víssemos Deus, não veríamos nada.Blaise Pascal, (1623-1662), filósofo e cientista, (descobridor do vácuo físico) fez a primeira crítica ao conceito de razão cartesiano, que a supunha infinita e absoluta. Para ele o conhecimento humano não pode ser perfeito, porque a verdade, infinita, ultrapassa a capacidade finita da razão humana. Para ele, o esprit de finesse, a razão do coração, é uma intuição direta que não é racional e que permite conhecer muito além do que a dedução pode ensinar. O homem deve ser humilde em reconhecer seus limites racionais e, com Agostinho, ensinou que nessa consciência dos limites da razão está a nobreza do homem. Reconhecer essa limitação, oriunda do pecado original, e saber que apenas a graça divina poderá, com auxílio do sobrenatural e com o concurso da vontade humana, nos restituir a grandeza anterior ao pecado, depende do esprit de finesse, que deve ser adaptado a cada indivíduo, uma vez que, como ele acentuou, somos uns diferentes dos outros. Como diz Sciacca, Descartes fornece as regras do método para construir a ciência e a filosofia racional, o sistema da razão que, separada da fé, se e quando pode, não cogita de Deus; Pascal procura as regras do método para esclarecer o homem a si mesmo e construir uma filosofia cristã, fundamento racional da fé. Dois homens e dois métodos no limiar do pensamento moderno: a antítese nos ocupa ainda hoje. Ele foi o primeiro pensador que, nos seus Pensées, nos primórdios do modernismo, tentou fazer, através do método do coração, uma nova síntese entre fé e ciência.Baruch Espinosa, (Amsterdam, 1631-1677), filho de judeus portugueses, mesmo aceitando o método da dedução matemática de Descartes, considerou toda a filosofia como ética, como forma de agir, como religião racional e não como ciência. Para ele, Deus e a natureza se identificam; não existem vários seres, mas apenas uma única Substância, Deus, que não existe separado do mundo (monismo) - todo modo (forma individual dos seres) sai da Substância necessariamente, como os lados do quadrado saem do próprio quadrado: Deus é causa nos seus efeitos (causalidade imanente); não é, portanto, causa externa do mundo, porém causa imanente. Deus é a própria ordem necessária e geométrica. Como em Plotino e nos néo-platônicos, liberdade e necessidade se identificam: a liberdade de Deus consiste na necessidade que Ele tem de se desenvolver espontaneamente e não em poder escolher um modo ou outro de se determinar. Não há finalidade na sua causalidade, a não ser seu próprio absoluto desenvolvimento.Sua visão da filosofia como ética pode ser entendida a partir dos três estágios do processo prático-cognitivo que ele distinguiu: a) conhecimento sensitivo, pelo qual o homem conhece as coisas individuais - é imperfeito e seu aspecto prático é a paixão: o homem quer dominar as coisas como se as possuísse - é o estado da escravidão; b) conhecimento racional, que entende as coisas em suas ligações de causalidade - é a ciência, que livra da paixão e contempla e aceita a ordem universal, passiva e imperturbavelmente (apatia estóica). c) conhecimento intuitivo, grau supremo do conhecimento, além da razão, que intui os seres emanando de Deus - livres do tempo, quantidade e número, chega-se ao amor intelectual de Deus- do processo geométrico descendente da Substância Absoluta à multiplicidade, faz-se o processo ascendente inverso da multiplicidade ao Absoluto, onde todas as coisas se anulam no mar infinito do ser. A unidade é encontrada além da razão, na intuição, que é supra-racional.Ambos, Pascal e Espinosa, procuraram resolver pela teologia os problemas deixados por Descartes: a proposta de Pascal foi teísta, isto é, admitiu a transcendência de Deus; a de Espinosa foi panteísta, negando a revelação divina e a transcendência de Deus, resolvendo a religião na filosofia, situando-se, assim, como um filósofo racional perfeito. Para ele, Deus é a natureza e o anseio dos homens de eternidade, nada mais é que o desejo de se dissolver na Substância. As idéias de liberdade e de pessoa são vistas por ele como ignorância - pensamos que somos livres porque não conhecemos as causas de nossas ações; acreditamos ser pessoas reais porque não sabemos nos ver como emanações da Substância Absoluta. O Deus de Espinosa, como em Plotino e nos estóicos, não é o Deus da religião: é a razão divinizada, o que faz de Espinosa um teórico da religião natural. Seu panteísmo influencia, até hoje, os que pretendem uma religião absolutamente racional, que não se baseie em dogmas e revelações divinas. Quanto ao aspecto político, acreditou que o direito de natureza se identifica com o direito natural; nem todos chegam ao estágio de conhecimento natural que permite fazer o que é de interesse comum - nasce, então a necessidade do governo para impor a obediência às leis - passa-se, assim, do direito natural ao direito positivo. O governo deve ser constitucional, com representantes eleitos, para que o governante não sobreponha seus interesses ao interesse público. Como vemos, Espinosa foi um teórico do liberalismo político. O Desenvolvimento do Empirismo: Hobbes e Locke (sécs.XVII-XVIII)Thomas Hobbes (1588-1679) nasceu na Inglaterra e foi influenciado pelo racionalismo de Descartes, com quem polemizou e pelo empirismo de Bacon, de quem foi secretário, além de Galileu, com quem se encontrou na Itália. As idéias de Descartes e Bacon, opostas e conflitantes, foram fundamentais para a superação da escolástica medieval e para uma nova visão da natureza e do homem. A obra de Hobbes se constituiu num ponto de contato entre o racionalismo e o empirismo, algo como uma síntese de ambos. Embora racionalista, Hobbes discordou de Descartes, afirmando que a frase penso, logo existo supõe algo que pense e que uma coisa que pensa é uma coisa corporal. Contra o dualismo de Descartes, que afirma existirem duas substâncias, a material e a espiritual, Hobbes externa seu materialismo dizendo que o sujeito que pensa é corporal. E acrescenta: que diremos agora, se talvez o raciocínio não for outra coisa senão uma reunião e encadeamento de nomes, pela palavra é? De onde se segue que, pela razão, nada concluímos quanto à natureza das coisas, mas só quanto às suas denominações, isto é, pela razão vemos apenas se reunimos bem ou mal os nomes das coisas, segundo as convenções que, de acordo com nossa fantasia, tenhamos feito quanto aos seus significados. Esse texto bem demonstra o nominalismo de Hobbes, que reduziu os conceitos a meras palavras. E ainda continua: Se isso é assim, como parece ser, o raciocínio depende de nomes, os nomes dependem da imaginação e a imaginação, talvez, (e isso segundo o que sinto), dependerá dos órgãos corporais; e, assim, o espírito não será outra coisa senão um movimento em certas partes do corpo orgânico.Para Descartes, o movimento explica as substâncias, suas propriedades e as transformações da matéria - esse mecanicismo explica, porém, somente o mundo material, mas não o mundo espiritual (intelectual, psicológico, etc.). Para Hobbes, o mecanicismo explica tudo: as modificações se devem ao movimento de corpos modificados - existir é existir no espaço, é ser um corpo em movimento. E ele estende o mecanicismo ao espírito - os sentidos, afetados pelo movimento de corpos exteriores, transmitem-no ao cérebro e daí ao coração, onde se iniciaria um movimento de reação em sentido inverso - o início dessa reação seria a sensação: a sensação é o princípio do conhecimento dos próprios princípios, e a ciência dela deriva inteiramente. A ciência seria feita a partir de nomes dados aos elementos percebidos pelas sensações, que se somam - essa soma levaria à ciência que seria o conhecimento das consequências de uma palavra à outra. Resumindo, Hobbes acreditou que o conhecimento humano se origina dos entrechoques de corpos que vêm de movimentos exteriores e que, através dos sentidos chegam ao espírito (que é um corpo tênue e sutil); esses movimentos associam-se uns aos outros e se organizam como ciência. Hobbes, que manifestou profundo interesse pelos problemas sociais, aplicou o materialismo da estrutura da realidade e o nominalismo da construção da ciência à política e à moral. Para ele, o motor da ação humana moral e política é o conato (conatus) ou esforço (começo interno do movimento animal); trata-se de uma solicitação para aproximar-se do que agrada e se afastar do que desagrada. Tendência e repulsão ao objeto levam, respectivamente, ao prazer e à dor. É o objeto que induz o indivíduo à ação (determinismo). A visão de vida do filósofo é nitidamente competitiva: a vida seria como uma corrida que se deve vencer sempre - ela começa com um esforço que se chama desejo: ultrapassar sempre os outros é a felicidade; ser ultrapassado é a miséria; sair da corrida é morrer. O estado de natureza dos homens, estado esse que caracteriza o homem antes que ele faça parte do estado social, é dominado pelo egoísmo: cada um procura a auto-preservação e assim, no dizer de Hobbes, o homem é o lobo do homem (homo homini lupus); impera a guerra entre todos (bellum omnium contra omnes). Não há diferença entre justo e injusto e a utilidade é a medida do direito. Esse modo de ver o estado de natureza do homem é bastante diverso do dos outros filósofos políticos, como por ex., Aristóteles, para quem o homem é um animal social. O homem procura o prazer e quer para si os bens comuns: é a cupiditas naturalis, primeira tendência natural. Porém a razão, ratio naturalis, segunda tendência natural, convence os homens de que esse agir instintivo prejudica a todos e de que é melhor aceitar um direito pacífico para evitar a guerra e, assim, preservar melhor a vida - é da guerra que surgem as leis descobertas pela razão, ou direito natural, que proíbe