domingo, 3 de fevereiro de 2013

Artigo: O Sudário - A/01277


O SUDÁRIO DO SONHO

Neste entrado terceiro milénio, apesar do progresso industrial e das maravilhosas possibilidades prometidas pela comunicação global, em que todos seríamos vizinhos, não nos é permitido ainda o estabelecimento duma humanidade verdadeiramente adulta, livre do medo, da superstição e da indigência. Não quero parecer exagerado e dizer: muito pelo contrário!
Muitos crentes, confundindo os seus mais íntimos medos e desejos com a realização da vida e do mundo, iludem-se, julgando que basta que as folhas do calendário mudem para que eles e o mundo mudem também. Autoflagelam-se uns com previsões apocalípticas, outros entram em transe com imaginadas eras prontas a viver sem nenhum esforço, tudo graças a inventados portais cósmicos do esoterismo light. Tudo bate certo num mundo de pronto a vestir, pronto a comer e – por que não? – pronto a pensar. 

 Nesta estação de saldos do império, a queda dos valores tradicionais parece deixar-nos mais desarmados do que nunca e o vazio deixado pelo abandono das fórmulas antigas de viver a espiritualidade torna-nos ansiosos, sensíveis aos apelos insanos dos novos «profetas» apocalípticos. Destes, há para todos os gostos: desde os que, para desinfetar a Terra da nossa presença sacrílega, nos querem gasear com sarin, aos que, suicidando-se coletivamente, esperam apanhar boleia num disco voador arrastado na cauda dum cometa.
Autoproclamando-se (ou não) mensageiros do New Age, mas de qualquer modo e sempre bebendo das águas promíscuas dessa contracultura conciliadora de todas as loucuras e de todas as crenças, credos e crendices, surgem-nos a esmo profetas dos últimos dias, adventistas e milenaristas para todos os temidos e para todos os desejados apocalipses, vangloriando-se invariavelmente de serem detentores de «verdades» naturalmente «supremas». Para tais verdades inventadas, convenhamos que o tecido social das nações mais industrializadas está bem preparado e adubado de tristeza e descaminho, pela chamada crise das ideologias, pelo modo de produção de tirar aos pobres para dar aos ricos (dita crise económica e financeira), pela permissividade (muitas vezes confundida com tolerância) e pelo vazio já referido.

Para agravar, temos depois um ensino eivado dum positivismo empedernido, visando tão-só o mais comezinho dos utilitarismos. Para engrossar ainda mais o caldo, estabeleceu-se no terreno, empurrada pelos «critérios de audiência», uma comunicação de massas virada, quase que exclusivamente, para a excitação e completamente despida de espiritualidade e alegria. Isto é o bastante e a sobra para apodrecer vilmente a nossa chama interior. De tal apodrecimento, germinam depois os medos que andam pelas ruas e geram propaladas inseguranças, que vamos contabilizando, sem nos apercebermos que eles não passam do bolçar do que nos vai dentro; não são fenómenos externos nem a maldição da fada má. Eis então que a nossa confusa insegurança apela a proteções exteriores, venham elas do alto que vierem: institucionais, naturais, sobrenaturais ou míticas. Tentamos assim apaziguar os nossos medos com as drogas e as ilusões julgadas mais apropriadas, como o trabalho, o progresso, o consumismo, os divertimentos anestesiantes, ou a droga stricto sensu. Soltam-se então, do baú de Eros e Thanatos, estranhos e reprimidos antigos e patológicos desejos de sofrer, e aí, os nossos medos avulsos ajoelham em vassalagem a um medo maior.
Trazidas pelo exacerbar de mil vãs expectativas criadas à volta de misticismos livrescos, orientalismos mal assimilados e transcendentes meditações para todas as soluções, caem sobre nós as mais desconexas vozes, num coro caótico, fomentador de novas crenças com velhos atavios… e nós, com a dor difícil que nos atormenta, rendemo-nos cega e facilmente.

 (DOMINGO, 19 DE AGOSTO DE 2012 - Abdul Cadre, Portugal)

 

 

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