O SUDÁRIO DO SONHO
Neste entrado terceiro
milénio, apesar do progresso industrial e das maravilhosas possibilidades
prometidas pela comunicação global, em que todos seríamos vizinhos, não nos é
permitido ainda o estabelecimento duma humanidade verdadeiramente adulta, livre
do medo, da superstição e da indigência. Não quero parecer exagerado e dizer:
muito pelo contrário!
Muitos crentes, confundindo os
seus mais íntimos medos e desejos com a realização da vida e do mundo,
iludem-se, julgando que basta que as folhas do calendário mudem para que eles e
o mundo mudem também. Autoflagelam-se uns com previsões apocalípticas, outros
entram em transe com imaginadas eras prontas a viver sem nenhum esforço, tudo
graças a inventados portais cósmicos do esoterismo light. Tudo bate
certo num mundo de pronto a vestir, pronto a comer e – por que não? – pronto a
pensar.
Nesta estação de saldos
do império, a queda dos valores tradicionais parece deixar-nos mais desarmados
do que nunca e o vazio deixado pelo abandono das fórmulas antigas de viver a
espiritualidade torna-nos ansiosos, sensíveis aos apelos insanos dos novos
«profetas» apocalípticos. Destes, há para todos os gostos: desde os que, para
desinfetar a Terra da nossa presença sacrílega, nos querem gasear com sarin,
aos que, suicidando-se coletivamente, esperam apanhar boleia num disco voador
arrastado na cauda dum cometa.
Autoproclamando-se (ou não)
mensageiros do New Age, mas de qualquer modo e sempre bebendo das águas
promíscuas dessa contracultura conciliadora de todas as loucuras e de todas as
crenças, credos e crendices, surgem-nos a esmo profetas dos últimos dias,
adventistas e milenaristas para todos os temidos e para todos os desejados
apocalipses, vangloriando-se invariavelmente de serem detentores de «verdades»
naturalmente «supremas». Para tais verdades inventadas, convenhamos que o
tecido social das nações mais industrializadas está bem preparado e adubado de
tristeza e descaminho, pela chamada crise das ideologias, pelo modo de produção
de tirar aos pobres para dar aos ricos (dita crise económica e financeira),
pela permissividade (muitas vezes confundida com tolerância) e pelo vazio já
referido.
Para agravar, temos depois um
ensino eivado dum positivismo empedernido, visando tão-só o mais comezinho dos
utilitarismos. Para engrossar ainda mais o caldo, estabeleceu-se no terreno,
empurrada pelos «critérios de audiência», uma comunicação de massas virada,
quase que exclusivamente, para a excitação e completamente despida de
espiritualidade e alegria. Isto é o bastante e a sobra para apodrecer vilmente
a nossa chama interior. De tal apodrecimento, germinam depois os medos que
andam pelas ruas e geram propaladas inseguranças, que vamos contabilizando, sem
nos apercebermos que eles não passam do bolçar do que nos vai dentro; não são
fenómenos externos nem a maldição da fada má. Eis então que a nossa confusa
insegurança apela a proteções exteriores, venham elas do alto que vierem:
institucionais, naturais, sobrenaturais ou míticas. Tentamos assim apaziguar os
nossos medos com as drogas e as ilusões julgadas mais apropriadas, como o
trabalho, o progresso, o consumismo, os divertimentos anestesiantes, ou a droga
stricto sensu. Soltam-se então, do baú de Eros e Thanatos, estranhos e
reprimidos antigos e patológicos desejos de sofrer, e aí, os nossos medos
avulsos ajoelham em vassalagem a um medo maior.
Trazidas pelo exacerbar de mil
vãs expectativas criadas à volta de misticismos livrescos, orientalismos mal
assimilados e transcendentes meditações para todas as soluções, caem sobre nós
as mais desconexas vozes, num coro caótico, fomentador de novas crenças com
velhos atavios… e nós, com a dor difícil que nos atormenta, rendemo-nos cega e
facilmente.
(DOMINGO, 19 DE AGOSTO DE 2012 - Abdul Cadre, Portugal)
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