aos homens agirem de forma a destruir a vida ou subtrair os meios de conservá-la. Daí deriva a primeira lei natural: obter a paz, se possível ou, se impossível, é preciso procurar em toda parte os recursos para a guerra, sendo lícito empregá-los. Dela deriva a segunda lei natural: O homem, espontaneamente, quando todos o fazem e enquanto julgar necessário à sua paz e à sua defesa, deve renunciar ao seu direito sobre todos e contentar-se em ter tanta liberdade em relação aos outros quanto ele mesmo reconhece para os outros em relação a si próprio. Estabelece-se, de comum acordo, um contrato (transferência mútua de direito) pelo qual todos os homens abdicam de seu direito natural, delegando-o a um poder máximo que todos concordam em obedecer - assim surge o Estado, que está fora do contrato e em benefício do qual todos concordam em abdicar da própria liberdade; trata-se, portanto, de um Estado com poder absoluto para a contenção do egoísmo natural dos homens, o que impede a guerra e constitui a unidade de povo. A paz, que possibilita a conservação da vida exigida pela razão, cria o pacto social e, por ele , o homem ingressa na ordem moral, que poderia ser resumida pela máxima: não faças aos outros o que não queres que te façam. É interessante observar que, embora seja partidário do absolutismo, Hobbes também preconiza o pacto social. Não há aí contradição, se consideramos que, para ele, o pacto levaria, necessariamente, ao poder absoluto do governante; em sua forma de pensar, esse poder, ao contrário do que pensavam outros absolutistas da época, não se originaria do direito divino (Deus confere poder ao governante), mas do comum acordo (do pacto) entre os governados. Embora ele admitisse a democracia, por temor à ignorância dos membros da assembléia, bem como de sua demagogia, preferiu, para governar, um rei, secundado por um conselho secreto de homens escolhidos. Toda autoridade religiosa deveria pertencer ao rei, para evitar divergências que poderiam levar a guerras e o culto deveria ser unificado e obrigatório, para evitar que fossem encontradas, numa mesma cidade, as mais absurdas opiniões quanto à natureza divina e as mais impertinentes e ridículas cerimônias jamais vistas.As idéias de Hobbes sobre o homem e o Estado, encontradas sobretudo em suas obras Leviatã e Sobre o Cidadão, são, em grande parte, um reflexo da época e situação em que o autor viveu: as lutas sociais e econômicas configuradas pelos conflitos entre o poder real e o do Parlamento, na Inglaterra do século XVII. Suas idéias de controle social férreo não se realizaram e, ao contrário, o poder real se viu enfraquecido quando, em 1689, os liberais do Parlamento lograram instituir a autonomia dos poderes, o prevalecimento da mentalidade civil contra o militarismo, a pluralidade de confissões religiosas e a liberdade de pensamento e de expressão, derrotando para sempre, na Inglaterra, o absolutismo real.John Locke, (1632-1704), também inglês, foi um dos maiores representantes da cultura inglesa de seu tempo - a época do Iluminismo. Foi um pensador liberal, racionalista em religião e, como foi comum entre os pensadores ingleses (o metafísico de vida solitária se encontra mais na França, na Itália e, principalmente, na Alemanha, mas não na Inglaterra), um homem de ação preocupado com sua profissão (medicina), com a política, a fisiologia e a educação. Sua filosofia investigou o campo da gnosiologia (epistemologia) abordando o problema crítico do conhecimento. Ele partiu da crítica do intelecto humano, que é a fonte de todo conhecimento, para conhecer seus limites e a sua extensão. Então, nessa filosofia que pretende, longe das indagações metafísicas, conhecer o processo cognoscitivo, ele indagou, basicamente, sobre 1) a origem e 2) o valor do conhecimento - essas são as duas linhas mestras do seu pensamento. Em sua obra, Ensaio sobre o Entendimento Humano, ele criticou a doutrina das idéias inatas, admitida na época por Descartes, pelos cartesianos e pelos néo-platônicos ingleses. Segundo ele, não existem tais idéias (princípios morais, a idéia de Deus, etc.), uma vez que as crianças, os selvagens e os ignorantes não as possuem; além disso, em culturas, épocas e lugares diversos, elas são também diversas, donde, não são universais e, se o fossem, não teriam serventia, pois se pode chegar a um bom conhecimento das coisas pela experiência (por ex., saber que doce não é amargo). Locke comparou a alma humana, na hora do nascimento, a uma tabula rasa, algo como uma folha de papel em branco, onde nada ainda foi escrito. Através da experiência, essa página, gradualmente, vai sendo escrita, isto é, a mente humana vai acumulando conhecimentos, idéias, todas originárias da experiência. Assim, todo nosso conhecimento tem origem na experiência. Há dois tipos de experiência: 1) a sensação (percepção externa), que dá as idéias dos objetos externos, como cor, som, cheiro etc., isto é, as idéias das coisas e 2) a reflexão ( percepção interna) que nos dá as idéias dos nossos atos espirituais (julgamentos, crenças etc., isto é, as idéias do eu). Esses dois tipos de idéias, que o intelecto recebe passivamente, são chamadas por Locke de idéias simples, que vêm de experiências concretas, como frio, quente, doce, amargo, branco, azul, etc. O indivíduo, então, pela atividade do seu intelecto, une essas idéias formando idéias conjuntas, como as de substância (várias idéias simples que levam à noção do substrato de uma coisa, por ex. ouro: duro, amarelo, etc.), de modos (propriedades das coisas), e de relações (distinção entre duas idéias: maior-menor, causa-efeito etc.). O intelecto também é responsável pelas idéias gerais, formadas por abstração e pelas idéias da reflexão, ou do sentido interno. Tendo discutido a origem das idéias, Locke se empenhou em estabelecer o valor do conhecimento: O que podemos conhecer? Quando o conhecimento é verdadeiro? Vamos entender seu pensamento a partir do que ele diz no Ensaio: É evidente que o espírito não conhece as coisas imediatamente, mas apenas por intermédio das idéias que delas tem. A idéia é intermediária entre nós e as coisas. As idéias não são verdadeiras nem falsas - sua verdade ou falsidade dependerá do acordo ou desacordo entre as idéias, o que pode ocorrer de dois modos: 1) esse acordo ou desacordo é percebido imediatamente com evidência, e teremos a verdade intuitiva, que não precisa ser demonstrada (ex.: 2+2 = 4, ou alto não é baixo),ou 2) o acordo ou desacordo entre as idéias não é percebido imediatamente - embora baseado em conhecimentos intuitivos, nesse caso, nosso intelecto recorre a idéias intermédias e temos, então, a verdade por demonstração (as idéias matemáticas, as morais etc.), que são construídas pela nossa mente. Mas, perguntou Locke, se apenas conhecemos as idéias, será que elas correspondem à verdade das coisas ? Responde afirmativamente, apenas para a certeza (intuitiva) de nossa própria existência, para a certeza (demonstrativa) da existência de Deus e para a certeza da sensação relativa às idéias simples e, mesmo assim, apenas enquanto dura a sensação - se me queimo, só tenho certeza da existência do fogo, enquanto durar o ardor; depois, o fogo existirá ou não. As idéias conjuntas, sendo formadas pelo intelecto, não têm valor objetivo. São apenas nomes que usamos para para dar nome e classificar as coisas; assim, o autor deixou claro que, para ele, as proposições universais da ciência têm apenas valor prático e nada têm a ver com a verdade das coisas - são invenções da nossa mente que se referem apenas a palavras ou idéias e não às próprias coisas. Vemos aí, bem evidente, o nominalismo de Locke.Quanto às substâncias, o autor admitiu sua existência, mas assinalou que não podemos conhecê-las - apenas suas qualidades poderão ser conhecidas através da pesquisa experimental. Para Locke, as idéias são imagens que se originam na sensação, não sendo exemplares inteligíveis (como no idealismo ontológico platônico-agostiniano). Assim, só conhecemos da realidade essas idéias ou imagens que os sentidos nos oferecem (empirismo); a realidade é o conteúdo de nossa consciência subjetiva ou empírica cuja ligação com as coisas em si desconhecemos.A teoria social e política de Locke derivou de suas idéias sobre o conhecimento humano: assim como não existem idéias inatas, tampouco existe poder inato e de origem divina, como queriam os absolutistas. Em suas obras, Primeiro Tratado sobre o Governo Civil e no Segundo Tratado (que foram a primeira teorização do liberalismo político moderno), afirmou, como Hobbes, que o estado de sociedade e o poder político são gerados por um pacto (contrato) entre os homens. No entanto, enquanto Hobbes pretendia, com as teses do estado natural e do contrato social, defender o absolutismo, Locke acreditava exatamente o contrário - que , no estado natural, os homens, governados pela razão, iguais, livres e independentes, desejariam preservar a paz e a humanidade e evitariam invadir os direitos alheios. A diferença entre as duas formas de pensar emana do que ambos entendiam por estado natural. (ver Hobbes).Ao contrário de Hobbes, Locke não via os homens como egoístas por natureza; embora acreditasse que a base da moral fosse o bem-estar (utilitarismo), ensinou que a lei da natureza (que coincide com a lei divina) prescreve uma ordem ética racional - o que é útil para cada homem se identifica com o bem-estar de todos.Como Hobbes, acreditava que a sociedade se originou dum contrato, sem que, no entanto, exista oposição entre o estado de natureza e o de sociedade; simplesmente há uma proteção dos direitos fundamentais que o homem tem no estado de natureza (vida, liberdade, propriedade) por um poder que, por contrato entre os homens, recebe os direitos de defesa e punição. Não se cria nenhum direito novo a ser acrescido aos direitos naturais e, assim, ninguém renuncia aos seus direitos naturais em favor do Estado. Se o Estado não cumprir seus deveres, poderá haver resistência e rebelião da parte dos cidadãos. Na sociedade criada pelo contrato social haveria leis aprovadas pelos seus membros e postas em execução por juízes imparciais.Coerentemente, prega a tolerância religiosa, uma vez que um não deve invadir a liberdade do outro.Hobbes foi o teórico do absolutismo dos Stuart e Locke foi o teórico da monarquia liberal inglesa que se iniciava - seus dois Tratados justificaram a revolução burguesa.Locke antecipou a tendência do Iluminismo francês de reduzir a filosofia a gnosiologia e, ainda mais, a filosofia ao estudo das faculdades da mente humana (psicologia), característica relevante dos chamados ideólogos. Os iluministas também se valeram de suas idéias liberais para fundamentar a Revolução Francesa. Influenciou ainda Montesquieu na formulação da teoria da separação dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário) e os pensadores americanos, que colaboraram na Declaração da Independência dos Estados Unidos, em 1776. A influência de Locke no pensamento ocidental foi da mais profunda importância e suas idéias fundamentam, ainda hoje, as democracias liberais.
Da mesma forma como a Idade Média foi por muitos considerada a idade das trevas, o Renascimento foi visto como uma reedição da antiguidade. Embora seus representantes tenham se inspirado nas obras antigas, seus esforços resultaram em projetos e realizações originais - seu ideal foi retornar ao antigo, para poder ultrapassá-lo. O renascentista foi um homem do seu tempo: possuindo o sentido da história, sabia que o mundo antigo era diferente do seu e que, pretendendo reviver a antiguidade, procurava viver uma vida diversa da da Idade Média.Esse movimento filosófico e literário, iniciado na Itália, na segunda metade do século XIV e, depois, difundido no resto da Europa, tem no humanismo sua característica principal. O aspecto primordial do Humanismo renascentista é a liberdade do homem, que o faz capaz de estabelecer e desenvolver seu projeto de vida. Ao contrário do conceito medieval de homem, inteiramente submetido à Igreja e ao Sacro Império Romano-Germânico, o Humanismo o vê livre, em relação à natureza e à sociedade. Restaurou a dignidade humana, pela admissão da liberdade e capacidade de interagir com o mundo.O termo humanismo originou-se do latim humanitas, definida por Cícero como a cultura que distingue o homem civilizado da natureza e da barbárie. Assim, o retorno aos clássicos antigos, desenvolvendo a cultura, deveria permitir à humanidade a conquista de uma natureza humana mais de acordo com o ideal clássico greco-romano. O Humanismo e o Renascimento são apenas dois momentos do mesmo movimento, tendo, portanto, os mesmos fundamentos: 1) afirmação do valor e da dignidade da natureza humana; 2) livre investigação da natureza física, sem sujeição à autoridade de Aristóteles e à autoridade religiosa, em campos fora de sua alçada. Esses dois fundamentos são o naturalismo do Humanismo - que tem como objeto a natureza humana e o naturalismo do Renascentismo que tem como objeto a natureza física.A fé inabalável na natureza humana fez com que os renascentistas acreditassem que a inteligência e a liberdade do homem são ilimitadas e que a ele, sendo livre, para agir bem, basta seguir as leis da sua natureza. Leon Battista Alberti (1404-1472) ilustra muito bem essas idéias, quando diz ser o homem o artífice de seu próprio destino. Esse homem ideal, que procura realizar-se, reedita a idéia platônica de homem. Trata-se, sem dúvida, de um otimismo utópico, mas que propiciou grande progresso e fundamentou o surgimento da cultura moderna.Acreditando que o mundo natural é o domínio do homem, o movimento renascentista apregoou um naturalismo, que, ao lado da afirmativa do valor intelectual do homem e da sua liberdade, acentuou, também, o valor do corpo humano e seus prazeres. Em contraste com o ascetismo medieval, a ética volta às idéias epicuristas antigas - o bem é o prazer e a virtude é uma organização de prazeres.Do que até aqui foi dito, não se deve concluir que houve uma profunda ruptura cultural entre a Idade Média e a Renascença; em plena Idade Média, as cidades já possuíam estrutura econômica e social capitalista, propiciando, assim, o desenvolvimento da burguesia capitalista e da monarquia absoluta que condicionaram o Renascimento.Também não se conclua que, no aspecto religioso, se possa falar de uma cisão total com o conceito de religiosidade medieval. Na verdade, extrapolou-se o cristianismo em duas direções: 1) um humanismo com tendência antropocêntrica (o homem é o centro do universo), que deu origem às correntes racionalísticas, filosóficas e científicas que caracterizam o pensamento moderno; 2) um humanismo super-teológico, do qual surgiram os movimentos religiosos iniciados por Lutero e que chamamos de Reforma.O intrincamento de concordâncias e oposições gerou problemas que são considerados típicos do Humanismo, do Renascimento e da Reforma e que, até hoje, fazem parte dos questionamentos da cultura contemporânea. Os humanistas apresentavam, em sua maioria, bastante religiosidade e propensão para religiões misteriosas, astrologia, milagres e ocultismo; não foram nem anti-religiosos, nem anti-cristãos (pelo menos oficialmente), e deram prioridade a dois aspectos característicos dessa época: a tolerância religiosa e a função civíl da religião.Procuravam uma paz religiosa que deveria decorrer do estudo de várias correntes filosóficas e que fora destruída pelas disputas teológicas.A tolerância religiosa foi defendida por idéias que deixam entrever a aurora do pensamento moderno; dois pensadores representam com grandeza esse momento: Erasmo de Rotterdam (1465/1469-1536) e Thomas More (Morus, em latim-1478-1535). Estudaram juntos em Oxford, foram amigos por muitos anos, e conceberam, em conjunto, a idéia de restaurar a teologia através de novas edições dos textos bíblicos revolucionando, assim, pela hermenêutica (interpretação) bíblica, muitas idéias sobre as escrituras sagradas prevalecentes na época medieval. A partir daí, foram feitas muitas traduções dos textos originais, que modificaram, em muito, o cristianismo, tal como era pensado na Idade Média.Várias obras de Erasmo, que era frade, satirizavam costumes sociais e da Igreja, pessoas notáveis da época, descritas sob pseudônimos (mas facilmente identificáveis), a vida conventual como espiritualidade e a carreira militar. Mas a obra que o fez um autor celebrado por todos e que, por sua ousadia, foi das que mais abalou o seu tempo - e que é uma obra-prima da literatura universal - chama-se O Elogio da Loucura. Nesse livro, escrito em apenas sete dias e que foi dedicado a Thomas More, o autor faz a Loucura subir ao púlpito e auto-elogiar-se, tendo sempre, a seu lado, a Lisonja e o Amor Próprio. Dessa forma, criticou os filósofos escolásticos, os nobres arrogantes, os juristas detalhistas, os bispos luxuriosos, os negociantes desonestos e os militares estúpidos.Vejamos, em alguns parágrafos selecionados, como, através da ironia e da finura de espírito, Erasmo expõe as mazelas dos homens de sua época, que muito pouco ou nada diferem dos homens contemporâneos:- ... que mais poderia convir à Loucura do que ser o arauto do próprio mérito e fazer ecoar por toda parte os seus próprios louvores? ... Assim, pois, sigo aquele conhecido provérbio que diz: Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo.- ... pareceu-me igualmente oportuno imitar os retóricos de nossos dias, que se reputam outras tantas divindades, uma vez que podem gabar-se de outras línguas como a sanguessuga ( que teria a língua bifurcada) e consideram coisa maravilhosa inserir nos seus discursos, de cambulhada, mesmo fora de propósito, palavrinhas gregas, a fim de formarem belíssimos mosaicos.- Para nós, os tolos, um dos maiores prazeres não consistirá em admirar, com a máxima surpresa, tudo o que nos vem dos países ultramontanos?- Mas, afinal de contas, por que é que esse grande homem (Sócrates) foi acusado perante os magistrados? Por quê foi ele condenado a beber cicuta? Não seria talvez a sua sabedoria a causa de todos os seus males e, finalmente, de sua morte? Tendo passado toda a vida a raciocinar em torno das núvens e das idéias, ocupando-se em medir o pé de uma pulga e se perdendo em admirar o zumbido do pernilongo, descuidou-se esse filósofo do estudo e do conhecimento dos homens, bem como da arte sumamente necessária de se adaptar a eles. Aí tendes, nesse retrato, o que diz respeito a muitos dos nossos.- Que espécie de homem é um estóico? ... Eis o retrato de um estóico: surdo à voz dos sentidos, não sente paixão alguma; o amor e a piedade não impressionam absolutamente seu coração duro como o diamante; nada lhe escapa, nunca se perde, pois tem uma vista de lince; tudo pesa com a máxima exatidão, nada perdoa; encontra em si mesmo toda a felicidade e se julga o único rico da terra, o único sábio, o único livre, numa palavra, pensa que só ele é tudo e o mais interessante é que é o único a se julgar assim.- A ignorância tem, pois, dois grandes privilégios: um, que consiste em estar de acordo com o amor próprio e outro, que consiste em trazer em si a maior parte do gênero humano. Por conseguinte, seríeis duas vezes ingênuos, se quisésseis elevar-vos acima do nível comum, com toda vossa ciência filosófica.- ... Além disso, mostram as estátuas e os retratos dos antepassados, enumeram os bisavós e os tataravós; recordam os antigos sobrenomes e os feitos dos seus maiores. ... Esses idiotas fazem um alto conceito de si mesmos e estão sempre cheios da estéril idéia da sua ascendência.- Merecem ser incluídos nessa categoria os habitantes da caverna de Platão. Ao verem, os tolos, as sombras e as aparências de diversas coisas, admiram-nas e nada mais procuram, dando-se por satisfeitos.- Os sábios são em número tão escasso que nem vale a pena falar deles e eu desejaria saber se é possível descobrir algum.- ...vejamos o que são os filósofos. Não passam, também, de ridículos loucos: quem poderá conter o riso ao ouví-los sustentar seriamente a infinidade dos mundos? O sol, a lua, as estrelas... são por eles tão conhecidos como se os tivessem medido palmo a palmo ou com um fio.... vangloriam-se de distinguir as idéias, os universais, as formas separadas, os quid, os esse, em suma, todos os objetos que, de tão pequenos, só poderiam distinguir-se, se não me engano, com olhos de lince.- A propósito de combate, parece-me que os cristãos deveriam mudar as suas tropas movidas contra os infiéis. Se, em vez da soldadesca, que há tanto tempo empregam inutilmente nas cruzadas, expedissem contra os turcos e os sarracenos os clamosos escotistas (de Duns Scotus), os obstinados occamistas (de Guilherme Occam), os invencíveis albertistas (de Alberto Magno) e toda milícia dos sofistas, quem poderia resistir ao assalto dessas tropas coligadas? - Demonstrou o pregador, mas com uma sutileza imperceptível, que tudo quanto se podia dizer para glorificar o Salvador, tudo se achava nas letras componentes do seu augustíssimo nome ... O velho bajoujo teve a felicidade de separar o vocábulo Jesus em duas partes iguais: Je-su. Mas, que faremos daquele s, que, tendo perdido o companheiro, está surpreso de se achar sozinho? Um pouco de paciência e logo repararemos o mal. Os hebreus, em lugar de s, pronunciam syn; ora, em bom escocês, syn quer dizer pecado. Pois bem! - exclamou o pregador - quem será tão incrédulo ao ponto de negar que o Salvador tirou os pecados do mundo? - O sistema do cristianismo, acerca da felicidade da vida, muito se avizinha do dos platônicos. Segundo o princípio fundamental desses dois sistemas, a alma está encarcerada no corpo, ligada pelos nós da matéria e de tal modo oprimida pelo peso da matéria orgânica que muito dificilmente pode descobrir e apreciar a verdade. Foi por essa razão que Platão definiu a filosofia como sendo a meditação da morte, porque tanto a filosofia como a morte destacam nossa alma das coisas visíveis e corporais.- Em lugar de um epílogo, quero oferecer-vos duas sentenças. A primeira, antiquíssima, é esta: Eu jamais desejaria beber com um homem que se lembrasse de tudo . E a segunda, nova, é a seguinte: Odeio o ouvinte de memória fiel demais.- E, por isso, sede sãos, aplaudi, vivei, bebei, ó celebérrimos iniciados nos mistérios da Loucura.Erasmo valeu-se de sua grande cultura clássica para produzir uma obra artística de estilo admirável, onde sua própria opinião permanece oculta; se se pretendesse discutir as opiniões e críticas contidas nesse livro, ele poderia tranquilamente alegar que fora a Loucura, e não ele, quem as expressara. E quem deveria levar a sério a Loucura?Esse livro, embora possa parecer uma brincadeira, teve grande influência na eclosão da Reforma protestante, porque criticava os costumes da Igreja, que contradiziam os ensinamentos do cristianismo original e aos quais se opunham os reformadores. Não se acredite, no entanto, que tenha havido concordância de pensamento nas idéias fundamentais entre Erasmo e Lutero; enquanto o primeiro quer reformar os costumes pela razão, o segundo acredita poder fazê-lo pela fé. Erasmo, como verdadeiro humanista que acredita na razão humana, achava ser possível fazer uma opção moral entre o bem e o mal, através do livre arbítrio; Lutero, vendo a humanidade pela lente de um agostinianismo extremado, considerava o homem perdido pelo pecado e incapaz de se salvar por suas próprias ações - apenas a graça divina poderia redimí-lo. Essa crença (a fé remove montanhas e a razão não), comum entre os camponeses da época, era interessante para os príncipes alemães que queriam livrar-se da autoridade do Vaticano e apossar-se de suas terras em solo alemão. Assim, apoiaram Lutero, que, em 1517, iniciou a Reforma. Os dois lados, isto é, Lutero e a Igreja Católica, tentaram atrair Erasmo, que, no entanto, se conservou independente, coerente com sua crença de que o homem, como ser inteligente e livre, deveria combater todos os fanatismos, achando seu caminho pela razão e fazendo suas escolhas pelo livre arbítrio. Erasmo, humanista universal no mais completo sentido do termo, situou o homem acima de todos os valores, dignificando-o como ser racional.Thomas More, nascido em Londres, foi Chanceler de Henrique VIII e juiz conpetentíssimo. Foi muito influenciado por Erasmo de Rotterdam, que era doze anos mais velho do que ele e que o conheceu aos vinte e um anos de idade. Ficaram muito amigos.Na Renascença, a filosofia clássica foi estudada de forma bem diferente dos estudos da filosofia medieval. A par das reinterpretações de Platão e Aristóteles, os humanistas voltaram-se para filósofos que tinham sido deixados de lado ou mesmo condenados na Idade Média.Em sua obra principal, a Utopia, podemos observar o retorno do epicurismo e da filosofia estoica. Entretanto, não se deve pensar que ele nada acrescentou às idéias antigas. Ao contrário, estabeleceu as bases do epicurismo cristão, acrescentando contribuições platônicas (Platão era seu filósofo favorito) que já haviam sido , por assim dizer, cristianizadas: crença na providência divina, na imortalidade da alma e na recompensa depois da morte. Epicuro, ao contrário, descreveu deuses que nada tinham a ver com os homens e que não poderiam ajudá-los a encontrar qualquer bem.Morus descreve uma ilha chamada Utopia, cujos habitantes consideram virtude procurar obter sempre o maior prazer; para eles, é absurdo sofrer voluntariamente, considerar virtude renunciar aos prazeres terrenos e não esperar recompensa após a morte pelos males que sofreram no mundo. A virtude consiste em procurar o prazer natural, seja ele dos sentidos ou da razão, compreendendo quais os bens que se pode ter sem injustiça e que não acarretem males. As idéias estoicas podem ser observadas na importância atribuída pelos utopianos ao viver de acordo com a natureza, ao espírito comunitário natural do ser humano e na extrema atenção dada ao problema da virtude. Thomas Morus revelou-se um perfeito humanista, enquanto associou, na Utopia, o paganismo epicurista e estoicista clássicos às idéias cristãs. Observando e criticando a estrutura econômica da Inglaterra, o autor propõe uma sociedade utópica, cujos habitantes vivem num regime de comunidade de bens. Os habitantes não possuem suas casas: a cada dez anos, as moradias são sorteadas e as pessoas trocam de casa, abolindo-se, assim, a idéia de propriedade privada. Tudo o que for produzido pelos cidadãos de um quarteirão é levado a um mercado nele existente, abastecendo gratuitamente as famílias locais. Ninguém se apropria de mais do que necessita, porque nada lhes é negado; assim, sendo garantida a subsistência, a ganância, tão comum aos homens, não se desenvolve entre essas pessoas.A forma de governo é a democracia: os magistrados são eleitos e as leis não podem ser votadas antes de três dias. É proibido reunir-se fora do senado e das assembléias populares e a pena para a desobediência a essa ordem é a morte.Procurando encontrar uma forma de sociedade melhor que as existentes na Europa, Morus descreveu instituições públicas que visavam impedir o abuso de autoridade, as leis tirânicas ou as mudanças de forma de governo.A religião da Utopia é permissiva, isto é, seus habitantes podem professar diferentes crenças, desde a adoração de forças da natureza até a crença em um único Deus. Todas as religiões são respeitadas e não existe conflito entre elas. Não há uma religião oficial do Estado e, assim, estabelece-se a tolerância religiosa. Embora haja preconizado a tolerância religiosa, Thomas More não foi adepto da Reforma e, por causa de suas firmes convicções e independência diante do poder, acabou sendo destituído do cargo de chanceler, quando discordou de Henrique VIII sobre a separação da igreja inglesa da autoridade do papa. Foi preso e decapitado quando discordou do divórcio do rei de Catarina de Aragão, para validar seu casamento com Ana Bolena. Foi canonizado em 1935, como mártir da Igreja Católica em defesa da liberdade de pensamento. Referências Bibliográficas:Sciacca,M.F. - História da Filosofia, vol. II, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1968.Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura e Thomas More, A Utopia, in Os Pensadores, vol. X, Abril S.A.Cultural e Industrial,São Paulo, 1972.Roland Mousnier, Os Séculos XVI e XVII, in História Geral das Civilizações, vol. IV, Difusão Européia do Livro, São Paulo,1957. MAQUIAVELMaquiavel (Niccolò Machiavelli - Florença, 1469-1527) inspirou-se na experiência política adquirida durante o exercício dos cargos públicos que ocupou e no seu espírito nacionalista, para explicar as causas da decadência italiana e encontrar-lhe salvação. Itália, no Renascimento, era fragmentada em pequenos reinos; sem um poder central, tornou-se presa fácil de aventureiros mercenários (os condottieri), a serviço do príncipe que lhes pagava melhor. Muitos conquistaram terras para si próprios e se aliaram a príncipes e papas. Algumas monarquias absolutas da Europa disputaram seus territórios e, no final da época feudal, sua economia entrou em crescente decadência.Nesse período de crise econômica e política, Maquiavel foi um marco na história das teorias políticas, indo além das especulações filosóficas como as de Platão, Aristóteles e Santo Tomás; ele estudou a sociedade pela análise dos fatos - não procurou um Estado ideal, mas a compreensão de como as organizações políticas surgem, se desenvolvem e decaem. Para tanto, valeu-se da filosofia da história e da psicologia humana: a primeira, mostra como os fatos históricos se dão em ciclos, repetindo-se em linhas gerais; é preciso conhecê-los para compará-los com o presente e remediar o futuro; a segunda, ensina que os homens são egoístas e só agem bem quando obrigados.Tendo em vista esses fatos, Maquiavel escreveu Comentários sobre os Dez Livros de Tito Lívio, repletos de lembranças do passado romano glorioso e O Príncipe, que é uma espécie de roteiro ou conjunto de regras de bem governar para os dirigentes políticos. Como Platão e os juristas romanos, Maquiavel atribuiu ao poder político supremacia sobre o religioso e o social.O governante deve ser implacável, quando necessário, indiferente às considerações pessoais, sociais e morais que limitem seu poder e a ordem política; se for necessário, o dirigente poderá ser cruel, mandar assassinar e eliminar nomes e propriedades de família porque os fins justificam os meios. Diz Maquiavel em O Príncipe: Um príncipe, portanto, que deseje manter-se no poder, deve aprender a não ser bom, mas a sê-lo ou não, conforme o exija a necessidade. Robert Nisbet acredita que Platão e os juristas romanos teriam concordado com ele - Platão, porque teria considerado o bom e o moral intrínsecos ao ato político puro; os juristas romanos, porque acreditavam que o Direito Político deve estar acima da tradição moral. O fundador de Estados é, para o autor, um indivíduo de dotes éticos superiores que lhe facultam o uso de meios extraordinários para a organização de reinos ou repúblicas; o político de virtude é aquele que sabe qual a ocasião exata em que a ação se concretizará com êxito, adequando-se às circunstâncias do momento. Não são tiranos, mas criam a ordem e a coesão social para o povo.A obra de Maquiavel foi muito discutida e diversamente interpretada; ele foi assessor de papas e cardeais e o maior humanista político, tendo influenciado Erasmo e Thomas More. Com a contra-reforma, sua obra foi incluída no index dos livros proibidos pela Igreja, que não poderia tolerar a subordinação do religioso ao político. Na época do poder absoluto, O Príncipe foi visto como um manual do despotismo. Nos séculos XVIII e XIX o autor foi redimido e, modernamente, a tendência é a de analisá-lo como típico representante do pensamento do seu tempo. Maquiavel foi visto como cético, mas a verdade é que ele jamais pretendeu reforçar a moralidade tradicional ou enfeitar o poder absoluto com a moralidade convencional. FILOSOFIA E CIÊNCIA NO RENASCIMENTONos séculos XV e XVI, o aristotelismo, com sua dedução silogística e a indução por enumeração, ainda dominava o ambiente científico, que precisava de um método científico para suas elaborações. A hipótese heliocêntrica (o sol no centro do universo), de Nicolau Copérnico (1473-1543), comprovada científicamente por Kepler (1571-1630) e por Galileu (1564-1642), foi a grande conquista científica do século, porque contestou, com base científica, a cosmologia aristotélico-ptolomaica, que era geocêntrica ( a terra no centro do cosmos). Giordano Bruno (1584-1600) alargou o universo ao infinito.Na mesma época, procurou-se fundamentar o Estado em princípios universais, comuns à toda humanidade e não decorrentes de princípios religiosos: é o jusnaturalismo que organiza politicamente o Estado, a partir de princípios do direito natural ( imutável e eterno), que são a base do direito positivo (mutável conforme as circunstâncias históricas). O Estado nasceu do contrato social, segundo o qual os indivíduos concordam em limitar sua liberdade em prol do bem comum, para que o governante possa fazer valer as leis. Da doutrina do contrato social derivaram as teorias opostas do absolutismo e do liberalismo modernos.A razão é exaltada como única autoridade para reconhecer as realidades religiosas, jurídicas, políticas e científicas.A confirmação científica da hipótese de Copérnico por Kepler e Galileu, as grandes descobertas de Galileu e sua teorização e aplicação do método experimental fundaram a ciência moderna. Do ponto de vista filosófico, sua metodologia, isto é, o método experimental, constituiu-se em sua maior contribuição ao pensamento humano. Podemos resumir o método de Galileu assim: 1- Observação do fenômeno; 2- Análise dos seus elementos; 3- Indução ou relação entre os elementos e elaboração de hipótese explicativa do fenômeno; 4- Dedução ou verificação da hipótese com o cálculo e o experimento. Se o resultado do cálculo concordar com o do experimento, a hipótese poderá ser considerada lei científica. A física de Galileu é a física da quantidade, como a moderna, enquanto que a de Francis Bacon é uma física da qualidade, porque procura a essência ou qualidade, como faziam os escolásticos, só que não do ponto de vista metafísico, senão que de uma ótica puramente física.O problema do método caracterizou o pensamento moderno, como poderemos ver com Bacon, que se valeu da indução experimental e com René Descartes, que tomou o caminho da dedução matemática. Começa nesse ponto a discussão entre o empirismo e o racionalismo - ambos preocupados em solucionar o problema do conhecimento, ou seja, em responder as questões da epistemologia ou gnosiologia.Francis Bacon nasceu em Londres (1561-1626) e ocupou altos cargos nos reinados de Elizabeth I e James I. Sua frase saber é poder sintetiza muito bem seu pensamento: o homem é capaz de dominar a natureza através do progresso da ciência. A ele interessaram mais as aplicações práticas da ciência, a que chamamos técnica, que o saber teórico. Para ele, o método silogístico ou dedutivo de Aristóteles não se presta à descoberta das coisas; somente a indução, que parte da observação dos fatos particulares e concretos, pode levar à verdade e ao estabelecimento de leis gerais. Preconiza o uso da observação e da experimentação para conhecermos as causas das coisas e, assim, dominarmos a natureza em proveito dos homens - o fim da ciência é, portanto, segundo ele, pragmático e instrumental.Em sua obra mais importante o Novum Organum, Bacon, além de expor sua teoria sobre como destruir as falsas idéias que temos da realidade, para, depois, através da indução, chegar as causas e leis das coisas, demonstrou sua fé na técnica, quando afirmou que as descobertas da pólvora, da bússula e da imprensa mudaram o aspecto das coisas em todo mundo. Em 1626, Bacon fez experiências para saber quanto tempo a carne fica preservada pelo frio, recheando uma galinha com neve; já velho e fraco, expôs-se ao frio do inverno. Teve uma bronquite e morreu.Em seus últimos anos de vida, Bacon escreveu uma utopia sobre um Estado imaginário, onde todos são felizes porque os sábios que a governam se preocupam mais com a técnica e a ciência, que podem oferecer vida boa aos cidadãos, do que com os problemas econômicos e sociais. A Nova Atlântida - que recebeu esse nome para se contrapor à Atlântida mencionada por Platão na República (contrapondo ainda o rei-cientista ao rei-filósofo de Platão), como o Novo Organum, se contrapôs ao Organum de Aristóteles - é um clássico da língua inglesa e oferece uma visão profética: a ciência é uma obra coletiva, necessitando de muitos pesquisadores que recolham material para ser analisado pelos especialistas; a ciência não pode ser feita a priori, a partir de afirmações teóricas, mas sim, a partir de contato com os fenômenos reais, através da investigação empírica; a ciência tem finalidade essencialmente prática, como curar doenças e aumentar a longevidade e fabricar máquinas de vários tipos, inclusive para voar e navegar sob a água.Vejamos como o autor descreve os trabalhos na Casa de Salomão, onde vivem e trabalham os sábios que governam a Nova Atlântida, adquirindo seus conhecimentos pelo método experimental: Com respeito aos encargos e ofícios dos nossos discípulos, passa-se o seguinte: doze navegam por países estrangeiros ... trazendo-nos livros, súmulas e modelos de experimentos de todas as outras partes do mundo. Nós os chamamos de mercadores da luz. Temos três que recolhem os experimentos que se encontram em todos os livros. A esses chamamos depredadores. Temos três que reúnem os experimentos de todas as artes mecânicas, das ciências liberais e, ainda, das práticas que não chegaram a artes. A estes chamamos de homens do mistério. Temos três que tentam novos experimentos considerados úteis. A esses chamamos de pioneiros ou mineiros. Temos três que recolhem os experimentos dos quatro grupos precedentes, organizando-os em títulos e tábuas, para levar luz à dedução das observações e axiomas deles extraídos. A esses chamamos de compiladores. Temos três que examinam os experimentos dos seus condiscípulos, procurando uma forma de extrair coisas de utilidade para a vida humana, para a ciência, ... a esses chamamos de doadores ou benfeitores. Então, depois de diversos encontros e consultas entre todos os membros para considerar e avaliar os trabalhos e coleções antes levados a efeito, temos três que se encarregam de orientar novos experimentos, estabelecidos a partir dos precedentes e são eles dotados de um grau mais alto de luzes para penetrarem mais a fundo na natureza. A esses chamamos de lâmpadas. Temos três que executam os experimentos assim orientados e mantêm informados os orientadores. A esses chamamos de inoculadores. Por último, temos três que sintetizam as descobertas anteriores, feitas por experimentos, em observações, axiomas e aforismos de maior generalidade. A esses chamamos de intérpretes da natureza. Galileu havia descrito as duas etapas do método experimental: indução e dedução; Bacon dedicou-se à indução subordinando à ela a dedução - a ciência deve ser feita pela observação e pela experimentação, isto é, deve partir de casos particulares para chegar às generalizações; Descartes considera a dedução superior à indução, buscando na razão a certeza científica. O que nada mais era do que dois momentos do método experimental, foi visto como dois métodos, duas fontes de conhecimento. Encontramos aí a origem das duas correntes do pensamento moderno: o empirismo inglês (Hobbes, Locke, Berkeley e Hume) e o racionalismo (Dercartes, Malebranche, Espinosa e Leibniz). René Descartes (1596-1650) nasceu na França e iniciou o racionalismo moderno. O século XVII foi um século de incertezas - urgia que se encontrasse um método que levasse a certezas científicas, isto é, o método para a ciência. Descartes voltou-se para a matemática, porque as humanidades não traziam certezas e, ainda pautadas nos comentários dos antigos, especialmente Aristóteles, não ofereciam utilidade prática.As propostas da matemática lhe pareceram estar acima do ceticismo, porque tratavam de resultados que se mantinham válidos através do espaço e do tempo. Constatou, porém, que se aplicavam mais à mecânica e não traziam nada de fundamental para a vida humana. Resolveu, então, como Demócrito, dedicar-se a submeter o universo aos números, porque acreditava existir uma correspondência entre as leis do universo e as da matemática.Utilizou-se do método dedutivo, para, através da razão, construir a ciência: como descreveu em seu Discurso sobre o Método, começou por duvidar de tudo, mesmo das idéias que nos parecem evidentes, as idéias claras e distintas, aquelas que são iguais para todos - é a dúvida metódica: todos os conhecimentos são considerados provisoriamente falsos. Daí nasce uma certeza cintilante: se eu não existisse, não poderia estar enganado sobre tudo; eu penso, me engano e duvido - se duvido, penso e, se penso, existo - Cogito, ergo sum - penso, logo existo. Tenho a intuição clara e distinta do meu ser, este ser que existe separado do meu ato de pensar. O pensar, ou cogito, me dá o critério da evidência, isto é, que é verdadeiro tudo aquilo de que eu tenho um conhecimento claro e distinto como o conhecimento do meu eu. Não se deduz a existência pelo raciocínio, mas ela é captada imediatamente no pensar. Como nos diz Descartes ...enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa, que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava. A dúvida inicial e metódica, que invalida todo conhecimento não investigado pela razão, é a marca do racionalismo moderno. Para entender todo o desenvolvimento ulterior do pensamento europeu é fundamental que entendamos seu ponto de cisão com o pensamento anterior: a filosofia deixa de ser a ciência do ser (metafísica) e se transforma na ciência do pensar e do conhecer (gnosiologia ou epistemologia). Do cogito, Descartes parte para a idéia de Deus, que, para o autor, é inata, é como uma marca que Deus gravou na consciência do homem. Se sou imperfeito e limitado, não posso ser a causa do meu ser, ou teria dado a ele todas as perfeições - se tenho a idéia de um ser perfeitíssimo, infinito e criador, não O posso ter criado eu, ser finito e imperfeito, nem mesmo posso ter criado a idéia que tenho dele: foi Ele quem a gravou em mim; donde, Deus existe. Se temos a idéia de um Deus perfeitíssimo é porque Ele existe, uma vez que a idéia de perfeição absoluta inclui a existência, como perfeição. Quando penso num ser perfeitíssimo, automaticamente, penso nele como existente.Além da idéia de Deus, Descartes considera inatas todas as idéias originárias, como os princípios lógico-matemáticos, as noções morais, etc. Quando o homem erra, é porque sua vontade livre o leva a emitir julgamentos, quando o que está sendo julgado não é racionalmente evidente. Assim, o erro nunca deriva de Deus ou do intelecto humano.Para provar a realidade do mundo físico, Descartes torna a apelar para Deus: se vejo a realidade sensível é porque ela existe, porque Deus não iria me enganar, uma vez que Ele é a verdade e a bondade (le bon Dieu). Isso não quer dizer, porém, que as coisas são tal e qual eu as percebo pelos sentidos; estes só têm utilidade prática, dando a conhecer o que é útil e prático e não, necessariamente, o que é real; as idéias das coisas devem ser captadas pelo intelecto - além de por suas qualidades sensíveis, por suas qualidades inteligíveis.A alma distingue o homem dos animais; apenas ele possue corpo e alma. A alma é capaz de ações e paixões - o homem deve aprender a superar as paixões pela razão (sabedoria) para ser dono de sua liberdade. Embora a idéia de uma matemática universal supusesse o ideal de uma sabedoria racional, que pudesse orientar a vida, Descartes achou necessário propor uma moral provisória, que ensinasse a ser feliz. Assim, apresenta três regras para o bom comportamento: 1) Obedecer às leis e costumes do país, conservar a religião tradicional e vincular-se às opiniões mais moderadas; 2) ser firmes e resolutos na ação, mantendo sua opinião, desde que resolvidos a tanto; 3) esforçar-se por vencer-se a si mesmo mais do que submeter-se ao destino e por modificar seus próprios pensamentos mais do que a ordem do mundo. Somos livres, quando, para afirmar ou negar, seguir ou fugir das coisas que o intelecto nos propõe, agimos de modo a não seguir nenhuma força exterior que nos obriga. É fácil notar a influência estoica na moral cartesiana.Descartes abraça o dualismo metafísico que levanta problemas de difícil resolução: de como espírito e matéria, duas substâncias heterogêneas, se relacionam e interagem e de como as substâncias finitas têm realidade frente a Deus, que é substância infinita.No que diz respeito à metafísica, Descartes, supondo a existência das idéias inatas, inclina-se para o idealismo e, em consequência, aproxima-se de Platão e Santo Agostinho; por isso, muitos autores de influência agostiniana se dizem cartesianos. Quanto ao método dedutivo, é inegável sua herança aristotélica.A filosofia de Descartes teve ampla aceitação na Europa, foi o pensamento mais importante do século e influenciou todo o pensamento subsequente. O cogito cartesiano está na raiz de uma filosofia da consciência - compreender o mundo partindo da consciência como dado evidente, ou, ao contrário, ver a consciência como um dos aspectos do mundo objetivo é o dilema da Filosofia contemporânea.(Gilles-Gaston Granger). Ler Descartes e repensá-lo nos introduz à contemporaneidade. Referências Bibliográficas: Bacon, Francis - Novum Organum e Nova Atlântida, in Os Pensadores, vol XIII, Abril Cultural, São Paulo, 1973.Descartes, René - Discurso do Método, in Os Pensadores, vol.XV, Abril Cultural, São Paulo, 1973. Sciacca, Michele F. - História da Filosofia, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1968.A Difusão do Cartesianismo: Malebranche e Pascal; Espinosa.As idéias de Descartes, ainda durante sua vida, suscitaram muita polêmica. Seu pensamento foi o mais importante do século: repercutiu por toda Europa e transformou-se em moda na alta sociedade da França.Apesar da oposição dos jesuítas e dos protestantes, que acreditavam ser a liberdade de investigação perigosa para a religião, o cartesianismo influenciou o desenvolvimento do pensamento subsequente, destacadamente com Malebranche, Pascal e Espinosa.O francês Nicolas Malebranche (1638-1715) foi o sistematizador do chamado ocasionalismo - o corpo e a alma não interagem - o corpo, nas sensações, não age sobre a alma, assim como ela, nos atos de vontade (volições), não age sobre o corpo; ambos não produzem a sensação e a volição, mas são ocasiões para que Deus (única causa eficiente) as produza. Uma bola em movimento, que bate noutra, não é a causa do movimento da primeira (seria preciso algo que lhe tivesse imprimido movimento e assim por diante), mas apenas ocasião para que Deus faça acontecer sua vontade. Em sua obra principal - Recherche de la Verité - ensina que não há comunicação entre a mente e o corpo e que, portanto, a mente não pode conhecer diretamente o mundo. Em Deus existem as idéias de todos os seres; como estamos diretamente unidos a Ele pela nossa alma, é através da intuição da mente de Deus que vemos os modelos das coisas criadas por Ele, que se ordenam por leis. Como nos diz Malebranche, se não víssemos Deus, não veríamos nada.Blaise Pascal, (1623-1662), filósofo e cientista, (descobridor do vácuo físico) fez a primeira crítica ao conceito de razão cartesiano, que a supunha infinita e absoluta. Para ele o conhecimento humano não pode ser perfeito, porque a verdade, infinita, ultrapassa a capacidade finita da razão humana. Para ele, o esprit de finesse, a razão do coração, é uma intuição direta que não é racional e que permite conhecer muito além do que a dedução pode ensinar. O homem deve ser humilde em reconhecer seus limites racionais e, com Agostinho, ensinou que nessa consciência dos limites da razão está a nobreza do homem. Reconhecer essa limitação, oriunda do pecado original, e saber que apenas a graça divina poderá, com auxílio do sobrenatural e com o concurso da vontade humana, nos restituir a grandeza anterior ao pecado, depende do esprit de finesse, que deve ser adaptado a cada indivíduo, uma vez que, como ele acentuou, somos uns diferentes dos outros. Como diz Sciacca, Descartes fornece as regras do método para construir a ciência e a filosofia racional, o sistema da razão que, separada da fé, se e quando pode, não cogita de Deus; Pascal procura as regras do método para esclarecer o homem a si mesmo e construir uma filosofia cristã, fundamento racional da fé. Dois homens e dois métodos no limiar do pensamento moderno: a antítese nos ocupa ainda hoje. Ele foi o primeiro pensador que, nos seus Pensées, nos primórdios do modernismo, tentou fazer, através do método do coração, uma nova síntese entre fé e ciência.Baruch Espinosa, (Amsterdam, 1631-1677), filho de judeus portugueses, mesmo aceitando o método da dedução matemática de Descartes, considerou toda a filosofia como ética, como forma de agir, como religião racional e não como ciência. Para ele, Deus e a natureza se identificam; não existem vários seres, mas apenas uma única Substância, Deus, que não existe separado do mundo (monismo) - todo modo (forma individual dos seres) sai da Substância necessariamente, como os lados do quadrado saem do próprio quadrado: Deus é causa nos seus efeitos (causalidade imanente); não é, portanto, causa externa do mundo, porém causa imanente. Deus é a própria ordem necessária e geométrica. Como em Plotino e nos néo-platônicos, liberdade e necessidade se identificam: a liberdade de Deus consiste na necessidade que Ele tem de se desenvolver espontaneamente e não em poder escolher um modo ou outro de se determinar. Não há finalidade na sua causalidade, a não ser seu próprio absoluto desenvolvimento.Sua visão da filosofia como ética pode ser entendida a partir dos três estágios do processo prático-cognitivo que ele distinguiu: a) conhecimento sensitivo, pelo qual o homem conhece as coisas individuais - é imperfeito e seu aspecto prático é a paixão: o homem quer dominar as coisas como se as possuísse - é o estado da escravidão; b) conhecimento racional, que entende as coisas em suas ligações de causalidade - é a ciência, que livra da paixão e contempla e aceita a ordem universal, passiva e imperturbavelmente (apatia estóica). c) conhecimento intuitivo, grau supremo do conhecimento, além da razão, que intui os seres emanando de Deus - livres do tempo, quantidade e número, chega-se ao amor intelectual de Deus- do processo geométrico descendente da Substância Absoluta à multiplicidade, faz-se o processo ascendente inverso da multiplicidade ao Absoluto, onde todas as coisas se anulam no mar infinito do ser. A unidade é encontrada além da razão, na intuição, que é supra-racional.Ambos, Pascal e Espinosa, procuraram resolver pela teologia os problemas deixados por Descartes: a proposta de Pascal foi teísta, isto é, admitiu a transcendência de Deus; a de Espinosa foi panteísta, negando a revelação divina e a transcendência de Deus, resolvendo a religião na filosofia, situando-se, assim, como um filósofo racional perfeito. Para ele, Deus é a natureza e o anseio dos homens de eternidade, nada mais é que o desejo de se dissolver na Substância. As idéias de liberdade e de pessoa são vistas por ele como ignorância - pensamos que somos livres porque não conhecemos as causas de nossas ações; acreditamos ser pessoas reais porque não sabemos nos ver como emanações da Substância Absoluta. O Deus de Espinosa, como em Plotino e nos estóicos, não é o Deus da religião: é a razão divinizada, o que faz de Espinosa um teórico da religião natural. Seu panteísmo influencia, até hoje, os que pretendem uma religião absolutamente racional, que não se baseie em dogmas e revelações divinas. Quanto ao aspecto político, acreditou que o direito de natureza se identifica com o direito natural; nem todos chegam ao estágio de conhecimento natural que permite fazer o que é de interesse comum - nasce, então a necessidade do governo para impor a obediência às leis - passa-se, assim, do direito natural ao direito positivo. O governo deve ser constitucional, com representantes eleitos, para que o governante não sobreponha seus interesses ao interesse público. Como vemos, Espinosa foi um teórico do liberalismo político. O Desenvolvimento do Empirismo: Hobbes e Locke (sécs.XVII-XVIII)Thomas Hobbes (1588-1679) nasceu na Inglaterra e foi influenciado pelo racionalismo de Descartes, com quem polemizou e pelo empirismo de Bacon, de quem foi secretário, além de Galileu, com quem se encontrou na Itália. As idéias de Descartes e Bacon, opostas e conflitantes, foram fundamentais para a superação da escolástica medieval e para uma nova visão da natureza e do homem. A obra de Hobbes se constituiu num ponto de contato entre o racionalismo e o empirismo, algo como uma síntese de ambos. Embora racionalista, Hobbes discordou de Descartes, afirmando que a frase penso, logo existo supõe algo que pense e que uma coisa que pensa é uma coisa corporal. Contra o dualismo de Descartes, que afirma existirem duas substâncias, a material e a espiritual, Hobbes externa seu materialismo dizendo que o sujeito que pensa é corporal. E acrescenta: que diremos agora, se talvez o raciocínio não for outra coisa senão uma reunião e encadeamento de nomes, pela palavra é? De onde se segue que, pela razão, nada concluímos quanto à natureza das coisas, mas só quanto às suas denominações, isto é, pela razão vemos apenas se reunimos bem ou mal os nomes das coisas, segundo as convenções que, de acordo com nossa fantasia, tenhamos feito quanto aos seus significados. Esse texto bem demonstra o nominalismo de Hobbes, que reduziu os conceitos a meras palavras. E ainda continua: Se isso é assim, como parece ser, o raciocínio depende de nomes, os nomes dependem da imaginação e a imaginação, talvez, (e isso segundo o que sinto), dependerá dos órgãos corporais; e, assim, o espírito não será outra coisa senão um movimento em certas partes do corpo orgânico.Para Descartes, o movimento explica as substâncias, suas propriedades e as transformações da matéria - esse mecanicismo explica, porém, somente o mundo material, mas não o mundo espiritual (intelectual, psicológico, etc.). Para Hobbes, o mecanicismo explica tudo: as modificações se devem ao movimento de corpos modificados - existir é existir no espaço, é ser um corpo em movimento. E ele estende o mecanicismo ao espírito - os sentidos, afetados pelo movimento de corpos exteriores, transmitem-no ao cérebro e daí ao coração, onde se iniciaria um movimento de reação em sentido inverso - o início dessa reação seria a sensação: a sensação é o princípio do conhecimento dos próprios princípios, e a ciência dela deriva inteiramente. A ciência seria feita a partir de nomes dados aos elementos percebidos pelas sensações, que se somam - essa soma levaria à ciência que seria o conhecimento das consequências de uma palavra à outra. Resumindo, Hobbes acreditou que o conhecimento humano se origina dos entrechoques de corpos que vêm de movimentos exteriores e que, através dos sentidos chegam ao espírito (que é um corpo tênue e sutil); esses movimentos associam-se uns aos outros e se organizam como ciência. Hobbes, que manifestou profundo interesse pelos problemas sociais, aplicou o materialismo da estrutura da realidade e o nominalismo da construção da ciência à política e à moral. Para ele, o motor da ação humana moral e política é o conato (conatus) ou esforço (começo interno do movimento animal); trata-se de uma solicitação para aproximar-se do que agrada e se afastar do que desagrada. Tendência e repulsão ao objeto levam, respectivamente, ao prazer e à dor. É o objeto que induz o indivíduo à ação (determinismo). A visão de vida do filósofo é nitidamente competitiva: a vida seria como uma corrida que se deve vencer sempre - ela começa com um esforço que se chama desejo: ultrapassar sempre os outros é a felicidade; ser ultrapassado é a miséria; sair da corrida é morrer. O estado de natureza dos homens, estado esse que caracteriza o homem antes que ele faça parte do estado social, é dominado pelo egoísmo: cada um procura a auto-preservação e assim, no dizer de Hobbes, o homem é o lobo do homem (homo homini lupus); impera a guerra entre todos (bellum omnium contra omnes). Não há diferença entre justo e injusto e a utilidade é a medida do direito. Esse modo de ver o estado de natureza do homem é bastante diverso do dos outros filósofos políticos, como por ex., Aristóteles, para quem o homem é um animal social. O homem procura o prazer e quer para si os bens comuns: é a cupiditas naturalis, primeira tendência natural. Porém a razão, ratio naturalis, segunda tendência natural, convence os homens de que esse agir instintivo prejudica a todos e de que é melhor aceitar um direito pacífico para evitar a guerra e, assim, preservar melhor a vida - é da guerra que surgem as leis descobertas pela razão, ou direito natural, que proíbe aos homens agirem de forma a destruir a vida ou subtrair os meios de conservá-la. Daí deriva a primeira lei natural: obter a paz, se possível ou, se impossível, é preciso procurar em toda parte os recursos para a guerra, sendo lícito empregá-los. Dela deriva a segunda lei natural: O homem, espontaneamente, quando todos o fazem e enquanto julgar necessário à sua paz e à sua defesa, deve renunciar ao seu direito sobre todos e contentar-se em ter tanta liberdade em relação aos outros quanto ele mesmo reconhece para os outros em relação a si próprio. Estabelece-se, de comum acordo, um contrato (transferência mútua de direito) pelo qual todos os homens abdicam de seu direito natural, delegando-o a um poder máximo que todos concordam em obedecer - assim surge o Estado, que está fora do contrato e em benefício do qual todos concordam em abdicar da própria liberdade; trata-se, portanto, de um Estado com poder absoluto para a contenção do egoísmo natural dos homens, o que impede a guerra e constitui a unidade de povo. A paz, que possibilita a conservação da vida exigida pela razão, cria o pacto social e, por ele , o homem ingressa na ordem moral, que poderia ser resumida pela máxima: não faças aos outros o que não queres que te façam. É interessante observar que, embora seja partidário do absolutismo, Hobbes também preconiza o pacto social. Não há aí contradição, se consideramos que, para ele, o pacto levaria, necessariamente, ao poder absoluto do governante; em sua forma de pensar, esse poder, ao contrário do que pensavam outros absolutistas da época, não se originaria do direito divino (Deus confere poder ao governante), mas do comum acordo (do pacto) entre os governados. Embora ele admitisse a democracia, por temor à ignorância dos membros da assembléia, bem como de sua demagogia, preferiu, para governar, um rei, secundado por um conselho secreto de homens escolhidos. Toda autoridade religiosa deveria pertencer ao rei, para evitar divergências que poderiam levar a guerras e o culto deveria ser unificado e obrigatório, para evitar que fossem encontradas, numa mesma cidade, as mais absurdas opiniões quanto à natureza divina e as mais impertinentes e ridículas cerimônias jamais vistas.As idéias de Hobbes sobre o homem e o Estado, encontradas sobretudo em suas obras Leviatã e Sobre o Cidadão, são, em grande parte, um reflexo da época e situação em que o autor viveu: as lutas sociais e econômicas configuradas pelos conflitos entre o poder real e o do Parlamento, na Inglaterra do século XVII. Suas idéias de controle social férreo não se realizaram e, ao contrário, o poder real se viu enfraquecido quando, em 1689, os liberais do Parlamento lograram instituir a autonomia dos poderes, o prevalecimento da mentalidade civil contra o militarismo, a pluralidade de confissões religiosas e a liberdade de pensamento e de expressão, derrotando para sempre, na Inglaterra, o absolutismo real.John Locke, (1632-1704), também inglês, foi um dos maiores representantes da cultura inglesa de seu tempo - a época do Iluminismo. Foi um pensador liberal, racionalista em religião e, como foi comum entre os pensadores ingleses (o metafísico de vida solitária se encontra mais na França, na Itália e, principalmente, na Alemanha, mas não na Inglaterra), um homem de ação preocupado com sua profissão (medicina), com a política, a fisiologia e a educação. Sua filosofia investigou o campo da gnosiologia (epistemologia) abordando o problema crítico do conhecimento. Ele partiu da crítica do intelecto humano, que é a fonte de todo conhecimento, para conhecer seus limites e a sua extensão. Então, nessa filosofia que pretende, longe das indagações metafísicas, conhecer o processo cognoscitivo, ele indagou, basicamente, sobre 1) a origem e 2) o valor do conhecimento - essas são as duas linhas mestras do seu pensamento. Em sua obra, Ensaio sobre o Entendimento Humano, ele criticou a doutrina das idéias inatas, admitida na época por Descartes, pelos cartesianos e pelos néo-platônicos ingleses. Segundo ele, não existem tais idéias (princípios morais, a idéia de Deus, etc.), uma vez que as crianças, os selvagens e os ignorantes não as possuem; além disso, em culturas, épocas e lugares diversos, elas são também diversas, donde, não são universais e, se o fossem, não teriam serventia, pois se pode chegar a um bom conhecimento das coisas pela experiência (por ex., saber que doce não é amargo). Locke comparou a alma humana, na hora do nascimento, a uma tabula rasa, algo como uma folha de papel em branco, onde nada ainda foi escrito. Através da experiência, essa página, gradualmente, vai sendo escrita, isto é, a mente humana vai acumulando conhecimentos, idéias, todas originárias da experiência. Assim, todo nosso conhecimento tem origem na experiência. Há dois tipos de experiência: 1) a sensação (percepção externa), que dá as idéias dos objetos externos, como cor, som, cheiro etc., isto é, as idéias das coisas e 2) a reflexão ( percepção interna) que nos dá as idéias dos nossos atos espirituais (julgamentos, crenças etc., isto é, as idéias do eu). Esses dois tipos de idéias, que o intelecto recebe passivamente, são chamadas por Locke de idéias simples, que vêm de experiências concretas, como frio, quente, doce, amargo, branco, azul, etc. O indivíduo, então, pela atividade do seu intelecto, une essas idéias formando idéias conjuntas, como as de substância (várias idéias simples que levam à noção do substrato de uma coisa, por ex. ouro: duro, amarelo, etc.), de modos (propriedades das coisas), e de relações (distinção entre duas idéias: maior-menor, causa-efeito etc.). O intelecto também é responsável pelas idéias gerais, formadas por abstração e pelas idéias da reflexão, ou do sentido interno. Tendo discutido a origem das idéias, Locke se empenhou em estabelecer o valor do conhecimento: O que podemos conhecer? Quando o conhecimento é verdadeiro? Vamos entender seu pensamento a partir do que ele diz no Ensaio: É evidente que o espírito não conhece as coisas imediatamente, mas apenas por intermédio das idéias que delas tem. A idéia é intermediária entre nós e as coisas. As idéias não são verdadeiras nem falsas - sua verdade ou falsidade dependerá do acordo ou desacordo entre as idéias, o que pode ocorrer de dois modos: 1) esse acordo ou desacordo é percebido imediatamente com evidência, e teremos a verdade intuitiva, que não precisa ser demonstrada (ex.: 2+2 = 4, ou alto não é baixo),ou 2) o acordo ou desacordo entre as idéias não é percebido imediatamente - embora baseado em conhecimentos intuitivos, nesse caso, nosso intelecto recorre a idéias intermédias e temos, então, a verdade por demonstração (as idéias matemáticas, as morais etc.), que são construídas pela nossa mente. Mas, perguntou Locke, se apenas conhecemos as idéias, será que elas correspondem à verdade das coisas ? Responde afirmativamente, apenas para a certeza (intuitiva) de nossa própria existência, para a certeza (demonstrativa) da existência de Deus e para a certeza da sensação relativa às idéias simples e, mesmo assim, apenas enquanto dura a sensação - se me queimo, só tenho certeza da existência do fogo, enquanto durar o ardor; depois, o fogo existirá ou não. As idéias conjuntas, sendo formadas pelo intelecto, não têm valor objetivo. São apenas nomes que usamos para para dar nome e classificar as coisas; assim, o autor deixou claro que, para ele, as proposições universais da ciência têm apenas valor prático e nada têm a ver com a verdade das coisas - são invenções da nossa mente que se referem apenas a palavras ou idéias e não às próprias coisas. Vemos aí, bem evidente, o nominalismo de Locke.Quanto às substâncias, o autor admitiu sua existência, mas assinalou que não podemos conhecê-las - apenas suas qualidades poderão ser conhecidas através da pesquisa experimental. Para Locke, as idéias são imagens que se originam na sensação, não sendo exemplares inteligíveis (como no idealismo ontológico platônico-agostiniano). Assim, só conhecemos da realidade essas idéias ou imagens que os sentidos nos oferecem (empirismo); a realidade é o conteúdo de nossa consciência subjetiva ou empírica cuja ligação com as coisas em si desconhecemos.A teoria social e política de Locke derivou de suas idéias sobre o conhecimento humano: assim como não existem idéias inatas, tampouco existe poder inato e de origem divina, como queriam os absolutistas. Em suas obras, Primeiro Tratado sobre o Governo Civil e no Segundo Tratado (que foram a primeira teorização do liberalismo político moderno), afirmou, como Hobbes, que o estado de sociedade e o poder político são gerados por um pacto (contrato) entre os homens. No entanto, enquanto Hobbes pretendia, com as teses do estado natural e do contrato social, defender o absolutismo, Locke acreditava exatamente o contrário - que , no estado natural, os homens, governados pela razão, iguais, livres e independentes, desejariam preservar a paz e a humanidade e evitariam invadir os direitos alheios. A diferença entre as duas formas de pensar emana do que ambos entendiam por estado natural. (ver Hobbes).Ao contrário de Hobbes, Locke não via os homens como egoístas por natureza; embora acreditasse que a base da moral fosse o bem-estar (utilitarismo), ensinou que a lei da natureza (que coincide com a lei divina) prescreve uma ordem ética racional - o que é útil para cada homem se identifica com o bem-estar de todos.Como Hobbes, acreditava que a sociedade se originou dum contrato, sem que, no entanto, exista oposição entre o estado de natureza e o de sociedade; simplesmente há uma proteção dos direitos fundamentais que o homem tem no estado de natureza (vida, liberdade, propriedade) por um poder que, por contrato entre os homens, recebe os direitos de defesa e punição. Não se cria nenhum direito novo a ser acrescido aos direitos naturais e, assim, ninguém renuncia aos seus direitos naturais em favor do Estado. Se o Estado não cumprir seus deveres, poderá haver resistência e rebelião da parte dos cidadãos. Na sociedade criada pelo contrato social haveria leis aprovadas pelos seus membros e postas em execução por juízes imparciais.Coerentemente, prega a tolerância religiosa, uma vez que um não deve invadir a liberdade do outro.Hobbes foi o teórico do absolutismo dos Stuart e Locke foi o teórico da monarquia liberal inglesa que se iniciava - seus dois Tratados justificaram a revolução burguesa.Locke antecipou a tendência do Iluminismo francês de reduzir a filosofia a gnosiologia e, ainda mais, a filosofia ao estudo das faculdades da mente humana (psicologia), característica relevante dos chamados ideólogos. Os iluministas também se valeram de suas idéias liberais para fundamentar a Revolução Francesa. Influenciou ainda Montesquieu na formulação da teoria da separação dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário) e os pensadores americanos, que colaboraram na Declaração da Independência dos Estados Unidos, em 1776. A influência de Locke no pensamento ocidental foi da mais profunda importância e suas idéias fundamentam, ainda hoje, as democracias liberais.
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